A ameaça dos contaminantes emergentes na água. Entrevista com Wilson Jardim
“Verificamos que as capitais costeiras apresentaram uma água de abastecimento de melhor qualidade quando confrontadas com águas de capitais localizadas no interior do país. Uma das explicações para este fato seria que as capitais costeiras lançam seu esgoto no mar, impactando bem menos os mananciais”, diz o pesquisador.
Foto: Nós e a Química (Blogger) |
Análise recente da água de 20 capitais brasileiras demonstra que há altos índices de contaminantes emergentes, substâncias “não legisladas”, presentes na água utilizada para consumo. Entre os contaminantes, foram encontrados fármacos, produtos de higiene pessoal, hormônios naturais e sintéticos, agentes antichamas, protetores solares, nanomateriais e pesticidas. O coordenador da pesquisa, Wilson Jardim, professor do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, explica que existem mais de mil substâncias que se encaixam nessa categoria e que, “nas últimas décadas, por uma série de fatores, como padrão de consumo, falta de saneamento e adensamento populacional, entre outros, aumentaram sua concentração no ambiente e podem fazer com que a exposição humana a elas seja preocupante”.
Jardim assinala que ainda não é possível identificar como os contaminantes emergentes afetam o equilíbrio do sistema hormonal dos seres vivos e essa falta de informação é “preocupante”, porque já foram identificados casos de mudanças hormonais em algumas espécies. “Há inúmeras evidências relatando a feminização de peixes e répteis em rios que recebem cargas elevadas de esgoto sanitário.
Por outro lado, em seres humanos, há um número crescente de casos de câncer em testículo, na tireoide, na mama em mulheres jovens, diminuição do número de esperma em homens férteis, má formação genital, e isso tem chamado a atenção da Organização Mundial de Saúde – OMS. O fato é que este crescimento não pode ser explicado apenas pela genética e, portanto, deve haver outro fator”, aponta, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail.
Na avaliação do pesquisador, os dados da pesquisa revelam que grande parte dos mananciais brasileiros está “criticamente impactada com o lançamento de esgoto sanitário”.
E acrescenta: “O Brasil tem um saneamento deplorável, totalmente incompatível com uma economia que se situa entre as dez maiores do planeta. Isso exige muito das estações de tratamento de água, que ainda usam um processo secular e que não estão preparadas para tratar uma água de péssima qualidade, muito embora o preço das tarifas seja elevado”.
Wilson Jardim é graduado em Química pela Universidade Federal de São Carlos e doutor em Ciências Ambientais pela University of Liverpool, Inglaterra. Atualmente é professor titular do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas, onde desenvolve pesquisas na área de química ambiental, processos oxidativos avançados, remediação de áreas contaminadas, contaminantes emergentes em águas, fotocatálise, desinfecção de atmosferas internas e externas e ciclo do mercúrio na Amazônia.
Confira a entrevista.
Foto: Unicamp |
IHU On-Line – O que são os contaminantes emergentes encontrados na água de 20 capitais brasileiras? Pode nos contar como ocorreu o processo de identificação dos contaminantes na água? Quais foram os contaminantes encontrados nas águas brasileiras?
Wilson Jardim – Contaminantes Emergentes – CE são substâncias não legisladas e que nas últimas décadas, por uma série de fatores, como padrão de consumo, falta de saneamento e adensamento populacional, entre outros, aumentaram sua concentração no ambiente e podem fazer com que a exposição humana a elas seja preocupante. Dentre os CE podemos citar os fármacos, produtos de higiene pessoal, hormônios naturais e sintéticos, agentes antichamas, protetores solares, nanomateriais, pesticidas e inúmeros outros. Dentre as mais de mil substâncias que se encaixam na definição de CE, nós trabalhamos com os hormônios naturais e sintéticos (como o da pílula anticoncepcional), alguns fenóis, ftalatos, atrazina, bisfenol-A, triclosan e cafeína. Nosso banco de dados mostrou que a cafeína é um excelente indicador da atividade estrogênica nas águas naturais e de abastecimento. Assim, muito embora a cafeína não seja um problema nas concentrações em que ocorre tanto na água de abastecimento como em mananciais, ela é um indicador da qualidade dessas águas. Desse modo, focamos o trabalho em quantificar a cafeína, muito embora tenhamos encontrado atrazina, bisfenol-A e triclosan.
“Apenas no início dos anos 1990, quando o Ministério Público começou a exigir que as concessionárias fizessem seu dever em tratar esgoto, é que o cenário mudou” |
IHU On-Line – Porto Alegre é a capital em que o índice de contaminantes é mais elevado. Em contraposição, Fortaleza é a que possui o percentual mais baixo. É possível identificar as razões e diferenças desses resultados?
Wilson Jardim – Verificamos que as capitais costeiras apresentaram uma água de abastecimento de melhor qualidade quando confrontadas com águas de capitais localizadas no interior do país. Uma das explicações para este fato seria que as capitais costeiras lançam seu esgoto no mar, impactando bem menos os mananciais.
IHU On-Line – Como e em que medida o equilíbrio do sistema hormonal dos seres vivos tem sido alterado pelos contaminantes presentes na água?
Wilson Jardim – Não sabemos, e isso é preocupante. Há inúmeras evidências relatando a feminização de peixes e répteis em rios que recebem cargas elevadas de esgoto sanitário. Por outro lado, em seres humanos, há um número crescente de casos de câncer em testículo, na tireoide, na mama em mulheres jovens, diminuição do número de esperma em homens férteis, má formação genital, e isso tem chamado a atenção da Organização Mundial de Saúde – OMS. O fato é que este crescimento não pode ser explicado apenas pela genética e, portanto, deve haver outro fator.
IHU On-Line – Internacionalmente, como a questão da contaminação da água por contaminantes tem sido discutida?
Wilson Jardim – Há uma preocupação mundial, a qual foi oficialmente reconhecida pela OMS e pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente – UNEP. A Comunidade Europeia, os Estados Unidos, o Canadá e o Japão têm buscado aprimorar as legislações, mas ainda não há padrões para estas substâncias. Mesmo porque são tantas que seria impossível legislá-las individualmente.
“Há várias tecnologias disponíveis, as quais chamamos de tecnologias de polimento. Não são usadas porque as concessionárias não querem” |
IHU On-Line – O que essa pesquisa revela sobre o tratamento da água no Brasil?
Wilson Jardim – Revela que grande parte dos nossos mananciais está criticamente impactada com o lançamento de esgoto sanitário. O Brasil tem um saneamento deplorável, totalmente incompatível com uma economia que se situa entre as dez maiores do planeta. Isso exige muito das estações de tratamento de água, que ainda usam um processo secular e que não estão preparadas para tratar uma água de péssima qualidade, muito embora o preço das tarifas seja elevado.
IHU On-Line – Os contaminantes emergentes deveriam ser controlados por alguma legislação?
Wilson Jardim – Certamente serão, num futuro breve. Talvez não em termos individuais, mas, por exemplo, pode-se estipular que uma determinada amostra de água não possa apresentar atividade estrogênica acima de um valor estabelecido. Este ensaio não mede compostos individuais, mas sim a somatória de todos eles atuando no sistema endócrino. Acho que caminhamos para este tipo de abordagem, a qual é bem mais realista e adequada para atacar o problema.
IHU On-Line – A que o senhor atribui o deterioramento da qualidade da água nos mananciais brasileiros?
Wilson Jardim – Às concessionárias (ou produtoras) de água que nunca se preocuparam com a coleta e o tratamento de esgoto. Apenas no início dos anos 1990, quando o Ministério Público começou a exigir que as concessionárias fizessem seu dever em tratar esgoto, é que o cenário mudou. E ainda hoje elas são relutantes em investir nesta área, muito embora esteja provado que é mais barato tratar esgoto do que tratar água de má qualidade. E parte desta culpa é nossa, que não sabemos escolher nossos governantes, que seriam os grandes disseminadores e executores destas mudanças.
IHU On-Line – Quais são as tecnologias existentes para tratar a água? Por que elas não são adotadas no Brasil?
Wilson Jardim – Há várias tecnologias disponíveis, as quais chamamos de tecnologias de polimento. Não são usadas porque as concessionárias não querem, ou não se sentem pressionadas a fazer isso.
IHU On-Line – Recentemente o senhor declarou que a Portaria 2.914, do Ministério da Saúde, que normatiza a qualidade da água potável, é muito estática. A portaria precisa de uma revisão? Em que sentido?
Wilson Jardim – O mundo anda mais rápido do que a burocracia. A cada ano temos mais de mil novas substâncias sendo introduzidas no nosso dia a dia. Recentemente a portaria foi revisada, mas este processo precisa ser mais dinâmico.
(EcoDebate, 27/02/2014) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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O Prof. Wilson Jardim ataca muito bem o problema: nossos mananciais de água estão contaminados por esgotos sanitários e as estações de tratamento de água não são capazes de remover certos contaminantes orgânicos. Por outro lado, as estações de tratamento de esgoto, por realizarem tratamento biológico, removem tais contaminantes. Por isso, o problema existe onde não existem estações de tratamento de esgoto e elas não vão existir enquanto não tiverem um valor econômico agregado. Afinal, não podemos nos esquecer de que vivemos num país capitalista.
É por isso que defendo as estações de potabilização de esgoto, que transformam o esgoto em água potável, ainda inexistentes na América Latina.
Uma dúvida que me veio quando li esse estudo: a cafeína é utilizada como marcador para verificar a contaminação geral das águas dos mananciais em cada capital. A capital com maior contaminação foi a de Porto Alegre.
Porém Porto Alegre tem uma diferença cultural em relação ao restante do país: um altíssimo consumo de chimarrão, por quase todos e a quase qualquer hora do dia. E chimarrão é quase que um suco de cafeína. Isso não pode ter modificado os dados da cidade?
Não que a situação dos mananciais no Brasil não esteja na penúria. Basta andar um pouquinho pelas Marginais Tietê ou Pinheiros, ou tentar se lembrar da última vez que se viu um rio urbano em que não se tivesse nojo de encostar na água coalhada de espuma, garrafas e etc. e tal. Nisso concordo com o Paulo Afonso, o ideal seriam estações de potabilização de esgoto. Mas enquanto isso, boa parte do esgoto do Brasil nem sequer é coletado, e escorre por valetas nas ruas.
Oi Mariana!
Quanto à cafeína, deve-se gerar uma correlação entre níveis de cafeína e contaminantes emergentes, e cada região/manancial deve ter uma relação específica, pois como você bem falou, alguns lugares consomem mais cafeína que outros.