Quem de fato impede o direito de ir e vir, artigo de Gilvander Luís Moreira
Ficou muito claro para todos os que tiveram acesso, no dia 04 de fevereiro de 2014, ao perfil no facebook de uma pessoa que tem um alto cargo de confiança na Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), MG, e que ainda por cima ocupa um cargo público de magistério, o que pensa a Administração Municipal de Belo Horizonte, e quem a apoia, sobre o direito das pessoas pobres na nossa cidade. Foi postado o seguinte comentário: “Sem entrar no mérito dessa ou daquela manifestação, mas fechar a avenida mais importante da cidade pra mim é repugnante. E os direitos das outras pessoas, estejam em ônibus ou carros? Ambulâncias que não andam, mães que precisam buscar seus filhos e não conseguem chegar, bombeiros parados. O nome disso não é democracia. Antes, é sua antítese.”
Ela se referia ao fato de pessoas representantes das 8.000 famílias das Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, da Região do Isidoro, em Belo Horizonte, estarem acampadas na porta da Prefeitura de Belo Horizonte, na Av. Afonso Pena. De fato, a manifestação dificulta ainda mais o trânsito da cidade que já é horrível em boa parte do dia na região. Aquelas famílias estavam ali reivindicando abertura de diálogo com o prefeito de Belo Horizonte, Sr. Márcio Lacerda, e com a PBH para evitar os despejos de 8 mil famílias das três ocupações, acima mencionadas, pois o Comando da Polícia Militar já tem em mãos ordens para forçar o cumprimento da ordem judicial que quer expulsar aquelas pessoas do lugar onde lutam para morar, demolindo as cerca de mil casas de alvenaria e milhares de barracos de lona preta ou de madeirite.
Caso não fossem a intransigência do prefeito de BH e o descaso das autoridades públicas para o reconhecimento do direito fundamental à moradia não haveria acampamento diante da PBH e nem bloqueio de trânsito. É indiscutível que todas as pessoas devem ter no mínimo o direito de morar, o direito de descansar o corpo para poder trabalhar no dia seguinte. Como bem explícito no comentário da “autoridade” muncipal o que ela não quer é entrar no mérito da questão. Ou seja, a administração está pouco se importando com a situação de penúria e de violência que cotidianamente fustiga a população empobrecida e injustiçada. Acomodados em seus confortáveis lugares sociais querem que nada perturbe os seus dias, em vários empregos para acumular mais riqueza.
Contrariamente ao comentário injusto, o que temos de exigir é que os detentores de cargos públicos entrem sim no mérito da questão. É o mínimo que devem fazer para honrar os seus cargos e os altos salários que recebem, pois são pagos com dinheiro público. Todos temos responsabilidades diante dos graves problemas sociais que infernizam a vida de todos na cidade, todavia de forma muito mais violenta as das famílias pobres, abandonadas na periferia de tudo. Pior do que comprometer o trânsito será desabrigar e jogar nas ruas 8 mil famílias só em Belo Horizonte.
Passeando pelo perfil da funcionária de confiança da PBH no facebook, podem-se ver fotos de inúmeras viagens internacionais, em ambientes luxuosos. Não é mesmo de se estranhar a falta de sensibilidade. Se perguntarmos a ela e a todos/as os/as amigas dela que teceram comentários concordando com a postagem no seu perfil, compreenderemos melhor a razão de tudo isso: 1) Quem foi que suou muito para construir as casas e os apartamentos confortáveis onde vocês moram? 2) Quem trabalhou muito ganhando salário injusto para fabricar os automóveis luxuosos que vocês andam? 3) Quem faz a comida que vocês comem todos os dias? 4) Quem são as domésticas que limpam as casas e cozinham para vocês? 5) Quem são e onde moram as babás que cuidam (ou cuidaram) dos seus filhos? 6) Quem paga a maior parte dos impostos nunca revertidos com justiça para as políticas sociais necessárias na cidade? Quem paga os altos salários de vocês servidores públicos? O povo, inclusive e principalmente os que menos recebem benefícios.
Entendemos não ser preciso fazer outras perguntas, tais como: a) Se você com os seus filhos estivessem sob o sufoco do aluguel, será que também não achariam justo lutar por uma casa própria? Se vocês fossem tratados da forma como o prefeito Márcio Lacerda e vocês estão tratando os pobres que ousam lutar pelos seus direitos, será que estariam mostrando toda essa pompa no facebook, ou contrariamente estaria mostrando indignação?
Ponham o dedo na consciência e percebam que vocês estão tão distantes da realidade dos pobres que, assim, só gostam da força de trabalho deles. Você, ainda por cima professora de faculdade pública, desrespeita a dignidade humana, as belezas, os dons, as criatividades e os talentos que existem em todas as pessoas que tentam com luta justa mudar essa absurda injustiça na cidade.
Tristes de nós se não fossem os outros na nossa vida! Deveriam aprender com o filme O Náufrago para ver como o outro nos dignifica. Saibam que grande parte da classe trabalhadora que constrói a cidade e a faz funcionar todos os dias são pessoas pobres que vivem sufocadas pelo preço do aluguel, ou sob a humilhação de sobreviver de favor. Quanta humilhação e discriminação sofrem!
Vocês conseguiriam sobreviver uma semana debaixo da lona preta em um barraco de qualquer uma dessas ocupações? Que democracia é essa que joga parte do povo à margem da sociedade?
Olhem mais profundamente e reconheçam que quem, em última instância, atrapalha o trânsito e cria caos na cidade/sociedade é o prefeito Márcio Lacerda (Poder executivo), porque não ouve, não dialoga e não negocia com os pobres e nem com os movimentos sociais; é a juíza Luzia Divina (TJMG) e os juízes quando desrespeitam os princípios constitucionais, tais como, respeito à dignidade humana, função social da propriedade, que não exige reassentamento prévio antes de mandar despejar; é a classe dominante e todos os que se beneficiam do sistema do capital, porque geram e consomem o luxo, enquanto empurram para o lixo a maioria da classe trabalhadora.
Enfim, detentora de cargo de confiança e apoiadores do status quo injusto, pensando e agindo assim – com intransigência e intolerância – vocês estão violentando os que trabalham duro para sustentar o luxo de vocês. Bem dizia o grande Marx: “O lugar social determina o lugar epistemológico.” Ou como disse uma pessoa em situação de rua: “Nossos olhos estão nos nossos pés.” Vemos o mundo a partir de onde pisamos. Ouçam um bom conselho: Parem de pisar só nos tapetes vermelhos. Venham pisar na poeira das ocupações. Venham fazer sauna debaixo dos barracos de lona preta das ocupações. Venham para o meio dos pobres ouvi-los. Venham ver e contemplar os rostos sofridos. Venham conhecer a luta árdua de mães que fazem o milagre de sobreviver com salário mínimo para dar mais braços para construir as suas casas, fabricar os carros e produzir a boa comida que vocês comem. Assim, talvez, vocês se converterão de fato em defensores da democracia.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 17 de fevereiro de 2014.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – http://www.twitter.com/gilvanderluis – facebook: Gilvander Moreira
EcoDebate, 18/02/2014
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Padre, o senhor está certo mas está errado! Paradoxal, não? Pois é. Injustiças mil existem e, por óbvio, a corda arrebenta sempre no lado mais fraco. E mais fracos são os pobres e desprovidos da sorte, como se diz usualmente, até porque os fazemos terem a auto estima baixa. Porém, pense, todos os problemas não têm uma só solução. Concordo que antes da retirada dever-se-ia promover o reassentamento, mas, concordo também, que antes a invasão não deveria ter sido permitida. Penso exatamente igual a você, quando agradeço a Deus, todos os dias, pelas pessoas, empregadas, babás e outros prestadores de serviços, “gente boa”, que passaram pela minha vida, cuidaram da minha casa e dos meus filhos pequenos para que eu pudesse trabalhar e sustentá-los. Mas lembro-me, também, de uma conversa que tive, “morrendo de pena”, com um “morador de rua” (entre aspas porque nas ruas não é lugar de se morar) que me disse: moro aqui na rua, com minha mulher. Não me preocupo com nada, aqui lavo minhas roupas, durmo e como o que me dão as pessoas que têm dó de mim (e riu), não tenho que pagar impostos, trabalho quando quero, tomando conta de carros na rua – às vezes lavo um ou outro, e todos os dias tenho dinheiro no bolso porque não falta quem me dê, porque todos os que moram por aqui são meus amigos e gostam de mim. Seu semblante irradiava tranquilidade quando me disse: sou mais feliz do que vocês, porque não tenho que me preocupar com nada. É claro que a vida desta forma não me faria feliz, nunca! Mas saí sem entender a complexidade do ser humano: enquanto na minha vida, fruto da criação e da educação que tive, há tanta exigência de comportamentos, de postura, de obrigações maiores que de direitos, de estudar, trabalhar, assumir responsabilidades de toda ordem, na vida do outro (e de outros) é tudo diferente, é o oposto. Portanto, Padre, não existe uma solução sózinha para tudo e a visão de cada pessoa depende do ponto aonde se encontre para observar o que se lhe dispõe a vida, ou seja, do ponto de vista de cada um. Para o administrador público, que só pode fazer aquilo que a Lei lhe autoriza (em tese), nada poderia ser feito em plena Avenida Afonso Pena, além de atrapalhar o trânsito (cada vez mais caótico, e a culpa não é do Prefeito) e impedir a outros cidadãos de irem e virem conforme lhes outorga a Constituição. Quanto à Juíza (não conheço o processo), a ela cabia julgar de acordo com o que conste nos autos, e se não fez isso deve haver recursos a serem aviados nas instâncias superiores. Quanto a Carl Marx, Padre, ele é maravilhoso somente na literatura e dentro dos Livros que escreveu, haja vista o desastre das nações comunistas que “tentaram” seguí-lo. Sabemos que os governantes atuais deste País nosso têm tendência a repetir tais desastres, mas que Deus nos proteja contra eles! Ser sonhador é belíssimo, ser contra injustiças também é. Mas problemas exigem soluções, não tolas divagações! Desculpe-me, eu que sei das coisas muito menos que você, até porque não sou filha de lavrador, mas sou descendente de um homem pobre, que gabava-se de ter vindo da Roça para Belo Horizonte e ter começado a trabalhar com somente 6 anos de idade (acho que exagerava um pouco, talvez 10 anos), e cresceu, trabalhou, enricou um pouquinho e criou família numerosa com o suor de seu rosto e o suor da mulher com quem teve prole numerosa. Antes da apologia à miséria, façamos apologia ao trabalho e à dignidade humana! Com o devido respeito! Abraços.
Gostaria de aplaudir o lindo comentário da Elisa.
Um belo tapa na cara, que talvez o alvo nem tenha sentido dada sua anestesia social. Pena mesmo que estas pessoas empoleiradas no poder possuem a cara feita de pau (e um coração de pedra) para não sentir o peso da “mão” colocadas nestas sábias e duras palavras…