Mobilidade urbana: um desafio paulistano, por Jorge Wilheim
Mobilidade urbana: um desafio paulistano
Jorge Wilheim
Museu Lasar Segall, Conselho da Cidade e da Fundação Bienal, São Paulo/SP, Brazil
RESUMO
Na “leitura” de uma cidade distingo infraestruturas físicas e sistemas de vida, a fim de avaliar se as primeiras dão suporte adequado às segundas. Para a abordagem e compreensão da cidade dou mais importância a aspectos antropológicos do que aos estatísticos. Para avaliar mobilidade urbana há que considerar três fluxos: os imateriais (informações), cargas (bens) e pessoas. Na de pessoas há expectativa de proximidade de embarque, pontualidade e conforto. Transporte público é sistema, do qual participam os diversos modais, inclusive o do pedestre. No futuro haverá mais locação do que propriedade privada do automóvel; e indústria de reciclagem dos elementos de carros usados. Deve o direito à mobilidade ser gratuito para o usuário ou ser por ele pago com subsídio? Políticas públicas deverão ter no urbanismo um processo de melhor gestão urbana, diminuir necessidade de deslocamentos, alterar o uso do carro, monitorar serviços com participação pública, sistematizar modais, garantir pontualidade e conforto do transporte.
Palavras-chave: Infraestruturas e sistemas de vida, Mobilidade urbana, Expectativas (em transporte público), Viário (insuficiente e inelástico), Automóvel (futuro), Regulação e gestão urbana.
ABSTRACT
When “reading” a city, I distinguish physical infrastructures from life systems in order to assess whether the former provide adequate support for the latter. To approach and understand a city, I attribute greater importance to anthropological than to statistical aspects. In evaluating urban mobility, we must consider three different flows: of intangibles (information), freight (goods) and people. Regarding the flow of people, the expectations are proximity to boarding points, punctuality and comfort. Public transportation is a system comprising various modes, including pedestrians. In the future, there will be more leasing than ownership of automobiles, as well as an industry devoted to recycling used cars parts. Should the right to mobility be free of charge to users or should they be made to pay, albeit with subsidies? Public policies must apply urban planning to improve urban management, reduce the need to commute, change car usage patterns, monitor services with governmental participation, systematize transportation modes, and ensure punctuality and comfort in transportation.
Keywords: Infrastructure and life systems, urban mobility, expectations (in public transportation), road system (insufficient and inelastic), automobiles (future), regulation, urban management.
A vida urbana
Ao buscar soluções para os inevitáveis percalços da vida urbana, proponho que, em lugar de iniciar tal exame pela leitura de estatísticas, nos aproximemos da cidade através da leitura de sua paisagem, física e humana. Com efeito, ao circular, preferivelmente na condição de pedestre ou de ciclista, a fim de ter o tempo e a calma necessários ao exercício da percepção, o que veremos é uma sequência de paisagens. Conduzidos pelas vias e outros espaços públicos, a leitura da cidade de São Paulo nos revelará um descaso pelo sítio natural e sua topografia, contradizendo a potencialidade perdida de amplos horizontes propiciados pelos declives; ou, ao contrário, a paisagem à nossa frente poderá enaltecer os rasgos de céu e o sol aquecendo as calçadas. Estranharemos também o que ocorreu com suas grandes várzeas: a do Tietê e a do Pinheiros, ambas com os amplos meandros e cursos de lentos rios variáveis, decorrentes da pequena declividade (6%) que eles percorrem no município. Em lugar de um território que acolhe os rios, suas matas, tornadas de uso urbano, veem-se hoje moradias sujeitas a inundação e edifícios que poderiam estar em lugar mais adequado.
A paisagem urbana, além de revelar volumes construídos e intensidades de ocupação do solo, também evidencia o movimento de pessoas e de veículos e as condições das estruturas físicas que suportam tais movimentos. Por isso, o segundo passo para a apreensão de uma cidade será o levantamento do relevo do sítio e o das infraestruturas físicas, das redes de vias e demais malhas: trilhos, redes aéreas para fins energéticos, redes de água e esgoto. Ao descrever as infraestruturas haverá que explicar o suceder histórico da ocupação do solo urbano, tema esse tratado em parágrafos posteriores.
O conjunto de estruturas físicas e a paisagem urbana conduzem finalmente nossa percepção (leitura), mais antropológica que estatística, a identificar os principais sistemas de vida da cidade. A vida na cidade enfeixa os diversos movimentos cotidianos e usos que cada cidadão realiza para viver na cidade. O sistema de vida de cada um compõe-se de múltiplos elementos e ações repetidas rotineiramente na ida à escola ou ao trabalho, na escolha de itinerários, na percepção rotineira de elementos físicos que dão familiaridade ao percurso rotineiro: detalhes da calçada, fachadas de edifícios que se destacam, ponto de embarque, banca de jornaleiro, cafeteria, pessoas que cotidianamente são companheiros de viagem, determinada paisagem de rua que sinaliza a mudança de modo de transporte (Wilheim, 2003).
Há inegavelmente sistemas de vida comuns a muitas pessoas, como a ida a um estádio ou a um espetáculo; também há locais e calçadas que servem de infraestrutura para múltiplos sistemas de vida; esses pontos ou itinerários de concentração deverão ser considerados como prioritários pois suas qualidades, assim como os seus defeitos, influem, qualificando ou prejudicando, a qualidade de vida de maior número de cidadãos.
A associação entre sistemas de vida e infraestruturas físicas nos revelará sua adequação ou a inadequação: suportará a estrutura física o sistema de vida que nele se apoia? Ou, como é mais comum, a infra é deficiente para suportar o sistema de vida? Também poderá ocorrer que exista infra física sem que haja sistema de vida algum a nela buscar suporte, embora por vezes o órgão acabe criando uma função…
Nossa análise da cidade também se deterá na relação da dinâmica urbana com os recursos e atributos naturais do sítio: estará preservando ou liquidando as árvores preexistentes? Estará a sua terraplanagem acabando com terrações e visuais importantes? Estarão seus córregos sendo transformados em esgoto a céu aberto? Estará a poluição das águas e do ar prejudicando a qualidade de vida dos cidadãos? Em outros termos: será a dinâmica urbana ambientalmente sustentável?
Penso que conviria fazer uma reflexão sobre números (quadros demográficos, estatísticas de crescimento, migrações, dados culturais e étnicos, antropologia urbana etc.) somente após a composição mental que resulta da leitura perceptiva acima descrita. Essa reflexão poderá transformar dados em informações e essas em conhecimento, em compreensão do fenômeno urbano em questão.
Para tal é também preciso usar as lentes de dois importantes eventos ocorridos no mundo a partir de 1991, ano em que se firma o protocolo da WEB, (a) inaugurando uma era em que a comunicação acelera todos os processos de transformação cultural e econômica; assim como (b) o processo de gradual distanciamento e autonomia do setor financeiro do capitalismo que, ao “abandonar” a economia, em escala global, gerou uma crise, evidenciada em 2008, sintoma de profundas transformações a ocorrerem no campo do regime capitalista. E, finalmente, (c) a insatisfação latente que, em países de regime democrático, reclama por uma “redemocratização da democracia” que privilegie a justiça social, a prestação de serviços e a ética.
Qual é o retrato de São Paulo revelado por esse procedimento de análise? São Paulo apresenta uma dinâmica urbana de incessante movimento, com escassos espaços para o gozo, individual ou coletivo, de paisagens, cujo potencial natural foi desperdiçado pela cupidez com que cada lote foi edificado. Os espaços públicos encontram-se degradados, seja no aspecto físico de difícil uso pelos pedestres, seja pela sinalização defeituosa, e pelos muros hostis que por vezes cercam quarteirões inteiros, de propriedades privadas. A arborização, isto é, a proteção da sombra em país semitropical, é escassa, a não ser em certos bairros, como os Jardins, subtraindo da maior parte dos cidadãos o prazer estético de ver belas floradas multicores a assinalar a sequência das estações. As principais vias estão preenchidas por veículos que mal circulam, revelando uma péssima relação entre número de veículos e vias disponíveis para sua circulação. Em resumo: a qualidade urbana está muito aquém da expressão econômica de São Paulo, muito abaixo das expectativas de sua população e com serviços e equipamentos mal distribuídos. Esta conclusão está expressa no Indicador de Bem-Estar Urbano (IBEU) calculado pelo Observatório das Metrópoles (Tabela 1), com dados de 2010, e que atribui à cidade de São Paulo a nota 0,757, e à Região Metropolitana a nota 0,615.
A natureza da mobilidade urbana
O que se move em uma cidade? Qual a natureza da mobilidade em São Paulo? Deve-se considerar qualitativa e quantitativamente a mobilidade de pessoas, de cargas (bens) e de ideias (informações).
A circulação de ideias, isto é, os fluxos imateriais não apresentam ainda dificuldades de circulação ou congestionamento de vias. Mas ainda não são captados igualmente nos diversos distritos da cidade de São Paulo. A proliferação de antenas sobre prédios ainda revela uma tecnologia de transmissão em progresso; a concentração de informações em “nuvens” poderá levar a uma gradual diminuição de importância dessas antenas. Isso porém traz a necessidade de democratizar a captação e o acesso gratuito à internet, criando-se “pontos” de acesso nos bairros ainda escassamente servidos por pontos privados (“cybercafés”, clubes e instituições, hotéis etc.), especialmente em locais de concentração de lazer, por exemplo: em campos de futebol, clubes de bairro e pontos de cultura. A construção dessa malha de acesso gratuito à internet constitui um ponto qualificador importante.
No que tange à circulação de cargas (bens), ainda se ignoram origem e destino dos caminhões, grandes e pequenos, furgões e vans que percorrem as ruas de São Paulo. Quando, em 2004, ultimava-se o Plano de Transporte, cuidando, portanto, prioritariamente da circulação de pessoas, chamava-se a atenção para a necessária análise da circulação de cargas. A implantação do anel rodoviário, assim como a futura e necessária implantação do anel ferroviário retiram da cidade uma parte do transporte de cargas que se destina a outras cidades: porém a cidade de São Paulo produz e recebe cargas em grande (e desconhecida) quantidade. Apenas agora, em 2013, a prefeitura apresta-se a iniciar um estudo da origem e destino das cargas. Atente-se para o fato de que o crescente número de aquisições via internet tem inevitavelmente reflexo sobre o trânsito, pois essas compras implicarão uma entrega de bens a domicílio…
Finalmente, temos que considerar o transporte de pessoas, como o fez o Plano de Transporte de 2004, descurado de 2005 a 2012 e retomado agora em 2013. As pessoas que por São Paulo circulam diferem, como vimos, em seus objetivos, em suas características pessoais, no modo escolhido e em suas expectativas. De qualquer modo, trata-se de número diário muito elevado: são 23.519.670 de viagens originadas no município de São Paulo, em um total de mais de 38 milhões de viagens em sua Região Metropolitana!1
A ida do domicílio ao local de trabalho ou ao local de ensino constitui movimentos regulares; a busca de abastecimento doméstico e a ida a um local de recreação e lazer também são importantes. A primeira expectativa é da proximidade do ponto de embarque, seja qual for o modo de transporte adotado. A não ser no caso do automóvel privado, por ora ainda estacionado no próprio domicílio, nos demais modos conviria que o ponto de embarque não se distanciasse mais de 500 metros. Há autores que consideram que essa distância seria razoável para o uso do metrô e do trem urbano, mas, no caso do bonde e ônibus, isto é VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) e VLP (Veículo Leve sobre Pneus), a distância não deveria ultrapassar 300 metros do domicílio.
A fim de evidenciar a atual deficiência de atendimento dessa expectativa, procedemos ao seguinte exercício: sobrepomos à planta da cidade de São Paulo uma virtual malha quadriculada com 500 metros de lado. Aplicamos um layer com as linhas de metrô e de trem existentes, em construção e em projeto. Em outra cor aplicamos um layer com as linhas de ônibus em operação. Ao nos debruçarmos sobre esse mapa (Figura 1) percebemos: (a) a grande quantidade de bairros periféricos muito mal atendidos; e (b) a grande distância que deve ser percorrida a pé ou de bicicleta para se alcançar um ponto de embarque.2
A segunda expectativa é a pontualidade, fator essencial para quem vai à escola ou ao trabalho. Para atender a esse requisito fundamental, é preciso que o eículo circule em faixa própria, exclusiva, não se arriscando à negociação de espaço com automóvel privado. A exclusividade do espaço de circulação permitirá a manutenção de velocidade razoável e periodicidade constante.
A terceira expectativa é o conforto, devendo o passageiro viajar preferivelmente sentado e em assento confortável e limpo, além de haver reserva de assentos para idosos, gestantes e espaço para cadeirantes. A qualidade não se limita à escolha de bons materiais, mas sim também ao desenho e à qualidade da manutenção e limpeza dos veículos. Voltarei ao assunto mais adiante, ao tratar dos diversos modais de transporte.
As limitações da estrutura viária disponível
De que São Paulo estamos falando? Durante quase quatro séculos essa cidade acocorava-se sobre uma pequena colina, entre o vale do Tamanduateí e o vale do Anhangabaú, sítio de fácil defesa na tecnologia bélica dos séculos anteriores à Revolução Industrial… A pequena população (cerca de 65 mil em 1890) cabia nessa colina, e seus cavalos e muares eram postos a pastar nos arredores, nos sítios espalhados pelo que hoje se nomeia “centro expandido”.
A cafeicultura, cultivo destinado à exportação, exigiu a construção de ferrovias ligando a zona produtora (Campinas etc.) ao porto de Santos, passando convenientemente por São Paulo. Percebeu-se então que a ferrovia não conseguiria subir a colina, estabelecendo-se estações aos pés da cidade, nas áreas planas do Brás e do convento da Luz. E a cidade teve que descer da colina e estender-se para perto das estações, com seus inevitáveis anexos de estação: comércio, pensões, armazéns, bordeis, abastecimento rural, oficina de reparos.
Posteriormente, entre 1890 e 1900, as grandes migrações, mormente de italianos, com suas demandas habitacionais, resultaram em gradual substituição, aleatória e privada, de chácaras por loteamentos, criando-se uma rede de vias orientadas pelo interesse deste ou daquele sitiante/loteador. Outra migração, a de nordestinos e os do interior do Estado e de Minas Gerais, forneceu a pressão de demanda para o crescimento da cidade durante o século XX; não apenas preenchendo os vazios ainda existentes, mas também subindo encostas perigosas e ocupando várzeas inundáveis – assim como verticalizando sua construção.
Atualmente, contudo, a dimensão da cidade, para exame da mobilidade, extrapola os limites político-administrativos do município. Há, em 2010, cerca de três milhões de pessoas que a cada dia se deslocam de seu município para o vizinho (geralmente para o de São Paulo)3para fins de trabalho ou ensino, ou abastecimento ou atendimento de saúde.
O domínio dessa movimentação rotineira e quase diária alcança a Região Metropolitana de Campinas, a Região Metropolitana de São Paulo, a Região Metropolitana da Baixada Santista e os municípios de Sorocaba e de São José dos Campos. Essa é a dimensão da macrometrópole de São Paulo, sua região urbanizada. François Ascher (2010) denomina tais regiões metápolis, isto é: “além da cidade” ou “transformação da cidade”.
As estruturas físicas dessa região urbanizada carecem de integração e de modernização. Elas decorrem de crescimento com enorme atraso de implantação do plano metropolitano de 19944 e de um atraso político e tecnológico bem representado pelo abandono da ferrovia, lentidão de implantação do metrô, restrição desse ao município, e obras que apenas favoreceram o crescente uso do automóvel durante décadas. Embora entre 1975 e 1979 se tenham criado as estruturas institucionais necessárias ao planejamento metropolitano, tudo foi abandonado e a própria Emplasa, em que ainda se concentra o saber metropolitano, foi periodicamente ameaçada de extinção, revelando a miopia de políticos e governantes. Hoje o grave congestionamento de todos os acessos urbanos a rodovias permite antever, em curtíssimo prazo, uma situação caótica de paralisação diária do trânsito à entrada e saída da cidade.
Não se procedeu ainda a uma análise da extensão da malha do metrô para municípios vizinhos, como Guarulhos (segunda cidade do Estado, em população), Osasco, Taboão da Serra, Embu e Itapecerica. Afirma-se que tais extensões são desnecessárias pois o trem de subúrbio (da CPTM) funciona “praticamente” como o metrô. Não é bem verdade: a frequência dos trens do metrô chega a 90s, enquanto os trens da CPTM têm variação de 6 a 10 minutos. No primeiro modo as estações se distanciam cerca de mil metros, enquanto a do trem, em média a cada 2.500 metros.
Tampouco está claro o que ocorrerá com a implantação do Trem de Alta Velocidade (TAV). Embora ele se destine, nessa sua primeira fase, a ligar Campinas ao Rio de Janeiro, passando obviamente por São Paulo e pelo Vale do Paraí- ba – verifica-se que cerca de 70% de seus passageiros originam-se e destinam-se a alguma estação da macrometrópole paulista! Estima-se que o TAV entrará em operação após 2020, mas não se configurou ainda a rede metropolitana da CPTM que ligaria a região de Campinas e Sorocaba à de São Paulo, nem está definido se existirá ou não o “trem do aeroporto” anunciado pelo governador há pelo menos dez anos…
Há também, no caso de São Paulo, uma razoável confusão de gestão no transporte macrometropolitano sobre pneumáticos: além do excessivo uso do automóvel privado, temos ônibus intermunicipais públicos (concessão da EMTU) e privados, operados por diversas empresas. Há igualmente grande número de ônibus fretados por empresas privadas, destinados a seus funcionários; ou cujo fretamento é simplesmente oferecido por empresas transportadoras.
Essa variedade de transporte sobre pneumáticos provoca o congestionamento diário mencionado, consumindo por vezes uma hora à entrada (ou saída) de São Paulo, por oito rodovias: Dutra e Ayrton Senna para leste; Fernão Dias, Anhanguera e Bandeirantes para o norte; Raposo Tavares e Castelo Branco para oeste; e Anchieta e Imigrantes para o sul. Em outros termos: a infraestrutura viária para esse modal de transporte macrometropolitano está saturada e não se podem esperar melhorias de capacidade para acolher esse fluxo diário. Nem vale a pena descrever o que ocorre em dias de fluxo extraordinário (embora seja sua periodicidade previsível): passa de deficiente para inaceitável!
Quanto à infraestrutura estritamente dentro do município de São Paulo, essa já não permite uma circulação decente de automóveis e ônibus: a velocidade média é de 22 km/h e, nas horas diárias de pico, o congestionamento chega a 120 km e a velocidade média dos veículos sobre rodas desce para 18,5 km/h.5Aproxima-se portanto da velocidade de um corredor de maratona (20 km/h) ou de uma carroça puxada por cavalos (26 km/h)!…
Embora existam formas de melhorar ligeiramente a velocidade média, como a eliminação de estacionamentos junto ao meio-fio, ou restrições mais severas à circulação de automóveis privados, como leremos mais tarde, a verdade é que não há como aumentar o espaço do sistema viário na cidade para acolher os cerca de 872 veículos novos que diariamente são emplacados pelo Detran nesta cidade.
O transporte para o público
O transporte pode ser público ou privado; porém deve atender sempre aos pré-requisitos de qualidade exigíveis por parte dos usuários. É necessário, em primeiro lugar, conceituar o transporte como um sistema, do qual participam de forma integrada os diversos modos de efetivá-lo: metrô, trem, ônibus (VLP), bonde (VLT), motocicleta, bicicleta, pedestre. O automóvel, seja o privado, seja o táxi, também é parte do sistema. Por integração sistêmica entende-se que um usuário possa ir por trajeto curto de bicicleta até uma estação de metrô, para então viajar por trajeto longo. Ou que um pedestre caminhe, sobre calçada perfeita, até um terminal ou ponto de embarque de ônibus para completar sua viagem. Também ocorre uma integração no que tange ao bilhete único a custear por viagem mais de um modo de transporte.
Para que os diversos modais possam integrar-se em um sistema, seria importante partir da conveniência do usuário apontada acima: um ponto de embarque a não mais de 500 metros do domicílio e do destino. Para alcançar tal resultado em uma cidade das dimensões de São Paulo, o metrô deveria constituir uma malha, com estações em seus nós, a fim de permitir a cada usuário que organize seu itinerário através do somatório de trechos pertencentes a mais de uma linha. Somente dessa forma, ao diluir-se a densidade de uso de uma linha, se obterá uma distribuição de passageiros pela malha, evitando o que hoje ocorre: superlotação em horas de pico em uma única direção e vagões vazios no sentido contrário.
Quanto ao ônibus, deverá ele transitar por corredor e em faixa própria, como já constava no Plano de Transporte de São Paulo de 2004. Os que consideram que usando um termo em inglês se assinala um milagroso atributo de modernidade usam a sigla BRT (Bus rapid Transit), em lugar de VLP, para descrever o ônibus em faixa exclusiva. É também necessário prever a ultrapassagem ocasional, ocupando em certos pontos mais uma faixa destinada a essa operação. Alcança-se assim uma velocidade média de 36 km/h, enquanto, sem corredor exclusivo, sua velocidade média em São Paulo limita-se a 14 km/h. O tempo de viagem também pode ser reduzido mediante operações de embarque/desembarque mais eficientes; para alcançar tal resultado, o veículo deverá ser dotado de numerosas portas (à semelhança do vagão do metrô) e a plataforma da estação, no mesmo nível do piso do ônibus, preverá pagamento prévio da passagem. Ao redesenhar o carro para aumentar o número de portas, também dever-se-ia cuidar de um chassis próprio, evitando-se a utilização de chassis de caminhão, mais altos. Enquanto esse chassis mais baixo não for adotado, os ônibus deverão ter um degrau suplementar que abrirá para facilitar o embarque e o desembarque de pessoas idosas ou de mães com crianças.
A reutilização do bonde (VLT) tem causado polêmica. Não o entendemos como um veículo substituto do metrô ou do ônibus para longas distâncias. Mas, sim, como um veículo de média capacidade e de médias distâncias, ótimo para ligações entre bairros ou mesmo dentro de uma subprefeitura (Figura 2). Ele opera a uma velocidade média de 30 km/h, com paradas a cada 300 metros, correndo sobre leitos que podem ser gramados, de sete metros de largura para linha dupla, e sua alimentação energética prescinde de rede aérea, pois os mais modernos utilizam rede subterrânea ou sistemas de alimentação automática e periódica ao alcançar cada parada. Compare-se a capacidade de transporte de ônibus em linhas capilares e do bonde no mesmo circuito, como no exemplo abaixo:6
VLP – 12.000 passageiros por sentido em horário de pico
VLT – 20.000 passageiros por sentido em horário de pico
Veículos automóveis como o táxi se integram no sistema de transporte público, estando disponíveis ao lado de cada estação de trem e metrô ou nos terminais de ônibus, aeroportos e estações de trem. Há nas capitais dos Estados brasileiros cerca de 133 mil táxis, sendo cerca de 33 mil na cidade de São Paulo. Percorrendo em São Paulo cerca de 165 km a cada dia, eles são substituídos, com preços subsidiados, em média a cada três anos. Essa quantidade de veículos dedicados ao serviço do público justificaria um desenho próprio, confortáveis, adequados a essa finalidade: internamente mais altos para facilitar a entrada do passageiro, com capacidade para malas e pacotes, com dois assentos rebatíveis, à semelhança dos renomados taxis londrinos (Figura 3).
A Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) tem renovado sua frota e seus mecanismos de sinalização, de modo a poder oferecer um trem a cada 3-4 minutos em suas 57 estações, que se distribuem nas seis linhas que operam dentro do município. Pretende integrar algumas linhas em um esquema metropolitano (os trens regionais), integrando a região de Campinas, Jundiaí, Sorocaba e São José dos Campos, assim como a Baixada Santista, e reunir essas linhas em uma nova estação de caráter metropolitano denominada “Água Branca” localizada na Barra Funda. A empresa tem alterado o cronograma de seu programa e tampouco propõe uma solução satisfatória para o usuário, para alcançar o aeroporto internacional de Guarulhos: abandonou a ideia de um terminal remoto na Barra Funda, pretende operar com vagões comuns um serviço de passageiros que carregam malas; seu terminal no aeroporto se localizaria a cerca de 2 km do primeiro terminal aéreo, a ser servido, segundo a concessionária, por VLT ou monotrilho… Sistema altamente desconfortável para quem viaja.
A integração da bicicleta ao sistema dependerá da existência de bicicletários confiáveis em todas as estações de metrô e nos terminais de ônibus. A locação de bicicletas ou sua gratuidade, praticada em Paris (cidade plana e sem chuvas tropicais…) mas que também se iniciou em São Paulo. Além de sua inserção no sistema de transporte, a bicicleta também tem seu uso como esporte e como lazer, devendo nestes casos utilizar pistas próprias, sejam os velódromos e as estradas, sejam as trilhas ciclísticas em parques.
No panorama da mobilidade tem aparecido na última década um novo integrante: o motociclista. Em 2012 circulavam no Brasil 19,9 milhões de motocicletas! O motoboy surgiu como substituto necessário do “office boy”, o qual já não poderia atender às necessidades de urgência na entrega de pacotes, envelopes, correspondência no universo de negócios da metrópole, em virtude da crescente lentidão do transporte público. Há em São Paulo 200 mil motociclistas dedicados a essas entregas, chamados de “motoqueiros”, e geralmente servindo pequenas empresas que organizam a coleta e despacho dessas pequenas cargas e correspondências. Geralmente jovens, aguerridos e ousados, infiltrando-se entre as faixas dos demais veículos, ultrapassando-os pela direita e pela esquerda, tem sido alvo de numerosos acidentes: 37 por dia, dos quais três fatais, segundo o Hospital das Clínicas! A elevada taxa de acidentes tem levado a debater-se a instalação de faixas próprias para a circulação destes veículos nas principais avenidas. Também tem-se tentado, em vão, convencer os empregadores dos motoqueiros a pagá-los por mês e não por viagem realizada, pois nesse caso aumenta a ansiedade e a prática de velocidades excessivas a fim de aumentar o número de viagens e, consequentemente, a remuneração do motoqueiro.
Finalmente, mencionemos o pedestre, na condição de principal elemento e usuário do sistema de transporte público. É a partir de suas necessidades e expectativas, anteriormente mencionadas, que deve ser montado o sistema de transporte. O pedestre paulistano é especialmente prejudicado pelo mau estado das calçadas e ruas em que pisa. A topografia torna frequentemente difícil a construção de calçadas confortáveis; o plantio de árvores inadequadas, cujas raízes superficiais tornam irregular o piso, é igualmente um desafio a ser superado. A norma segundo a qual a construção e a manutenção de calçadas são de responsabilidade do proprietário de cada lote tem se comprovado deficiente. As subprefeituras deveriam assumir essa tarefa, de acordo com programação a ser estabelecida em conjunto com os seus usuários, cobrando eventual e posteriormente o seu custo dos proprietários.
Mas o pedestre não é apenas um elemento do sistema de transporte. Ele é, antes de mais nada, um cidadão com direito a fruir o prazer de passear, de perambular (flâner, em francês), sem necessariamente ter sempre um destino certo a ser alcançado no menor tempo possível. Passear permite gozar uma paisagem urbana, participar da vida das ruas, meditar, encontrar outras pessoas, e revela a importância do que acontece e é percebido à altura dos olhos, como bem observa Jan Gehl. Para este tipo de mobilidade é fundamental que os pisos estejam preparados e não constituam armadilhas!7
O automóvel, esta “invenção do diabo”
Deve-se ao dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936) essa definição do automóvel. Com efeito, o diabo, empregando a estratégia da sedução, atrai o ser humano oferecendo-lhe um objeto bonito, sensual, portador do atributo de se mover quando o desejar, com quem e para onde quiser, em uma euforia de conforto e liberdade! Porém – efeito diabólico – o grande número desses objetos desejados resulta inevitavelmente em congestionamentos de todas as vias, poluição do ar que respiramos, ruidoso artefato a nos ensurdecer e em diminuição da qualidade de vida das cidades…
Circulam em São Paulo (2013) 7.491.989 veículos automotores, assim distribuídos:8
7.180.306 | automóveis privados |
33.452 | automóveis táxis |
43.428 | ônibus |
234.803 | caminhões |
Esses números, segundo o Detran, têm crescido nos últimos dez anos à média de 872 veículos por dia!
O crescimento dessa frota circulante é paralela ao aumento dos congestionamentos na cidade (Gráfico 1).9
Ainda segundo o Denatran, o número de automóveis no país, de 2001 a 2011, aumentou dez vezes mais do que a população (136% e 12,2%, respectivamente), alcançando, segundo o Ipea, mencionado por Juciano Martins Rodrigues no Observatório das Metrópoles: 50,2 milhões de automóveis, 19,9 milhões de motos e 7,9 de outros veículos motorizados. Assim, a taxa de motorização (veículos por 100 habitantes) no Brasil passou de 14,2 em 2001 para 22,7 em 2011. Em São Paulo ela alcança 40 e… em Curitiba, 44,9!10
Outras cidades tem tentado limitar o número de automóveis privados, seja aumentando consideravelmente o custo da licença do automóvel (IPVA), seja criando uma licença de circulação; seja, ainda, como em Singapura, outorgando essa licença de circulação por um valor que quase equivale ao preço do carro!…
Outra forma de limitação consiste na cobrança de um pedágio geralmente aplicado para a circulação em determinadas regiões da cidade, como um centro de negócios, usualmente congestionado. Esse sistema tem obtido os resultados esperados no caso de Londres. No entanto, quando o excesso de veículos privados circulando não se restringe a uma determinada região, como é o caso de São Paulo, como definir as “portas de entrada” a partir da quais se deve cobrar um pedágio? O maior congestionamento diário ocorre nas avenidas Marginais, isto é: na periferia do centro expandido! Nesse caso o pedágio passa a representar simplesmente uma taxa a mais, a onerar o IPVA do motorista.
Outra forma de limitação da circulação consiste no rodízio, utilizado em São Paulo, que, ao proibir a circulação por algumas horas referentes a horários de pico de manhã e à tarde de veículos portadores de dois algarismos finais da placa, reduz teoricamente em 20% a circulação da frota privada. Essa forma de limitação da circulação começou em 1997 com o pretexto de diminuir a poluição do ar, cujo principal elemento poluidor em São Paulo é a poeira (elementos particulados) levantada por tantos veículos. Porém, esse argumento foi logo olvidado, pois ficou evidente que a necessidade de limitar a circulação decorria dos crescentes congestionamentos e da diminuição da velocidade média.
Um aumento do horário proibido ou passar a proibição para dois dias semanais acarretaria grande transtorno para quem trabalha com o carro e, em certos casos, o aumento de veículos.
O Brasil foi pioneiro no uso do álcool (etanol) como combustível. Na realidade, Henry Ford lançara em 1908 seus primeiros automóveis, movidos a álcool; a dificuldade de garantir esse combustível a preço fixo levou-o a usar a gasolina, cujo preço, até 1973, quando da criação da Organização dos Produtores de Petróleo (Opep), foi mantido pelo cartel Standard Oil/Shell ao preço nominal de… um dólar o barril (hoje é de cerca de 100 dólares o barril)!
Em 1976, levei ao governador Paulo Egydio Martins, na condição de secretário de Economia e Planejamento, a proposta de colocar todas as viaturas do Estado funcionando a álcool ou a mistura de até 23% de álcool, a fim de propiciar economia na importação de óleo. Isso feito, a experiência resultou no programa nacional Pró-Álcool, do qual o mundo só tomou conhecimento recentemente, festejando o feito menos por motivos econômicos do que por motivos ambientais, pois a mistura de gasolina e etanol, ou o uso de 100% de etanol, diminui a poluição do ar pelo CO2 contido na gasolina.
Além das crescentes dificuldades de circular por São Paulo, será dramaticamente crescente a ausência de espaços para estacionar o veículo privado. Possivelmente, no momento em que for proibido estacionar ao longo do meio-fio, a fim de recuperar toda a largura das vias para a circulação, assistiremos à construção afoita de edifícios/garagens. Mas o preço do estacionamento aumentará consideravelmente…
Qual é, então, o futuro do automóvel privado? A prometida liberdade de circular se verá cerceada, a velocidade prometida por seus motores se tornará inútil, seja pelas leis que restringem a velocidade a 120 km/h nas melhores estradas e 60 km/h nas cidades, seja pelos congestionamentos que não permitirão sequer alcançar tais velocidades. O preço de manutenção de um carro o tornará exclusivo de famílias ricas. Haverá um decréscimo sensível no comércio de automóveis e a implantação de diversos sistemas de locação de pequenos veículos urbanos.
Esse “pay per use” que descrevi em livro publicado em 1994 (Fax – mensagens de um futuro próximo) (Wilheim, 1994) já está sendo operado em algumas cidades. Segundo o sistema que então propunha, o usuário retiraria o primeiro automóvel da fila em postos de serviço, o poria em funcionamento com seu cartão de crédito preparado para tal fim e, após chegar próximo do destino o devolveria em outro posto de serviço; ao retirar seu cartão, estaria ele debitado automaticamente pelo uso do automóvel. Esse veículo, de tamanho reduzido, seria fabricado para esse fim e oferecido a empresas que desejassem comercializar o serviço. É, aliás, para esse fim que a Mercedes-Benz e a Swatch se associaram em 1994 para fabricar o Smart.
Com o nome de zipcar essa locação de pequenos veículos já está operando em Atlanta, Boston, Chicago, Londres, Nova York, Filadélfia, San Francisco, Seattle, Toronto, Vancouver e Washington. Em São Paulo já há uma empresa operando essa forma expressa de locação. A locação temporária não diminui sensivelmente o número de veículos circulando em uma cidade; porém diminui a aquisição privada de automóveis. Tratando-se de veículo pequeno, como o proposto e desenhado pelo arquiteto Jaime Lerner, ocupará menos espaço, seja para circular, seja para estacionar.
Ao tornar-se inútil para o deslocamento urbano diário, o automóvel privado será reservado para atividades lúdicas de pessoas que satisfarão sua volúpia de velocidade nos autódromos, abertos para tal fim. Ou os utilizarão para viajar por rodovias, embora nesse caso também haverá locação. O grande número de veículos tornados obsoletos ou de escasso uso passará a ser reciclado a fim de evitar que atulhem grandes áreas. As empresas especializadas em reciclagem de automóveis, após retirarem todos os elementos líquidos, e desmanchando as peças vendáveis, como vidros, peças mecânicas e eletrônicas, pneumáticos, amassariam a parte metálica e seus resíduos, e após picotagem, voltariam a fornos de siderúrgicas ou a procedimentos de alteração molecular, para finalmente serem usados para diversos fins.
A economia da indústria automobilística viria então a sofrer alterações. E os compradores de veículos seriam responsabilizados pela reciclagem final, pagando por um certificado de reciclagem que acompanharia o carro até seu desmanche final, quando esse certificado será resgatado pela empresa recicladora. Este procedimento já está em operação na Suécia.
A regulação do direito ao transporte
As manifestações que sacudiram o país (e mormente o mundo político…) em junho deste ano postulavam, entre outras causas, reivindicações e protestos, o direito dos cidadãos de circularem por sua cidade gratuitamente: o passe livre. Será o transporte público gratuito um direito? O artigo 6º da Constituição menciona-o entre os direitos fundamentais de natureza social. O artigo 2º da Lei conhecida por Estatuto da Cidade fala em “direito à cidade” e autoriza uma lista de instrumentos passíveis de utilização pelos municípios. Finalmente, em 2012 o Congresso produziu a Lei n.12.587, “Lei Nacional de mobilidade urbana”, cuja generalidade beira à retórica e que não responde à questão econômica central: deve o direito à mobilidade significar a gratuidade do transporte por parte de seus usuários? Deve o custo da operação ser arcado por toda a população, através dos impostos e orçamento municipal, ou apenas pelos usuários (com ou sem subsídio)?
Na cidade de São Paulo o transporte para o público sofreu sucessivas regulações, desde 1994, quando sua operação deixou de ser municipal para tornar-se privada. A concessão da operação, por linhas, foi colocada em licitação e rapidamente formou-se um cartel de empresas que passaram a ganhar contratos. Desses consta a obrigação de obedecer ao plano que seria elaborado pela SPtrans, agência criada pela prefeitura para esse fim. As empresas obtiveram cláusula contratual que lhe garantia um subsídio baseado na quilometragem percorrida por seus ônibus, acarretando excessiva circulação de ônibus com poucos passageiros.
Em gestão da prefeita Marta Suplicy (2001-2004) elaborou-se um Plano de Transporte que racionalizava a distribuição de viagens e atribuía um subsídio baseado no número de passageiros transportados. Nessa gestão criou-se também o Bilhete Único, anos depois estendido ao metrô, acarretando uma diminuição do custo de transporte para os usuários.
Em anos anteriores (1976) estudáramos formas de diminuição do custo de transporte para o usuário, propondo a criação de um Passe do Trabalhador baseado na renúncia fiscal sobre o imposto de renda de empresas que fornecessem direta ou indiretamente transporte para seus empregados. Tratando-se de renúncia fiscal federal, levei a proposta para o ministro Velloso, solicitando sua concordância; no ano seguinte o governo federal anunciava o seu Vale Transporte, novo nome para a proposta que lhe havíamos levado.
Em São Paulo, durante a gestão do prefeito Mário Covas (1983-1985) implantou-se a gratuidade do transporte para idosos. Porém, além das diversas formas de desconto para atender trabalhadores, idosos, estudantes, resta o fato de que transportar tem um custo e deve-se equacionar quem e como tal custo pode ser coberto. Conviria, após cuidadosa e imparcial auditoria das contas, saber se as empresas transportadoras realmente necessitam receber subsídio da prefeitura; ou se, uma vez voltada a operação ao plano original, com suas linhas troncais, a tarifa seria suficiente para cobrir custo e lucro. Caso algum subsídio seja necessário, calculado em razão do número de passageiros efetivamente transportados, talvez se encontre também modo dos proprietários de automóvel contribuírem com uma “taxa de contribuição ao descongestionamento do tráfego”.
Urbanismo, políticas públicas e perspectivas urbanas
A amplitude da questão da mobilidade urbana, assim como a complexidade dos temas nela envolvidos definem o problema como crucial dentro do planejamento das cidades. Essa disciplina tem sido desafiada por outros temas igualmente cruciais, compondo o quadro de perplexidade, instabilidade e perspectivas polêmicas deste início do século XXI. Herdeiro da crise interna ao capitalismo, decorrente da relativa autonomia e domínio do setor financeiro sobre o restante da economia, o século em sua primeira década revela desafios de ordem social, ambiental e econômica.
Esses desafios estão muito centrados nas cidades, à medida que as sociedades se urbanizam de forma acelerada: 50,5% da população mundial (3,5 bilhões em 2010) já vivem em aglomerados urbanos, estimando-se que alcance 70% durante este século.11 Levamos sustos quando uma manifestação de rua evidencia quanto mudou a vida urbana: a internet fornece a energia e as potencialidades que, nas sociedades da Revolução Industrial era fornecida pela máquina a vapor e pela eletricidade.
A inovação em comunicação resultou em uma maior individualização das pessoas, uma ubiquidade maior, um sentimento de simultaneidade, a adequação da economia buscando atender a essa individualização, uma diversificação e superficialização das relações humanas, com a possibilidade da pessoa pertencer ao mesmo tempo a diversas redes (Figura 4). A possibilidade de percorrer múltiplos itinerários de sistemas de vida faz aflorar o que Sartre denominava “a angústia da liberdade”. O futuro das pessoas, no atual contexto, se apresenta sob a dupla forma de potencial e de risco. Vivemos em tempos inseguros…
Justifica-se por isso a preocupação de diversos autores em repensar, reconceituar a disciplina que trata do planejamento urbano. Urbanismo volta a ser vocábulo rico em conotações, abrangendo temas que vão além da mobilidade e uso do solo, incorporando um conteúdo social e cultural, isto é, antropológico, muito rico.
Algumas teses, mais ou menos apaixonadas, têm surgido para dar um tom novo ao urbanismo:
• Urbanismo sustentável
• New urbanism
• Urbanismo orientado pelo trânsito
• Planejamento estratégico
Três décadas de uso e abuso dos vocábulos “sustentável” e “sustentabilidade” banalizaram a importância da adjetivação de “desenvolvimento” criada pelo Relatório Brundtland de 1987.12 Nesse importante documento da ONU sublinhava-se que o desenvolvimento deveria manter-se, isto é, ser sustentável, evitando-se o desperdício dos recursos naturais, renováveis ou não, assim como a diminuição das oportunidades de trabalho. A adjetivação foi se tornando cada vez mais “verde”, chegando a ser substituída pelo substantivo “sustentabilidade”, olvidando-se que o tema estava vinculado ao desenvolvimento. Quanto à sustentabilidade do trabalho, o neoliberalismo ocupou-se de torná-lo irrelevante, dando primazia ao império do setor financeiro, frequentemente inimigo do emprego…
Urbanismo sustentável seria, a meu ver, um urbanismo propício ao desenvolvimento de uma cidade, cuja qualidade de vida não seria obstaculizada pelo descaso ambiental nem pelo prejuízo social da poluição e do aquecimento global.
Um Urbanismo orientado pelo trânsito significa dar prioridade para o sistema viário e uma prioridade para a seleção dos elementos que constituem o sistema de transporte de pessoas e cargas. Segundo os autores que defendem essa orientação, diagnósticos e propostas urbanísticas deveriam, em primeiro lugar, investigar e garantir a mobilidade da população; embora esses autores nem sempre atentem para os motivos culturais que exigem e matizam a mobilidade.
O New urbanism foi assim denominado por um grupo de urbanistas norte-americanos, mormente por Andrés Duany,13como oposição ao planejamento tradicional naquele país, todo voltado para a rentabilidade de loteamentos, com escassa preocupação pelos sistemas de vida e pela qualidade da paisagem urbana.
O Planejamento estratégico é expressão usada na elaboração do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (2002), com o intuito de recuperar o conceito de estratégia, anteriormente usado para apenas indicar um mero pragmatismo mercantil. No novo conceito estratégia significava um primeiro passo, de curto prazo, útil para alcançar as metas determinadas pelas diretrizes de longo prazo; em outros termos: uma maior ênfase nos processos de transformação.
Penso que todas essas ênfases, prioridades e adjetivações podem ser integradas e absorvidas pelo termo urbanismo, considerando o novo contexto e o novo conteúdo. Um bom projeto urbanístico deverá ser sustentável, isto é: respeitoso para com o ambiente, seja no que tange aos recursos naturais e à poluição, seja no que se refere à qualidade da paisagem urbana; e propício ao desenvolvimento social e econômico, garantidor de oportunidades e de um ambiente democrático. Cada vez mais ele se confunde com gestão urbana e seu processo, indo além da elaboração do plano, da lei e suas metas.
No Brasil, assim como em toda a América Latina, o principal sintoma de subdesenvolvimento ainda é a injusta distribuição de renda e de oportunidades. Embora a situação no Brasil de hoje seja muito melhor do que há dez ou vinte anos (o indicador Gini baixou de 0,607 em 1990, para 0,527 em 2011, tendo melhorado em 80% dos municípios brasileiros, devido ao aumento de sua renda),14 é ainda grande a brecha entre ricos e pobres, e seu reflexo nas leis e nas práticas sociais.
Toda política pública, em especial aquela que cobre a área do urbanismo, deveria considerar o sintoma acima, acarretando estratégias compensatórias.
Assim, a política pública referente à mobilidade urbana deverá dar prioridade ao transporte público sobre o privado, investir na qualidade dos veículos e dos serviços públicos, usar combustível não poluente, incentivar uma melhor e mais justa distribuição regional de atividades e de serviços a fim de diminuir a necessidade de deslocamentos, alterar o uso do automóvel, monitorar serviços através de conselhos de gestão com participação de usuários, tratar dos aspectos específicos do transporte integrando-os aos demais aspectos da vida urbana, e passar a operar a cidade através de redes de programas, com a participação dos usuários, aperfeiçoando a representação democrática. O desenvolvimento desses tópicos importantes já não cabe no presente artigo… Mas se quisermos acelerar a implantação dessas medidas, que tal obrigar vereadores e ocupantes de cargos públicos a só usarem transporte público.
Setembro de 2013
Notas
1 Dados fornecidos pela Pesquisa Origem-Destino, 2007, da Companhia do Metropolitanode São Paulo – METRÔ.
2 Apesar das ramificações de linhas de ônibus, percebe-se que bairros do leste, sudeste e sul do município são desatendidos, com pontos de embarque muito longe dos domicílios.
3 Dado fornecido pela Emplasa, 2013.
4 O Plano da Região Metropolitana da Grande São Paulo, elaborado na gestão de Jorge Wilheim, foi publicado pela Emplasa em 1994; nele consta a proposta da Macrometrópole e os riscos e oportunidades em uma economia globalizada.
5 Dados da CET – Companhia de Engenharia de Tráfego da Prefeitura de São Paulo.
6 Proposta de implantação de VLT (bonde) na “rua principal” que uniria as três subprefeituras (São Miguel, Itaquera, São Mateus), segundo o Consórcio CDIW, contratado para a elaboração da Operação Urbana Jacu-Pêssego, 2013.
7 Um bom texto justificando e ilustrando esse ponto de vista encontra-se em Gehl (2013).
8 Dados do Detran-SP, do Denatran; e da CET-SP.
9 Dados do Denatran e da CET-SP.
10 Rodrigues, Junciano Martins, no Observatório das Metrópoles, 2013.
11 Departamento de Demografia da Organização das Nações Unidas (ONU), 2010.
12 O nome completo do Relatório Brundtland é: “Nosso Futuro Comum”; o documento, divulgado em 1997, foi elaborado por um comitê presidido por Gro Harlem Bruntland, à época primeira-ministra da Noruega; nele fixou-se o conceito de “desenvolvimento sustentável”.
13 Andrés Duany é membro do escritório DPZ de Los Angeles, escreveu New urbanism, 2008.
14 Dados elaborados pelo Instituto de Pesquisas sobre Economia Aplicada (Ipea), 2013.
Referências
ASCHER, F. Os novos princípios do urbanismo. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2010.
GEHL, J. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.
WILHEIM, J. FAX-mensagens de um futuro próximo. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
_______. Cidade: o substantivo e o adjetivo. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Jorge Wilheim é arquiteto e urbanista, autor de projetos de diversas escalas, do Parque Anhembi ao do Vale do Anhangabaú, do Hospital Albert Einstein a numerosos planos urbanísticos, entre os quais Curitiba, Goiânia, Campinas, Natal e São Paulo. @ – jorge.wilheim@jorgewilheim.com.br
Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
Estud. av. vol.27 no.79 São Paulo 2013
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142013000300002
EcoDebate, 04/02/2014
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