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Agora os rolezinhos. Perplexidade e preconceito

 


Reprodução/Twitter/R7

 

A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela correu. Uma das frequentadoras do shopping disse a frase-símbolo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este”. Dessa forma a escritora, repórter e documentarista Eliane Brum deu a síntese da reação aos rolezinhos.

Os rolezinhos – termo ligado à ideia de lazer, de sair para se divertir e usufruir da cidade –, assim como as jornadas de junho, surpreendeu a todos. Da academia aos políticos há perplexidade com o seu surgimento e ainda mais com o ‘recado’ que estariam querendo dar.

Acostumados à análise dos ‘movimentos tradicionais’ – oriundos basicamente do mundo operário-camponês de corte classista, os intelectuais revelam perplexidade na compreensão de um movimento (?) que não explicita seus objetivos e que se anuncia mais performático do que classista. Uma perfomance, ainda mais incômoda, porque que teria a sua origem no funk de ostentação.

Diferentemente, destaca Eliane Brum, “do núcleo duro do hip hop paulista dos anos 80 e 90, que negava o sistema, e também do movimento de literatura periférica e marginal que, no início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas produzidas pela periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os jovens, ainda que para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então reservados para a juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam”.

“Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das periferias de São Paulo”, diz a escritora. Agora, entretanto, acrescenta ela, “os rolezinhos – e a repressão que se seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também dos espaços físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores da sociedade, adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de ‘funk do bem’”.

Na opinião de Eliane Brum, “os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas afirmações de: ‘Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do consumo’. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos, negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela maioria dos segmentos da sociedade como bandidos ou marginais”.

O fenômeno é ao mesmo tempo, segundo ela, uma insubordinação e uma adesão: “Não dá para situá-lo num polo ou noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política. Conservador ou revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os dois ao mesmo tempo”.

De forma similar pensa Osana Pinheiro Machado, professora de antropologia na Universidade de Oxford, para quem “o rolezinho é um evento de jovens da periferia que se reúnem para passear nos shoppings das cidades, cantar funk e se divertir”. Segundo ela, “há uma reinvindicação clara de ocupar espaços urbanos privilegiados, de marcar presença. É um basta na invisibilidade”. Rosana Pinheiro Machado conta que “uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao shopping para ser visto como gente. Ou seja, a roupa tentava resolver uma profunda tensão da visibilidade de sua existência. Mas noutro canto, os donos da loja se assustavam e cuidavam para ver se eles não roubavam nada”.

Em sua opinião, “a classe média disciplinada vê os jovens vestindo as marcas do mercado hegemônico para qual ela serve. A classe média vê os sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda mais caras), mas não se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser domados. A classe média não se reconhece no Outro e sente um distúrbio profundo e perturbador por isso”.

“Não adianta não gostar de ver a periferia no shopping. Se há poesia da política do rolezinho é que ela é um ato fruto da violência estrutural (aquela que é fruto da negação dos direitos humanos e fundamentais): ela bate e volta. Toda essa violência cotidiana produzida em deboches e recusa do Outro e, claro, também por meio de cacetes da polícia, voltará a assombrar quando menos se esperar”, comenta a cientista social.

Essa violência estrutural é destacada por Paulo Lins, escritor, autor de Cidade de Deus, para quem “o rolezinho é uma forma de trazer à tona o fato de que o Brasil é um país racista”. Segundo ele, “a resposta das autoridades diante do rolezinho não é novidade, sempre foi assim. Se entrarem cinco negros num shopping a segurança vai ficar olhando, vai ir atrás. A polícia brasileira é a que mais mata jovens negros”.

O preconceito e a repressão estariam diretamente associados ao lugar social e à raça. Para o antropólogo Alexandre Barbosa Pereira, “sempre existiram encontros de jovens em shoppings, inclusive estão circulando imagens de estudantes de Economia da Universidade de São Paulo fazendo uma bagunça, tranquilos. Essa reação me parece que começa por três fatores. Um é de classe – são jovens pobres –, o segundo é de cor e raça, e o terceiro é justamente porque são jovens, são adolescentes. E acho que há um problema na nossa sociedade de lidar com a juventude. A grande questão é que, se fossem jovens de classe média, certamente não seria a polícia que seria acionada. Seria criada outra solução. Como são jovens da periferia, a polícia foi usada como elemento de autoridade e com a imposição de uma certa força sobre eles”.

Paradoxalmente, os rolezinhos são também resultado do Brasil da Era Lula com seus avanços e contradições. A opinião do sociólogo Rudá Ricci, é de que “os rolezinhos nascem de dois sentimentos que se cruzam. O primeiro, fruto da inclusão pelo consumo provocado pelo lulismo. A inclusão pelo consumo disseminou que prestígio social se vincula a bens adquiridos, se possível, top de linha. O segundo sentimento é o ressentimento, fruto da condição social dos moradores da periferia. Não está diretamente vinculado ao padrão de consumo (vários deles possuem casas com TV tela plana, celulares e tênis de última geração), mas ao descaso dos governantes (não possuem áreas ou programas culturais ou de lazer e são tratados com violência pela polícia) e, principalmente, pela discriminação das classes médias tradicionais”.

Algo semelhante diz Gilberto Maringoni, ao afirmar que tudo indica que “os jovens estão indo ao lugar onde pode se realizar a propalada ‘inclusão social’ da Era lulista. O que se alardeou na última década não foi o fato de a chamada ‘classe C’ estar comprando seu laptop, seu tablet, sua TV de tela plana, seus eletrodomésticos e seu Corsa em prestações a perder de vista? O substrato do pleno emprego e do aumento real dos salários não é, ao fim e ao cabo, poder comprar mais e mais? A garotada quer isso. Quer mais tênis, quer mais grifes e quer poder mostrar isso. Algo como o funk ostentação. Pode não estar comprando, mas está indo aos templos do consumo para dizer que existem, que estão aí e que querem se divertir. Se consumo é alardeado como direito de cidadania, onde exercê-lo plenamente? Em que lugar exercitar meu hedonismo a pleno vapor”?

Segundo ele, “a garotada está se comportando como Lula falou, como a marquetagem propagou, como a mídia repetiu e como a publicidade os pautou. Vamos comprar! Vamos consumir. Que mal há nisso, na sociedade em que tudo é mercadoria? Não pode. A sociedade da mercadoria não é para todos”.

Na opinião de Bruno Cava, “o que agride a ordem não é o fato de ocupar shoppings. Isso a classe sem nome já vem fazendo, também em restaurantes, aeroportos, pet shops, salões de beleza e charmosas cidades in da Europa ou Estados Unidos. O que realmente agride, o choque de gosto, hoje, é ocupar de maneira organizada e organizar-se para ocupar: a capacidade de gerar sentidos sem passar pelas mediações da grande imprensa, do mercado de consumo ou da esquerda convencional”.

Segundo ele, “a periferia se testemunha enquanto tal, sem hesitar em usar o funk e apropriar-se da esfera do consumo, como um manifesto pela própria existência e senso coletivo. Acusados todavia de despolitização, por meramente desejar zoar, consumir, ostentar e pegar alguns(as) meninos(as), juntos em grandes ocupações os jovens acabam politizando tudo”.

Para Bruno Cava, “não é caso de romantizar os pobres (romantizar porra nenhuma aliás) e, mais realista do que o rei, enxergar ‘consciência de classe’ onde só haveria alienação e autoafirmação adolescente. Mas não se pode negar, por outro lado, que algo está fora da caixa, que um processo novo, potente, e com possíveis desdobramentos políticos, está em curso”.

O fato, diz ele, “é que a polícia não tem protocolo para lidar com a nova situação. Confusa diante de uma composição social nova, segue a cartilha histórica: na dúvida, reviste os negros. Negros com poder de consumo, até pouco tempo atrás, era sinônimo de traficante. A grande mídia corporativa tampouco sabe o que fazer. A tentativa de rotular ‘arrastão’ nos rolezinhos foi desmentida pela ação rápida das redes sociais e mídias alternativas. A imprensa precisa cuidar para que o próprio racismo não saia do armário. O que ela quer mesmo é colocar Mandela na coleira para passeá-lo como cachorrinho de sua boa consciência”.

A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.

(EcoDebate, 22/01/2014) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


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