Relatório Final da Pesquisa ‘O Censo Quilombola’ e relatórios específicos dos Quilombos de Brejo dos Crioulos, Kalunga e Santarém
Sandra Mayrink Veiga em seminário no Pará
Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental
É com prazer que divulgamos em primeira mão os resultados de uma pesquisa de grande importância para a luta Quilombola: o Projeto Etnodesenvolvimento e Economia Solidária, desenvolvido numa parceria entre o Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e a CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Ao longo de dois anos e meio e trabalhando sempre com lideranças dos diversos estados, a equipe do SOLTEC visitou 11 estados, 44 municípios e 105 comunidades quilombolas. A pesquisa-ação inicial foi devidamente trabalhada e, em seguida, ‘devolvida’ às comunidades, de forma a colaborar com elas na construção de estratégias de planejamento, monitoramento e cobrança em relação às políticas públicas.
Os resultados envolvem um Relatório Final da Pesquisa Quantitativa: o Censo Quilombola, e ‘censos’ e planejamentos territoriais específicos realizados junto a nove comunidades de Santarém, Pará; cinco comunidades Kalunga, de Goiás; nove de Brejo dos Crioulos, norte de Minas; 11 comunidades de Sapê do Norte, Espírito Santo; e sete de Alcântara, Maranhão. Excetuando-se o material referente ao Espírito Santo e ao Maranhão, em finalização e que também socializaremos, todos os demais podem ser baixados a partir de links ao final desta matéria.
Antes, porém, é importante conversarmos com Sandra Mayrink Veiga, coordenadora executiva do projeto e responsável pela organização, sistematização e redação da pesquisa-ação e dos cinco censos estaduais. E é ela que nos explica, na entrevista por e-mail publicada abaixo, como surgiu essa parceria entre a UFRJ e a CONAQ e quais, na sua opinião, as principais consequências que dela poderemos tirar, em termos de luta e de projetos para o futuro.
Combate – Antes de mais nada, como nasceram a parceria com a CONAQ e o Projeto Brasil Local, Etnodesenvolvimento e Economia Solidária?
Sandra Mayrink Veiga – A parceria entre o SOLTEC/UFRJ e as organizações quilombolas, mais precisamente com a Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul – FACQ, teve inicio através da articulação do então coordenador de fomento da Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, do Ministério do Trabalho e Emprego – MTe, Jorge Nascimento, que conhecia o trabalho do Núcleo de Solidariedade Técnica – SOLTEC, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, na construção da Rede Solidária da Pesca através da metodologia de pesquisa-ação.
A SENAES solicitou que o SOLTEC realizasse um seminário de apresentação da pesquisa-ação para os quilombolas do Rio Grande do Sul. Ocorreram dois Seminários de Etnodesenvolvimento e Economia Solidária em 2008, em Porto Alegre, organizados pela SENAES-MTe e a FACQ com a participação do SOLTEC/UFRJ através das pesquisadoras Sandra Mayrink Veiga e Vera Maciel e do pesquisador Felipe Addor. Este processo deu origem ao Io Seminário Nacional de Etnodesenvolvimento e Economia Solidária entre a UFRJ e o movimento quilombola, através da CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado no Rio de Janeiro, na UFRJ. O objetivo foi debater, com representantes quilombolas de vários estados e outros convidados, as linhas para a elaboração e planejamento das ações para a construção de uma política pública para o Etnodesenvolvimento e a Economia Solidária.
Em junho de 2010, a SENAES lançou o edital para um projeto nacional de etnodesenvolvimento nas cinco regiões do Brasil dentro do Programa Brasil Local. O SOLTEC, em parceira com a CONAQ e através da Fundação COPPETEC – UFRJ, concorreram e foram selecionados, abrindo um processo inédito de parceria entre um Núcleo da Escola Politécnica, do Centro de Tecnologia – SOLTEC e da Pró Reitoria de Extensão da UFRJ e o movimento nacional Quilombola, através da CONAQ, para a execução do Projeto Etnodesenvolvimento e Economia Solidária, dentro do Programa Brasil Local, com a seguinte abrangência: 11 estados, 44 municípios, 105 comunidades quilombolas.
Combate – Vocês poderiam ter escolhido diversos protagonistas entre as comunidades tradicionais, mas optaram (e acho isso excelente) pelos quilombolas. O que determinou essa escolha?
Sandra Mayrink Veiga – A resposta quanto à relação com a CONAQ já está na primeira questão. Mas gostaria de adendar uma informação que me parece explicar também a nossa opção, que é a seguinte: são décadas de luta do povo quilombola em uma correlação de forças inteiramente desigual e com uma violência impressionante por parte dos fazendeiros, das agroindústrias, das multinacionais, do latifúndio, da Marinha e da Aeronáutica, dos agentes da especulação imobiliária, dos governos e do judiciário. Segundo o Relatório “Territorios Quilombolas” de 2012 do Ministério do Desenvolvimento Agrário:
“Na atualidade, existem 121 títulos emitidos, regularizando 988.356,6694 hectares em benefício de 109 territórios, 190 comunidades e 11.946 famílias quilombolas, assim distribuídos nos Estados:
ESTADO | TÍTULOS |
PARÁ | 56 |
MARANHÃO | 23 |
RIO GRANDE DO SUL | 08 |
SÃO PAULO | 07 |
PIAUÍ | 05 |
BAHIA | 06 |
MATO GROSSO DO SUL | 04 |
MATO GROSSO | 01 |
RIO DE JANEIRO | 02 |
AMAPÁ | 03 |
PERNAMBUCO | 02 |
GOIÁS | 01 |
SERGIPE | 01 |
MINAS GERAIS | 01 |
RONDÔNIA | 01 |
TOTAL | 121 |
Considerando o tamanho do território nacional, com base em dados do IBGE, os territórios quilombolas hoje titulados abrangem 0,12% do território nacional. Estima-se que a titulação de todos os quilombolas do Brasil não chegará a 1%, sendo que os demais estabelecimentos agropecuários representam cerca de 40%.
Ademais, é certo que o tamanho dos territórios garantirá a reprodução física das famílias quilombolas, assim como a sua sustentabilidade econômica, social, ambiental, cultural e política”.
A CONAQ estima que haja mais de 4.500 quilombos, e esse é um número que cresce a cada dia à medida que os quilombolas vão tomando conhecimento de seus direitos. Estes números falam por si. Esta é uma luta que necessita de uma rede de apoio e do ponto de vista do Soltec foi o que nos motivou a participar.
Combate – Nesta primeira fase (espero que haja outras), vocês deram uma visão geral no País,mas aprofundaram cinco estados e, neles, cinco grupamentos específicos: as nove comunidades quilombolas de Santarém, Pará; cinco quilombos Kalunga, de Goiás; as nove comunidades de Brejo dos Crioulos, no norte de Minas; onze comunidades de Sapê do Norte no Espírito Santo; e sete comunidades em Alcântara, Maranhão. Gostaria que você falasse um pouco das principais questões que afloraram em relação a cada um deles.
Sandra Mayrink Veiga – Primeiro quero dizer que no Censo de cada território e no Censo Nacional os leitores terão todas as informações que conseguimos sistematizar a partir desta pesquisa. Os censos estão organizados por eixos temáticos, de acordo com o questionário elaborado em conjunto, que direcionam a estrutura dos relatórios segundo as seguintes partes:
- 1a Parte: Folha de composição dos moradores do domicílio
- 2a Parte: Questões relativas à comunidade
- 3a Parte: Questões relativas à moradia
- 4a Parte: Questões relativas a trabalho e renda
- 5a Parte: Questões relativas a hábitos de vida
- 6a Parte: Questões relativas à identidade, discriminação e conflitos
- 7a Parte: Espaço livre para uma fala final
Os leitores também encontrarão no Relatório do Censo Nacional toda a parte didática da pesquisa e os seus instrumentos tanto os qualitativos quanto o próprio censo e seu questionário. Terão também acesso aos indicativos de Políticas Públicas tanto no corpo dos censos quanto nos Planos Territoriais de Etnodesenvolvimento, Economia Solidaria e Políticas Públicas que foram realizados a partir dos debates quando da devolutiva dos dados dos censos dentro do Seminário de Elaboração do Plano Territorial e cujas propostas foram debatidas com representatividade em cada território. Além disso, nos Censos estão também as descrições históricas e os relatos de vida escritos pelas equipes locais e um diálogo com outras pesquisas e vários autores.
Agora respondendo à sua pergunta e buscando enfatizar alguns pontos principais.
No Pará a falta de titulação definitiva além de não permitir o acesso dos quilombolas às políticas públicas gera uma enorme insegurança nestas famílias. Também não conseguiam tirar o DAP – Declaração de Aptidão ao PRONAF durante todos esses anos; somente este ano o governo está tentando universalizar esta politica entre os agricultores familiares e pescadores artesanais. Sem o DAP eles não podem negociar seus produtos junto à PNAE, por exemplo, e nem no Programa de Aquisição de Alimentos – PAA do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que são importantes mercados institucionais e onde os produtos quilombolas têm prioridade.
A insegurança em relação ao futuro é total. Há comunidades que foram perdendo suas terras e agora estão espremidas em uma área diminuta, onde sequer conseguem plantar para seu próprio sustento. Seus filhos quando casam ficam morando na casa dos pais ou têm que sair do quilombo, pois não há espaço para construírem suas casas.Os conflitos com fazendeiros são constantes e também com pescadores que invadem os quilombos principalmente na época do defeso para fazer pesca predatória. Já houve até caso de morte nestes conflitos porque os quilombolas sempre tratam de defender e preservar o meio ambiente e sempre tentam “botar para correr” estes predadores.
O Pará tem uma característica particular no projeto pelo fato de termos trabalhado em dois ecossistemas: terra firme e a várzea. Por serem dois ecossistemas apresentam problemas diferentes e a rotina da vida também é diferente, mas há sempre conflitos com fazendeiros mesmo na várzea onde os fazendeiros criam gado à solta que comem as plantações dos quilombolas.
“Mas o maior gargalo para as comunidades remanescente de quilombos do Baixo Amazonas é a falta de possibilidade de geração de trabalho e renda dentro das comunidades. Como acabamos de descrever, as comunidades vêm de duas realidades distintas, mas que não podem ser desvinculadas, pois são dois ecossistemas que se completam e que têm suas atividades antrópicas totalmente dependente das intempéries da natureza. Além disso, os laços consanguíneos estão distribuídos entre a várzea e a terra firme, formando assim uma cadeia cíclica que se desmembrada põe em risco a cultura deste povo. Mas como sobreviver neste ambiente perante as “facilidades”[1] que a vida urbana oferece? Muitos acabam se rendendo à falsa ideia de que “na cidade a vida é mais fácil”, principalmente a população mais jovem. Muitos também saem em busca de dar continuidade aos estudos, pois as comunidades só oferecem escolarização regular até o nível fundamental. Assim os costumes vão se perdendo junto com a morte dos mais velhos, enquanto os jovens por não terem condição de sobreviver nas comunidades acabam cedendo ao modo de vida que antes era tratado com o `modo de vida dos outros´”. (Plano Territorial do Pará)
Isso tudo está contado pelos(as) quilombolas no relatório do Censo do Pará que contém também as descrições históricas e os relatos de vida, ambas escritas pela equipe local. E também no Plano Territorial do Pará, onde os leitores poderão ver as soluções propostas no Seminário com a presença das lideranças das comunidades através das Associações e da Federação.
No Espirito Santo já são décadas de luta contra o monocultivo do eucalipto da Aracruz Celulose, hoje Fibria, que com seus ‘correntões´ arrasou a floresta que lá existia. Até a década de 1990, a cobertura florestal existente no estado do Espírito Santo passou de 4 milhões de hectares (86,88% da área do estado) a 402.392 hectares (8,34% da área do estado). Os eucaliptos secaram 130 ribeirões e expulsaram de suas terras, só no território Sapê do Norte, 28 mil e 500 famílias quilombolas.
Hoje há 1.500 famílias que ainda resistem cercadas de eucaliptos e agrotóxico. Já houve caso de mortes por intoxicação do veneno —o glifosato, que é o agrotóxico mais usado em eucaliptos e causa sérios danos à saúde dos moradores— ,que a Fibria esparrama pelo chão, sempre financiada pelo BNDES, seu maior acionista, com 34,9%, e seu parceiro principal, o grupo Votorantim, que possui 29,3%.
“(…) Ela [Aracruz Celulose] é miserável. Ela é miserável, essa tal de Aracruz. Ela acabou com a água daqui, destruiu! Destruiu tudo a água daqui. Secou tudo os córregos. Secou tudo porque nós ficamos aqui numa situação miserável. A pipa trazia uma água quente, quente, quente! Quente para nós bebermos. Jogava aí! Tinha vez que vinha, tinha vez que não vinha. Nós íamos pegar água lá na cacimba. Ninguém dá voto a Aracruz. Ela é o bicho! A Aracruz é o bicho porque nós estamos aí de cara para cima. Meufilho vai fazer o quê? Já fez dez anos de morto. O bichinho botava sangue pisado! Vomitava, vomitava. O sangue, aquele sangue talhado. Talhado do veneno. E eu sem saber o que era. Isso aí é que é a minha paixão. É a minha revolta é isso aí. É isso aí, meu filho! Ela caía (a castanha) sem saber que estava contaminada. Só descobriram por causa do meu menino, do meu menino!” (Dona Estela, da comunidade de São Jorge, 2005. Citado de INCRA, 2005).
Só para se ter uma ideia mais precisa sobre a perversidade desta cadeia produtiva, além de ter expulsado milhares de famílias quilombolas, a Aracruz Celulose conseguiu reduzir a eucaliptal as seguintes aldeias indígenas: Amarelo, Olho d’Água, Guaxindiba, Porto da Lancha, Cantagalo, Araribá, Braço Morto, Areal, Sauê, Gimuhuna, Piranema, Potiri, Sahy Pequeno, Batinga, Santa Joana, Morcego, Garoupas, Rio da Minhoca, Morobá, Rio da Prata, Ambu, Lagoa Suruaca, Cavalhinho, Sauaçu, Concheira, Rio Quartel, São Bento, Laginha, Baiacu, Peixe Verde, Jurumim e Destacamento. A aldeia de Macaco, lugar sagrado para os índios Tupiniquim, deu lugar à planta da I Fábrica, em 1978.
Segundo a Revista Observatório Social Edição Especial 15 Anos, do Instituto Observatório Social de dezembro de 2012, intitulada “O Falso Verde”, cuja leitura recomendamos fortemente, a cadeia produtiva da celulose no Brasil tem causado os seguintes problemas:
- Violação dos direitos humanos
- Lavagem de dinheiro
- Sonegação de impostos
- Corrupção
- Fraude de certificação ambiental FSC
- Fraude em licenciamentos ambientais
- Terceirização ilícita de mão de obra
- Fraude em processos de arrendamento de terras
- Produção de documentos forjados
- Grilagem de terras
- Uso de policiais como vigilantes particulares
- Devastação de mata nativa
- Assoreamento de rios
- Ocupação ilegal de terras dos índios
- Ocupação ilegal de terras da União
- Ocupação ilegal de terras quilombolas
O Relatório do Censo do Espirito Santo traz muito mais detalhes e informações. Lá os leitores poderão verificar, por exemplo, que toda esta devastação ambiental, violência, arbitrariedade, violação de inúmeros direitos, expulsão de milhares de quilombolas e índios de suas terras serviu para a empresa Aracruz/Fibria fabricar e exportar, para a Europa, América do Norte e agora também países da Ásia, principalmente papel higiênico, e gerar uma receita operacional líquida de um total de R$ 6,2 bilhões em 2012!!!
Em Minas Gerais, no território de Brejo dos Crioulos, pudemos presenciar e compartilhar da insegurança vivida por seus moradores frente a inominável violação de direitos que está ocorrendo por lá há décadas.
As ações dos movimentos sociais e as lutas de resistência das comunidades tradicionais têm sido criminalizadas porque realizam uma luta contra-hegemônica e, ao explicitarem a disputa pela terra e denunciarem a violação de direitos conseguem, pelo menos, questionar esse modelo e tentar limitar os espaços da expansão das monoculturas dos latifúndios e das multinacionais do agronegócio.
Essa tem sido uma luta que se repete ao longo da nossa história, com alteração na sua intensidade, mas sempre com um grau elevado de violência por parte do Estado e de seus aparelhos de coerção, bem como das milícias das empresas e dos fazendeiros, tentativa sempre de cooptação das lideranças, manipulação judiciária em favor do capital e uso da tática do isolamento político onde o movimento fica sem voz dado que a grande mídia sempre se coloca a favor do capital em uma aliança estratégica.
Mais recentemente o capital tem se sofisticado no uso não só da grande mídia, respaldando as suas ações violentas, mas a bancada ruralista tem aparecido cada vez mais defendendo as suas posições através de ações parlamentares mais proativas em aliança com outros setores dentro do Congresso. Setores do Estado e o BNDES têm dado também maior respaldo ao alargamento de suas fronteiras.
Dentre as ações parlamentares há no Judiciário, aguardando julgamento uma ADIn (Ação Direta de Inconstitucionalidade), proposta em 2004 pelo antigo partido da Frente Liberal (PFL), atualmente denominado Democratas (DEM). Esta ADIn questiona o conteúdo do Decreto nº. 4887/2003, que regula a atuação da administração pública na efetivação do direito territorial étnico das comunidades de remanescentes de quilombo no Brasil.
Aqui sempre mudamos para permanecermos iguais em muitos aspectos, e um destes é o da concentração de riqueza, terras e empresas nas mãos de poucos. No Brasil parece que, como disse David Harvey, o conceito marxista de “acumulação primitiva” tem um caráter de estratégia permanente e não apenas “originária” do capitalismo. Aqui vão usurpando os direitos adquiridos, aumentando a exploração do trabalho, degradando o meio ambiente tudo ao arrepio das leis, porém com o apoio dos governos e de grande parte do Judiciário e das forças de coerção do estado e organizações privadas de segurança.
A palavra de ordem é: crescer e consumir. A pergunta: crescer como? E, sobretudo, em benefício de quem e do quê? A se continuar a privilegiar o agronegócio; exportar commodities; usar de violência e terror contra as populações tradicionais; não demarcar as terras que são por lei e direto dos indígenas e dos quilombolas; isentar as grandes empresas nacionais e estrangeiras de tributos; degradar o meio ambiente; usar o dinheiro do BNDES com juros e prazos especiais para beneficiar as multinacionais e o agronegócio a se expandirem; facilitar a remessa dos lucros para o estrangeiro, entre outras benesses; ter um Judiciário que julga causas em benefício dos mais ricos…
Essa política não levará o Brasil a um desenvolvimento sustentável, democrático e participativo com plena cidadania dos(as) brasileiros e brasileiras, e as violações de direitos só se aprofundarão e se estenderão pelo pais. Os conflitos ambientais e pela demarcação das terras dos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais têm aumentado. E junto com esta repetida, recorrente, recursiva, circular, enxurrada de violações, a falta de indignação da sociedade brasileira, a sua pasmaceira e falta de ação ou, quem sabe, até a ausência do sentimento de indignação, só trazem a sensação de que vai demorar mais séculos para que o Brasil seja de fato um Estado Justo e de Direito Democrático onde todos os(as) cidadãos(ãs) tenham seus direitos universais garantidos e o conceito de “bem viver” consiga sair do papel e passe a fazer parte do cotidianos de nossas vidas.
Desde a década de 1940, o território dos quilombolas de Brejo dos Crioulos foi sendo grilado por pessoas de má fé, que se apropriaram da terra fazendo os quilombolas assinarem documentos em branco. Segundo relatos eles “se faziam de amigos”, diziam que iam ajudá-los a regularizar a situação da terra. Posteriormente, preenchiam o papel assinado, declarando que os quilombolas haviam vendido as suas terras. Segundo o Relatório de Missão Quilombola no Brejo dos Crioulos realizado pela FIAN Brasil e Relatoria Nacional para o Direito Humano à Alimentação Adequada e Terra Rural, Estado de Minas Gerais:
“A comunidade conta que os cartórios da região foram queimados, para que não fosse descoberta a fraude e o roubo das terras dos quilombolas por parte de fazendeiros. (…) Os anciões relatam que a partir da década de 1950 e 1960, o território que ocupavam passou a ser “embrulhado” por fazendeiros que chegavam à região dizendo que se os quilombolas não vendessem as terras iriam ficar sem ela e sem dinheiro. Os fazendeiros utilizavam argumentos de que os quilombolas teriam que pagar os impostos e não possuíam dinheiro para pagar”.
Por meio deste artificio, além de outros, como o da constante opressão, violência, ameaças etc, as famílias quilombolas foram perdendo seu território que antes era amplo e produtivo e assegurava-lhes o sustento. Segundo o relato das pessoas mais idosas do território quilombola de Brejo dos Crioulos, os únicos produtos que compravam eram o sal e o café. Hoje, onde havia fartura e abundância de produtos diversificados, há somente gado dos fazendeiros pastando.
Na comunidade de Caxambu moram 40 famílias. A comunidade teve sua origem com a vinda de cinco irmãos ao local. Hoje, as famílias vivem confinadas em pouco mais de 20 hectares de terra. Paula Cardoso de Oliveira, 46 anos, nos relatou que:
“Em nossa comunidade nós vivia do sustento da roça. Nós colhia era pra nosso sustento. Nós plantava feijão, fava, milho. Do milho nós fazia a farinha, angu e da canjiquinha do milho fazia o arroz. Nós tomava café de rapadura. A gordura que nós conhecia era o toucinho de porco. A água pra nós beber pegava nos rios e lagoa e quando secava nós abria um buraco no meio do rio e esse buraco chama-se cisterna. Desse sistema que nós pegava água pra nós bebe e cozinha”.
A comunidade Ribeirão do Arapuim é dividida entre os municípios de Varzelândia e São João da Ponte. Não possui escola, posto médico nem igreja. Nela vivem cerca de 160 pessoas. É cercada pelas fazendas de Raul Paulista, Dema Fiqueredo, João Gonçalves e Moacir Rodrigues.
Segundo moradores da região seus primeiros habitantes vieram do Gorutuba, provavelmente fugindo da fome ou da escravidão. Contam que quando aqui chegaram encontraram grandes matas fechadas e terras boas para o cultivo de alimentos; então povoaram essa região estabelecendo-se à beira e ao longo do Ribeirão.
Araruba hoje é o terceiro maior núcleo de Brejo dos Crioulos em numero de moradores. 14,7% da população total consideram-se do núcleo central, pois nele se realizam as principais festas. Araruba está rodeada pelo atual fazendeiro Miguel Filho, filho de Miguel Véo Filho, e pelo fazendeiro João Gonçalo.
Monoel Fernandes de Souza, 79 anos, declarou que:
“Nasci na comunidade de Araruba, onde permaneço até hoje.Quando meus pais chegaram aqui nos Crioulos era tudo matas, mas já existiam moradores, eram negros fugidos das fazendas. Com o passar dos tempos foram chegando outros e construíram casas aqui. Os primeiros habitantes, a não ser os escravos, vieram da Gurutuba fugindo da fome e miséria. (…) Não tinha casa, minha família morou muito tempo em uma casa de enchimento coberta de capim. Escola ninguém nem conhecia. Não tinha roupas, tecíamos algodão e fazíamos algumas peças que tinham que ser lavadas todos os dias.
Não tinha dinheiro, quando precisava de alguma coisa trocava com o vizinho, tudo era longe e difícil”.
Há anos que o movimento quilombola em Brejo dos Crioulos vem utilizando a tática de ocupação/retomada das terras para chamar a atenção das autoridades e exigir seus direitos.
A primeira retomada ocorreu em abril de 2004 quando 400 famílias quilombolas ocuparam a fazenda São Miguel, de “propriedade” de Miguel Véo Filho. A partir daí foram feitas mais 12 ocupações nos latifúndios de Miguel Véo Filho, Névio, Dílson Godino, Raul Ardito, Albino Ramos, Zé Maria, Diniz e Moacir Rodrigues.
O movimento quilombola de Brejo dos Crioulos, portanto, já retomou suas terras 13 vezes e foi despejado 13 vezes. Em todas as vezes houve violência e violação do direito à terra.
No final de setembro de 2011, duzentas famílias de Brejo dos Crioulos acamparam durante uma semana em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, exigindo a desapropriação do seu território quilombola. No dia 29 o decreto de desapropriação foi assinado pela presidenta Dilma Rousseff
Entretanto, como o processo de desapropriação não estava andando, os quilombolas voltaram a Brasília e o Incra lhes garantiu que até dezembro de 2012 seriam desapropriadas seis fazendas, ficando as demais para 2013.
Em 2012 ainda, o dinheiro para a desintrusão chegou à Superintendência do INCRA de Minas Gerais, para que se efetivasse a retirada e a indenização dos “proprietários” com a imediata titulação do território e sua entrega aos quilombolas.
Às vésperas do Natal, como o Incra não havia encaminhado nada de concreto, 350 famílias ocuparam três fazendas de Miguel Véo que abrangem aproximadamente 2.100 hectares para pressionar o Incra. Houve confronto com os pistoleiros.
Porém, realmente nada foi feito pelo Incra, e o dinheiro voltou para Brasília. Os latifundiários aumentaram a exploração do território com maior número de animais e desmatamento ilegal, e a violência recrudesceu.
O Projeto Etnodesenvolvimento e Economia Solidária esteve entre os dias 28 de fevereiro e 3 de março de 2013 em Brejo dos Crioulos, para fazer a devolutiva da pesquisa, debater com as comunidades e realizar o seminário da construção do Plano Territorial de Etnodesenvolvimento, Economia Solidaria e Políticas Públicas de Brejo dos Crioulos.
No dia 4 de março, o juiz federal da 2ª Vara de Montes Claros concedeu mandado de despejo contra a comunidade a favor da fazenda São Miguel, de Miguel Véo Filho, apesar do decreto assinado pela presidenta Dilma Rousseff em 29 de setembro de 2011. Esta fazenda também é uma das que o INCRA ficou de realizar a desintrusão em 2012 e entregar aos quilombolas conforme o decreto da presidente da República. Mas o fazendeiro resgatou uma ação de 2009, antes da assinatura do decreto, e o juiz emitiu o despejo. O advogado dos quilombolas depois da decisão do juiz entrou com o recurso, e a resposta foi a negativa do juiz. Esta história fala por si; não preciso acrescentar mais nada.
Uma das principais lideranças de Minas e do movimento nacional quilombola, no seu relato de vida que está no Censo de Minas Gerais, Sandra Maria da Silva Andrade, quilombola, representante do Estado de Minas Gerais na CONAQ, atual presidente da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais e coordenadora territorial em Minas no Projeto Etnodesenvolvimento e Economia Solidária, conta que o seu quilombo Carrapatos da Tabatinga, no município de Bom Despacho, fica hoje dentro da zona urbana:
“De repente começou a especulação imobiliária. O negro não mandava no que era seu. A cidade é racista. No comércio, no supermercado não existe negro, só branco. O negro só existe na roça ou em casa de família. Hoje esta melhor devido ao movimento. Imagine que as meninas antes de entrar na casa da patroa tinham que tomar banho com álcool. Isso ainda acontecia em 1980”.
Recomendamos a leitura do Censo de Minas Gerais e as descrições históricas e relatos de vida dos(as) quilombolas para saber mais sobre toda esta luta deste povo e os dados sobre as suas atuais condições de vida em Brejo dos Crioulos.
Em Goiás, os Kalunga. Em 1722, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, juntamente com João Leite da Silva Ortiz, chegaram àquelas terras que iriam ser chamadas de “minas dos Goiases”, nome dado em função de um povo indígena que ali vivia. Começava o ciclo do ouro nesta região e com ele a história do povo Kalunga. Os escravos eram trazidos para a mineração e, cansados dos maus tratos e da exploração, rebelavam-se e fugiam entrando nas matas, cortando as serras, enfrentando um relevo escarpado e muito alto onde formaram o povo Kalunga.
Por vezes, através de uma simples descrição, pode ficar a ideia de isolamento destas comunidades no território Kalunga em função da grande dificuldade de acesso às comunidades. Gostaríamos de afirmar a mobilidade desses quilombolas que se dá através das migrações que ocorrem entre as comunidades e as relações de trabalho que estabelecem nos pequenos centros urbanos do entorno e nas sedes dos três municípios e mesmo com os grandes centros como Brasília e Goiânia. Não estão e nunca estiveram totalmente isolados. Basta lembrarmos que viajavam até Belém, saindo pelo rio Paranã, pegando o Tocantins até chegar a Belém, para levar seus produtos e comprar os que lhes faltavam como panelas, sal etc. Nesta viagem às vezes demoravam um ano para ir e voltar e passavam por imensas dificuldades.
A Chapada dos Veadeiros é um dos pontos do nosso Planeta que visto do espaço reflete a luz do sol com maior intensidade por conta das formações de quartzo que compõem a geologia da região; aliás, a mais antiga do Continente e uma das mais antigas da Terra. Com suas inúmeras cachoeiras, escarpas e vãos, a chapada é deslumbrante!
O território Kalunga se localiza no extremo norte do estado de Goiás, fronteira com o estado do Tocantins e se divide por quatro núcleos principais: a região da Contenda e do Vão do Calunga; o Vão de Almas; o Vão do Moleque e o antigo Ribeirão dos Negros, depois rebatizado como Ribeirão dos Bois. É o maior território quilombola. As comunidades que formam o território Kalunga localizam-se na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, e passaram a ser constituídos oficialmente a partir do Decreto de 20 de novembro de 2009 que afirma no seu Artigo 1º que:
“Ficam declarados de interesse social, para fins de desapropriação, nos termos dos arts. 5o, inciso XXIV, e 216, § 1o, da Constituição, e 68º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, os imóveis sob domínio válido, abrangidos pelo “Território Quilombola Kalunga”, com área de duzentos e sessenta e um mil, novecentos e noventa e nove hectares, sessenta e nove ares e oitenta e sete centiares, situados nos Municípios de Cavalcante, Terezina de Goiás e Monte Alegre de Goiás, Estado de Goiás”.
Os relatos dos quilombolas nos dão conta de que nas décadas de 1960 e 1970, junto com os garimpeiros chegou a malária.
“Nem o chá de quina misturado com o pau-pereira tatu que o povo Kalunga sabia preparar, nem a simpatia da benzedeira com tição de fogo para tirar a febre das crianças bastavam para debelar a sezão. A maleita matava mesmo. E não escolhia, não. Velho, adulto, criança, rico ou pobre, todos ela levava. A pessoa deitava hoje, o frio batia nela, ela tremia de bater o queixo. Quando era de manhã, ficava melhor. Mas, no dia seguinte, na mesma hora, parece que a febre vinha mais forte. E assim ela ia matando muita, muita gente”. (Uma história do povo Kalunga – MEC)
A nova capital federal, Brasília, foi construída em Goiás, no meio do cerrado, em menos de cinco anos. Com a inauguração de Brasília, em 1960, o governo começou um grande programa que pretendia levar o desenvolvimento para o interior do Brasil. Para o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, o progresso da região viria através da expansão das grandes fazendas, a implantação de projetos de mineração, a construção de usinas hidrelétricas, grandes estradas etc.
O impacto das políticas públicas deste período no território Kalunga foi muito grande. Os garimpos começaram a se multiplicar. Naquela terra ainda existia ouro e, como se descobriu então, ela também era rica em minérios como a cassiterita, a tantalita, o manganês, o cristal de rocha. Além disso, ali existia muito calcário e brita, que podiam ser usados na construção civil. As madeireiras e as empresas produtoras de carvão foram derrubando as matas nativas em volta da área Kalunga, destruindo tudo e provocando grandes secas no entorno que causaram um dano muito sério para os agricultores quilombolas da região.
Como não tinham nenhum documento de propriedade que comprovasse que eram donos das terras, pois estavam ali há mais de 100 anos, os moradores passaram a ser perseguidos de forma brutal pelos fazendeiros. Eles armavam tocaia para matar pais de família indefesos, queimavam casas e expulsavam famílias inteiras de suas moradas, mesmo velhos e crianças. Não satisfeitos começaram a soltar manadas de búfalos nas roças, matar a criação e poluir os rios com mercúrio. Tudo para obrigar os moradores do Kalunga a entregar suas terras.
Muitos quilombolas fugiram para a beira dos rios, pés de serras e margem das estradas, buscando um lugar onde pudessem preservar suas vidas.
“Impedidos de plantar, já estavam passando fome, quando a comunidade se mobilizou em busca de ajuda. A denúncia sobre o que estava acontecendo ali foi encaminhada ao governo, pedindo que se tomassem medidas urgentes. Com a intervenção das autoridades, foi possível controlar a violência mais brutal dos fazendeiros. Mas nem por isso o povo Kalunga que havia perdido suas terras conseguiu recuperá-las. Muitos foram tentar a sorte em Cavalcante, Monte Alegre, Terezina de Goiás e mesmo em Alto Paraíso. Outros se mudaram para outras áreas do Kalunga onde tinham parentes. Mas, com isso, aumentou a população daquelas áreas e tornou mais escassos os recursos que existiam ali, para a sobrevivência de todos”. (idem)
Hoje a principal atividade econômica do povo de Kalunga é a agricultura familiar rudimentar; a criação de aves, suínos e bovinos (leite e carne) com fins de subsistência; e o plantio de mandioca para a produção da farinha que, além do consumo interno, também é comercializada nas cidades vizinhas.
As terras são arenosas, sensíveis, com muitos rios, cachoeiras, nascentes e, sem um manejo correto, erodem rapidamente. O ambiente geral é montanhoso, formando diversos vãos, fatores que aliados à falta de equipamentos e assistência técnica adequada trazem uma baixa produtividade.
Às vezes as chamadas “roças ou roçados”, onde plantam o feijão, a mandioca, as abóboras e em algumas roças também melancia e banana destinados à subsistência da família são localizadas nas “terras dos outros” porque as melhores terras, nas encostas e vales, são de fazendeiros, geralmente de Brasília, São Paulo e Goiânia que quase nem aparecem por lá. Há relatos de quilombolas que dizem que, por estas terras melhores distarem muito de suas casas (por vezes levam mais de cinco horas a cavalo), eles acabam ficando na roça durante a semana para ganhar tempo. No período das águas isso ocorre com grande frequência, uma vez que os acessos ficam ainda piores. Este arranjo se dá através de um contrato com o fazendeiro com uma duração entre 3 a 4 anos e pelo qual o quilombola se compromete a entregar 30% de sua produção ao fazendeiro. Ao termino do contrato o quilombola devolve a terra, que será usada pelo fazendeiro para pastagem, e ele segue em frente à procura de outro contrato.
Novos projetos estão entrando em geral nos quilombos e nem sempre são bem discutidos com os quilombolas. Em Kalunga, por exemplo, um projeto da Universidade Federal de Goiás, em parceria com a EMBRAPA, em 2006, distribuiu entre os Kalunga 1000 cabeças de gado curraleiro.
“Esse gado, de porte menor, rústico, resiste bem aos terrenos íngremes. Ele era frequente nas terras mais altas do Nordeste Goiano, e, provavelmente, era criado pelos Kalunga. O experimento das 1000 cabeças foi uma tentativa de testar a capacidade de readaptação do animal à região, e de os Kalunga serem criadores dessa espécie para melhoria de renda.
Contudo, o gado curraleiro tem causado estragos nos roçados, até então sem cercas, e provocado alguns conflitos entre os próprios Kalunga. Até então ali era território do domínio do cerrado e dos roçados e, com o gado curraleiro, sinalizou-se outros territórios: o território dos que têm o gado, isto é, daqueles que aceitaram serem parceiros da Universidade nesse projeto, e aqueles que não têm gado.” (Maria Geralda de Almeida em seu texto “Territórios de Quilombolas: pelos vãos e serras dos Kalunga de Goiás – patrimônio e biodiversidade de sujeitos do Cerrado”.[2])
Segundo a coordenadora territorial do projeto, Eriene Santos Rosa,
“Os mais velhos se queixam de que os jovens estão deixando as tradições, a nossa cultura, porque alguns até se envergonham de dançar a sussa e muita gente de vinte anos nunca tinha ouvido falar em bole. E os mais velhos têm razão, porque nas festas é grande a concorrência entre as coisas da cidade e as tradições da música e dos divertimentos do Kalunga”.
Nos relatos dos mais velhos podemos constatar que o território Kalunga era muito rico em caça e peixe, e a terra era então suficiente para prover todo o sustento dos que viviam ali.
“Não se conhecia ir comprar coisa “na rua”. Hoje todos vão ao armazém fazer compras o que significa que todos têm que ter dinheiro. “O ricos que antes matavam uma vaca para comer na cidade, lá davam para os pobres. Hoje, vendem a vaca, come ela de quilo, todinha, lá no açougue. Não dá um pedaço pra ninguém”.
Como disse um morador se referindo aos mais jovens: “Abriu a estrada, veio o carro, quem é que quer ir mais a cavalo? Já achou bom, né? Aí é a opinião dos novos. Eles querem tudo é fácil, não querem carregar nem um pau de lenha daqui pra ali na cacunda. Então, eles é que mandam”. (Uma história do povo Kalunga – MEC)
“(…) todo mundo ali era mais sadio e morria era de velho, não adoecia. Dona Joana Torres, por exemplo, continua bem viva e saudável lá no Engenho, com os seus 102 anos! É que, naquele tempo, não se conheciam as doenças contagiosas que vieram depois. Hoje, já existe a estrada e já existe o transporte que permite sair com um doente. Mas não adianta, a pessoa continua doente e não sara, até acabar morrendo”. (…)
“Naquele tempo, remédio de sarampo era lagartixa. A pessoa botava a água para ferver, pegava a lagartixa e jogava viva dentro da água quando já estava fervendo. Depois, tirava a lagartixa e bebia o caldo. Seu Simião conta que “fez esse remédio para o seu menino, que estava ruim, parado, não valia mais nada. Depois que bebeu, tossiu, tossiu e cuspiu um monte de escarro. Quando foi no outro dia, estava bom”. E ele explica: “remédio de índio”. (ibidem)
Comentam que com a estrada chegaram também as doenças como o sarampo, que baixou como uma epidemia, e também vários insetos ruins que antes não existiam entraram no território depois da construção da estrada. Quando perguntados se acham que esta melhor hoje do que antigamente esses respondem que:
“Não está, uél Nunca! Daqui um tempo, quem não tiver emprego não vive. Porque o de casa não tem valor mais. Tudo é trazido de lá. O povo não está trabalhando mais cá. Deu aparência, né? (…) E depois, quando os fazendeiros de fora compraram as terras, ficou pior. Porque eles não dão nem trabalho de empreitada. Põem logo o trator para derrubar a mata e abrir roça. Desmancham tudo, sem precisão. Então, agora, como é que o pobre pode ganhar o dinheiro?” (ibidem)
Isso os mais velhos sabem por que têm a lembrança de como eram as coisas no passado e podem perceber que estão deixando de fazer o que sabiam fazer e que lhes trazia o sustento com autonomia, para ficarem dependentes de arrumar trabalho fora para poder comprar tudo nas vendas e mercados.
Kalunga ainda está em processo de titulação e desintrusão. Existe ainda a presença de fazendeiros em todas as comunidades, e a saída deles se encontra prevista para quando o INCRA pagar a desapropriação. Os conflitos com fazendeiros se deram e continuam ocorrendo. É uma relação cheia de contradições, pois alguns acabam se tornando amigo de pessoas na comunidade, padrinho de filhos dos quilombolas, relação de patrão porque alguns quilombolas trabalham nas fazendas. Atualmente não existe conflito armado, mas já ocorreu. O fazendeiro invadia o terreno das casas dos quilombolas avançando com suas cercas e caso ocorresse alguma reclamação os moradores eram ameaçados com fuzis.
A história se repete mais uma vez. Grileiros se aproveitaram dos quilombolas usando de má fé, pois sabiam que estes não tinham a informação nem os conhecimentos e a organização necessárias na época para fazer frente à força dos que estavam chegando de fora usurpando os seus direitos. Na década de 1980 e 1990 alguns quilombolas venderam as terras, mesmo sem títulos de proprietários, e os que ficaram se viram em uma nova conjuntura tendo que enfrentar a pressão dos fazendeiros que, se aproveitando do fato de os Kalungas não terem a documentação das terras, foram avançando suas cercas nas terras comunais dos quilombos.
A perda de áreas para a grilagem fez com que tenha havido uma migração nas ultimas décadas para as cidades vizinhas, para Brasília e Goiânia, e hoje os quilombolas têm que complementar a sua alimentação comprando produtos nos supermercados e vendas do em torno, o que fez a vida mais difícil e acarretou uma maior perda de autonomia.
Nas cidades há muito preconceito e desprezo com relação aos “calungueiros”. As pessoas não conhecem nada da história deste povo, têm uma imagem estereotipada, dizem que são negros fugidos, ignorantes que não sabem falar direito, gente do mato etc, e muitos jovens quilombolas, na ânsia de serem aceitos pelos da cidade, acabam até negando a sua origem. Não há nada mais doloroso e que traga tanta quebra interior e psíquica e perda da autoestima do que isso.
“O grande desafio é buscar formas com as quais as relações já existentes com o mundo alheio à comunidade sejam economicamente viáveis, ecologicamente sustentáveis e culturalmente respeitadas”. (Arantes, M.M; Almeida, M.G)
Os Kalungas possuem uma enormidade de saberes acumulado,s e o território tem um potencial muito grande para se desenvolver com a economia solidária, pois na raiz já estão dentro deste sistema de produção.
Como já vimos, há que se tomar muito cuidado para não trazer de fora projetos que criem diferenças internas em função de alguns passarem a ter bens que os outros não terão, pois isso provocará conflitos entre os Kalungas e só os enfraquecerá. Por isso as metodologias participativas, que abram espaços para debates e que favoreçam as tomadas de decisões pelo maior número possível de quilombolas das comunidades, são as que devem prevalecer para a formatação das políticas públicas.
O turismo pode se apresentar como uma excelente alternativa de geração de trabalho e renda, pois abre diferentes frentes (gastronomia, guias, trilhas, eventos que vão desde palestras à formação de calendário festivo, pousadas, venda de artesanato etc) ou pode ser uma grande ameaça e desarticular não só a identidade dos quilombolas quanto a biodiversidade do território.
Quando o valor do patrimônio cultural passa a incorporar a dimensão econômica, que é competitiva e globalizada há que se ligar um alerta, pois os bens que integram esse patrimônio são coletivos, há o entendimento de que o Sitio é de todos, então como que os recursos gerados por este patrimônio podem ser embolsados somente por alguns quilombolas? Aqui começa a se esgarçarem as relações sociais construídas através de séculos de convívio comunitário.
Temos observado certo modismo em torno do etnoturismo e o que vimos é que sempre há um grupo de empreendedores, muitas vezes de uma mesma família, que levam à frente a ideia e acabam se beneficiando individualmente sem a socialização entre todos os moradores, o que abre fendas com as inclusões e exclusões que essa atividade gerenciada desta maneira provoca no coletivo. Claro que é muito difícil que haja uma viabilidade econômica que possa incluir a todos, porém talvez a inclusão de uma pessoa de cada casa seja possível. Enfim, a lógica da mercantilização do patrimônio coletivo nas mãos de alguns não é um bom caminho e não gera etnodesenvolvimento.
É preciso que haja uma reflexão profunda sobre os impactos do turismo nos territórios quilombolas e que se procure por novas formas coletivas de alternativa para a sua implantação. Em Kalunga várias comunidades têm potencial turístico e já têm grupos interessados em sua implantação. Sem duvida há um grande potencial de geração de trabalho e renda no território através do turismo, o problema é como se dará a apropriação coletiva destes rendimentos e a sua sustentabilidade em face ao território e o meio ambiente.
No Maranhão, as comunidades que o projeto trabalhou eram todas oriundas das remoções dos quilombolas de suas terras pelo Centro de Lançamento de Alcântara da Aeronáutica.
Terezinha, agente do Projeto Etnodesenvolvimento e Economia Solidária, é da comunidade quilombola Agrovila Peru. Seu depoimento é claro:
“(…) antes de virem para cá, antes do remanejamento, eles moravam na beira da praia e era uma comunidade que vivia no alto de um morro … e hoje em dia nós temos a comunidade assim … uma comunidade que sofreu muito com o remanejamento do antigo local para as chamadas Agrovilas, isso foi um impacto muito grande que o CLA – Centro de Lançamento de Alcântara, provocou quando remanejou essas famílias e agrupou em sete Agrovilas.
Para eles, os mais velhos, esse remanejamento é o principal causador dos nossos problemas, se a gente tivesse continuado no antigo lugar, por lá, na opinião deles, talvez nós estivéssemos melhor de vida, em melhores condições, teríamos conseguido mais coisas para as nossas comunidades. O remanejamento mexeu principalmente com a cultura, a forma de vida das pessoas. As pessoas mais velhas nos passam que antes cada comunidade tinha seu modo de vida, tinha o seu modo de produzir e tinha sua religiosidade, assim de uma forma tradicional, e hoje em dia se perdeu muita cultura com o remanejamento. O remanejamento também enfraqueceu os laços pessoais. A união se enfraqueceu.
Nós temos um movimento que é o MAB – Movimento dos Atingidos pela Base, que luta junto com as comunidades quilombolas contra as injustiças do CLA.
Antes, era beira de praia e hoje é muito longe da praia. Os mais velhos falam que antigamente não se comprava peixe, pois o peixe estava dentro de casa, em poucos segundos estava dentro dos igarapés e hoje em dia tem que se comprar de outra comunidade porque só ela está perto do mar. A questão da terra também, essa terra da Agrovila além de pouca não é uma terra produtiva. Tem também as questões das demarcações das glebas que é muito longe para as pessoas estarem trabalhando na produção agrícola. Nós não temos a escritura das nossas casas então não somos donos, né? Então essas são as dificuldades que nós temos na nossa comunidade.
O único conflito que nós temos é com a CLA …as coisas que o CLA quer provocar dentro da comunidade e que nós não aceitamos que é na questão de mexer com as comunidades novamente, então é um conflito permanente que nós temos.
Já tivemos várias reuniões. As Agrovilas que não têm nada de Agrovila, pois não têm terra para plantar, não têm a nossa organização das moradias, não têm mais nada do que tínhamos antes. Nos tiraram de nossas localidades e jogaram em outra. Deram uma casa com dois quartos, sala e cozinha, mas com o banheiro do lado de fora da casa, então isso assim é uma coisa que não agradou muita gente e hoje em dia eles estão com um projeto lá de fazer novos remanejamentos com as pessoas das Agrovilas que já são de remanejamento! Têm comunidades que estão nesse entrave como Cajueiro e Pera que eles estão querendo fazer novos remanejamentos para a construção de um porto de desembarque de combustível, principalmente para foguete, porque como a área do CLA é próxima da linha do Equador tem a facilidade no lançamento de foguete, então eles querem re-remanejar.
Tem outra comunidade chamada UMA, lá nós lutamos diariamente contra o CLA. Já fizemos barricada para parar as máquinas que eles mandavam para a comunidade. Hoje em dia eles têm um projeto já concretizado que a comunidade vai sair e com ela saindo nós vamos perder muito, porque é a comunidade que fica mais perto da praia e é a comunidade que nos fornece alimentação diária, peixes entre outras alimentações.
A gente sempre se reúne com fórum em defesa de Alcântara que é para a gente estar vendo o que nós podemos fazer para barrar o CLA (…) que a comunidade já esteja com as ferramentas na mão para quando eles chegarem na comunidade a comunidade ter o que argumentar.
A praia que nós temos acesso é na comunidade de Mamomas. A praia é bem preservada é uma praia muito bonita, mas não fica muito perto da nossa comunidade e CLA esta com o projeto de remanejar as pessoas de lá também”.
Temos ainda o relato de Quêner Chaves dos Santos, integrante da coordenação executiva do projeto, que nos conta sobre o território de Alcântara, no Maranhão.
“O município de Alcântara está localizado no extremo norte do estado do Maranhão, há 22 quilômetros de sua capital, São Luís. Pode ser acessado por mar, através do canal de São Marcos, por lanchas ou por ônibus através do ferry boat. Administrativamente, o município faz parte da região hoje denominada de Baixada Maranhense, mais precisamente no que é conhecido como Baixada Ocidental e situa-se nos limites da Amazônia Legal. No município existe um importante acervo patrimonial, o que lhe rendeu o título de Patrimônio Histórico Nacional. Alcântara possuiu 21.852[3] habitantes e uma extensão territorial de 1.487 km². Eminentemente rural e extremamente pobre[4], a economia do município está baseada na produção agrícola, extrativismo e turismo.
Fundada em 1648, Alcântara possuía na oportunidade uma economia centrada na produção agrícola, com destaque para o plantio de algodão, apoiado no trabalho escravo. A derrocada da Companhia Geral de Comércio do Maranhão, por volta de 1770 e a queda do preço do algodão no mercado internacional (devido ao final da Guerra Civil nos Estados Unidos – 1861/1865) levaram à ruína os principais estabelecimentos agrícolas. Com este revés econômico, muitas fazendas e engenhos foram abandonados por seus proprietários, o que possibilitou aos descendentes de escravos a ocupação destes espaços. Desta forma, desenvolveu-se uma complexa organização social no município calcado em princípios de base étnica. Atualmente, estes grupos são legalmente reconhecidos como remanescentes de quilombos. Com aproximadamente 152 comunidades identificadas, Alcântara é considerada um território étnico quilombola.
Na segunda metade do século XX, outro episódio abalou profundamente o município. Em 1980, o então Governador do Estado, João Castelo, assinou Decreto (nº 7820/80) desapropriando 52 mil hectares da área do município para instalação de um Centro de Lançamentos de Foguetes[5]. Em 1986, um novo Decreto (nº. 72.571/86) reduziu o módulo rural de 35 para 15 hectares apenas na área relativa à base. “Alcântara tornou-se, deste modo, o único município a possuir dois módulos fiscais – um para a área da base de lançamento e outro para o restante” (PAULA ANDRADE, 2006, p. 17). Em função da implantação do Centro de Lançamento, em 1987, 312 famílias, de 23 comunidades centenárias, foram transferidas para sete agrovilas.
Na opinião de Almeida (2006, p. 81), as transferências representaram “direitos de posse desrespeitados e criação de agrovilas com lotes para cultivo de dimensão inferior aos critérios técnicos definidores dos módulos rurais para a região”. Paula Andrade (2006, p. 18) avalia que o remanejamento “desestruturou um modo de vida, exterminou complexos sistemas de conhecimento e continua, ainda hoje, ameaçando a reprodução física e social de centenas de famílias”. É oportuno ressaltar, as comunidades jamais aceitaram de forma passível os deslocamentos. Em 2000, os quilombolas constituíram o Movimento de Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), principal ferramenta de luta pela conservação dos seus direitos. No ano seguinte, uma denúncia foi encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA)”.
Mais uma vez a violação dos direitos acontece e desta vez pela mão da Aeronáutica.
Combate – Pelo que entendi, Minas foi um caso especial, pois havia um trabalho inicial desenvolvido por Carlinhos Dayrell e o CAA, que tem uma presença marcante e elogiável na promoção de interlocuções e parcerias entre quilombolas, vazanteiros, geraizeiros e os Xakriabá. Esse tipo de articulação – que a meu ver é a estratégia a ser seguida no enfrentamento ao capital e aos megaprojetos governamentais – chegou a ser trabalhado por vocês?
Sandra Mayrink Veiga – Quando chegamos em Brejo para fazer a devolutiva da pesquisa e realizarmos o Seminário de Construção do Plano Territorial a minha xará Sandra, que além de ser presidente da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais, foi a coordenadora territorial no projeto, é uma pessoas guerreira, de um coração enorme e mente iluminada, nos disse o seguinte:
“Como o projeto foi interrompido durante tantos meses e nós aqui estávamos aflitas com a construção do Plano Territorial e como o CAA também tinha um projeto de fazer o Plano de ATER, nós juntamos os dados do censo de Brejo com o trabalho do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas – CAA/NN e fizemos o Plano indo de comunidade em comunidade, fazendo seminário, debatendo, tirando os eixos estratégicos e as propostas para cada eixo. Está tudo documentado e o Plano já está feito. Dá uma olhada e vê se ficou legal e se é o que se está fazendo nos outros estados pelo projeto Etnodesenvolvimento”.
Sabíamos de antemão que o CAA/NN tem um trabalho excelente, é um pessoal sério que sabe trabalhar no campo e usa sempre metodologias participativas. Verificamos, e estava excelente e realmente pudemos nos certificar pelas fotos que tinha sido um processo participativo, democrático e representativo. Adendamos somente algumas linhas em cima dos dados relativos aos eixos que o censo havia trabalhado e que tínhamos discutido ao longo do projeto. O Plano Territorial também esta disponível aqui para todos verem e, em breve, estará também no site do projeto (que deverá chamar-se www.quilombosrurais.com.br ou www.quilombosrurais.org.br) onde também estarão as descrições históricas, os relatos de vida e uma roda de conversa, tudo realizado pela equipe local.
Combate – Confesso a você que só pude dar uma olhada muito rápida no material, mas depreendi que vocês trabalharam em dois momentos, ao longo desses três anos e meio. No primeiro, de pesquisa-ação, recolheram os dados a serem aprofundados e, num segundo momento, devolvidos às comunidades, em seminários organizados exatamente com esse intuito. Além dessa preocupação louvável, que de pronto separa vocês da delinquência acadêmica que se apossa do conhecimento como se pesquisasse insetos ao microscópio, acho que percebi uma preocupação de definir, nesse retorno e junto com as comunidades, responsabilidades a serem assumidas por pessoas ou grupos, inclusive na cobrança de políticas públicas, envolvendo desde educação e saúde à desintrusão dos territórios. Isso será de alguma forma acompanhado e apoiado, após este momento?
Sandra Mayrink Veiga – Olha, Tania, você tem toda razão quando elogia a devolutiva da pesquisa nos territórios, pois ouvimos por toda parte a seguinte frase: “Esta foi a primeira vez que recebemos o resultado da pesquisa feita com a gente e a primeira vez que pudemos debater esses resultados e tirar encaminhamentos para nossas comunidades”. Hoje compreendo melhor o pé atrás que havia com relação à gente do Soltec. Nós representávamos a Universidade, a academia com sua má prática ou delinquência acadêmica, como você chamou. Eu, como venho do mundo das ONGs, especificamente de anos trabalhando na FASE Nacional, custei um tempo para entender a desconfiança.
Nós no Soltec achamos que a comunicação, a transparência e a produção e divulgação de todos os conhecimentos gerados pelo projeto são de fundamental importância por se tratar de um projeto realizado com dinheiro público. Desde o inicio temos esse compromisso firmado com a CONAQ. Agora, politicamente queremos denunciar as violações dos direitos e pressionar para que todas as violações sejam superadas.
Sabe, Tania, tem vezes que por mais que a gente conheça a estrutura do capitalismo, o funcionamento da política no nosso país, o papel das grandes mídias, a estrutura de classes, o bloco histórico da hegemonia etc, etc, você ainda assim não entende como que não se resolvem todas as reivindicações de titulação das terras indígenas e quilombolas. Sei que parece naïve o que estou dizendo, mas é uma canetada de uma vez por todas e pronto, está resolvido. Mas não!
O agronegócio, as multinacionais, a especulação imobiliária, o latifúndio, as Forças Armadas (em Marambaia, Alcântara e Rio dos Macacos) …“inimigo(s) que não têm cessado de vencer”, vão sempre ganhando contra qualquer argumento que demonstre que o melhor para o Brasil e para o Planeta seria o reconhecimento que estas terras reivindicadas têm dono sim, e os donos são os quilombolas e os índios e que eles, ao contrário do que dizem estes senhores e senhoras, não representam o atraso, mas, pelo contrário, trazem diversos elementos de um futuro melhor. Mas, continuaremos a lutar!
Eu penso que seria importante que em todas as comunidades onde estiver havendo violação dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais deveríamos montar um processo em conjunto e entrar na Corte Interamericana de Direitos Humanos e na Corte Internacional de Direitos Humanos para fazer a denúncia das violações. Muito já foi feito pelo movimento e seus apoiadores, mas acho que deveríamos fazer esse processo em conjunto e protocolar nas Cortes, pois ainda é um instrumento de pressão que tem força mundial. Os dados do Censo podem colaborar com isso.
Eu pessoalmente acho que os censos são ferramentas importantíssimas para as comunidades e para o movimento quilombola e devem ser usados politicamente como elementos auxiliares na plataforma de luta, tanto dos movimentos locais quanto do movimento nacional.
O projeto deixou outro legado que penso ser importante: em cada território destes existe um pequeno grupo de quilombolas que sabem fazer a pesquisa-ação e sempre que, por exemplo, a Associação ou a Federação precisarem de informações para debater alternativas, tirar diretrizes, este grupo pode fazer uma pesquisa com toda a autonomia e gerar os dados necessários para este processo.
Estes territórios fizeram seu Plano de Ação com os responsáveis pelas ações, com datas, prazos e os encaminhamentos para cada ação. Nós estamos aqui sempre à disposição para auxiliar no que demandarem, mas a ação concreta é dos quilombolas nos territórios.
No momento estamos colocando o site no ar, acabando o vídeo do projeto, que está muito legal, finalizando a prestação de contas junto à SENAES e nos dedicando à divulgação dos relatórios dos censos e de todos os produtos, como cartilhas, o catálogo com os produtos quilombolas, e o site onde tudo estará disponibilizado. O blog Combate Racismo Ambiental está sendo o primeiro a receber este material, pois é um blog muito sério, combativo e dinâmico, e temos a certeza que se empenhará na divulgação dos relatórios pelas redes e organizações parceiras. E eu tenho certeza que este trabalho de formiguinha que sempre fizemos irá longe e contribuirá para dar visibilidade aos quilombolas, às denuncias de violação de direitos, às pesquisas e aos materiais didáticos e outros produzidos no projeto.
Combate – No que diz respeito aos demais estados, tratados num conjunto sem a mesma profundidade, há a hipótese de eles serem trabalhados numa próxima fase?
Sandra Mayrink Veiga – Isso depende de um novo edital e se a CONAQ vai ter o desejo de continuar trabalhando com a gente. Eu por mim tenho uma enorme vontade e desejo de montarmos mais uma vez um projeto em conjunto, como foi o processo deste, levando em consideração agora tudo que aprendemos nessa experiência coletiva, para organizarmos os empreendimentos solidários onde ainda não estão organizados e, onde já estiverem, começarmos a montar as cadeias produtivas, como a da mandioca, a do turismo étnico – com todos os cuidados que esta cadeia requer -, a dos artesanatos, das frutas, da pesca etc.
Combate – Nós sabemos muitíssimo bem que o Brasil parece ter orgulho de não cumprir sua Constituição (ou há 25 anos todos os territórios originários estariam demarcados) ou, mesmo, os tratados internacionais que assina (para ficar no mais óbvio, citemos a Convenção 169 da OIT). Nas “relações pedagógicas” que vocês evidentemente estabeleceram com os quilombolas houve a preocupação de esclarecer quanto a esses direitos e de discutir a forma de lutar por eles?
Sandra Mayrink Veiga – As lideranças quilombolas ligadas à CONAQ estão muito esclarecidas e levam à frente várias lutas e ações em defesa dos seus direitos, tanto em âmbito local quanto nacional. Isso ficou bem claro, sobretudo nos seminários para a elaboração dos Planos Territoriais de Etnodesenvolvimento, Economia Solidária e Politicas Públicas. Nós achamos que o projeto auxiliou no fortalecimento do movimento através dos vários encontros que o Programa Brasil Local, coordenado por Caritas, realizou com os nove projetos que compunham o Programa, como também dos seminários nacionais do próprio projeto Etnodesenvolvimento e Economia Solidária, onde a rede das lideranças se fortaleceu bastante.
Por outro lado, a pesquisa lhes forneceu um fortalecimento local muito grande, pois foram os(as) próprios(as) quilombolas que realizaram o levantamento dos dados, ou seja, entraram em todas as casas das comunidades, conversaram com todas as famílias, ouviram muitos relatos, conheceram melhor as pessoas, tornaram-se mais conhecidas e reconhecidas pelo trabalho que estavam fazendo para as comunidades. Isso está documentado por vários relatos da equipe. Muito oposto ao que alguns no inicio pensavam – que as lideranças tinham virado recenseadoras em vez de estarem na luta, e que isso era muito ruim para o movimento; ou seja, que o projeto iria prejudicar o movimento -, o que ficou claro foi justamente o contrário: essas lideranças souberam aprender várias coisas novas e usaram da pesquisa para se fortalecerem nas comunidades e no próprio movimento nacional.
A política se faz de várias maneiras e formas. E hoje as comunidades e o movimento têm dados coletados, analisados e sistematizados de forma cientifica para embasar as suas estratégias, seus projetos e também as suas denúncias de violação de vários direitos.
Combate – Infelizmente, mais ainda que os quilombolas são os povos indígenas quem mais sofre com a política dos monocultivos e dos megaempreendimentos, que vão das barragens e hidrelétricas à ameaça cada vez mais presente da mineração desenfreada e, agora, do fracking. Vocês têm alguma intenção de trabalhar em relação a eles?
Sandra Mayrink Veiga – Nós no Soltec ainda não temos nenhuma expertise que possamos oferecer em auxílio aos povos indígenas. a não ser talvez a da Rede da Pesca Solidária, se eles algum dia solicitarem apoio nesse sentido e se o Soltec puder atender à demanda. Acho que há outras instituições apoiando essa luta, mas podem sempre contar com o nosso apoio para ajudar a denunciar as arbitrariedades e violações dos direitos.
Combate – Finalmente, o que esqueci de perguntar e você gostaria de dizer?
Sandra Mayrink Veiga – Acho que já temos um bom panorama inicial do que foi produzido, e os leitores agora podem se dirigir para os relatórios e para os planos territoriais diretamente. Quero agradecer publicamente o apoio e o interesse demonstrado pelo blog Combate Racismo Ambiental na figura da minha companheira de muitos anos de luta Tania Pacheco. E, por fim, dizer que todos os contatos de todos e todas da equipe do projeto se encontram nos próprios relatórios dos censos. Obrigada em nome da equipe, e aproveitamos para solicitar encarecidamente que todos(as) leitores(as) divulguem este trabalho nas suas redes e contatos institucionais e pessoais colaborando desta maneira para tornar públicas as violações de direitos que estão acontecendo nos territórios quilombolas de norte a sul, de leste a oeste do Brasil.
——–
[1]Energia elétrica, água encanada, etc.
[2]Pesquisa desenvolvida com o apoio do Institut de RecherchepourleDéveloppement-IRD (França ) e do CNPq- edital universal Ciências Humanas e Sociais, 2009. Pesquisadora do CNPq.
[3] Dados Censo 2010.
[4] Segundo o Censo 2010, 72,42% dos moradores estão abaixo da linha da pobreza.
[5] Segundo CHOAIRY, a localização do município próximo a linha do Equador possibilita uma redução de 30% nos custos dos lançamentos.
Documentos para serem baixados:
Pará
Capa do Relatório – partes 1 a 4 -Pará
Plano Territorial de Etnodesenvolvimento, Economia Solidária e Políticas Públicas do Pará
Goiás
Relatório Final da Pesquisa Quantitativa em cinco comunidades Quilombolas de Kalunga, Goiás
Minas Gerais
Plano de Etnodesenvolvimento do Quilombo de Brejo dos Crioulos
Relatório Final da Pesquisa Quantitativa em nove comunidades quilombolas de Brejo dos Crioulos
Entrevista originalmente publicada por Tania Pacheco, no blogue Combate ao Racismo Ambiental e reproduzida pelo EcoDebate, 20/12/2013
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