O desafio das cidades no Semiárido Brasileiro, artigo de Roberto Malvezzi
Introdução
Os desafios do Semiárido brasileiro sempre foram vistos como uma questão rural. As razões são óbvias: são as populações difusas do Semiárido, residentes num espaço de aproximadamente um milhão de km2, as que estão menos infraestruturadas para enfrentar as adversidades normais de um clima semiárido. Como já registramos diversas vezes, é essa população que está retratada na música de Luiz Gonzaga, nas pinturas de Portinari, nos romances de Graciliano Ramos ou na poesia de João Cabral de Melo Neto.
Os personagens desses artistas estão dominados por uma realidade fatalista que os condena ao sofrimento eterno. Estão razoavelmente bem de vida nos tempos chuvosos e sujeitos à migração, à fome, à sede, à morte em tempos de longas estiagens. Junto com eles seguem o mesmo destino seus animais, como a cadela Baleia em Vidas Secas, o alazão de Asa Branca, o Boi Fubá de Patativa do Assaré.
Na realidade cruel e factual do Semiárido de tempos atrás, em tempos de longas estiagens era essa população que montava em paus-de-arara para ir para o sul, que frequentava as longas filas dos flagelados, que trabalhava nas “Frentes de Emergência”, que saqueava as cidades, ou simplesmente morria pelas estradas de fome e de sede.
O trabalho minucioso da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), costurando uma malha de pequenas obras hídricas e de produção próximas das casas dessas populações, com algum trabalho educativo na compreensão do que seja o Semiárido no qual vivem, potencializando a intuição e os saberes já acumulados pelo povo, fez com que essa realidade, nessa longa estiagem que atravessamos desde 2011 até 2013, já não seja tão cruel quanto em outras épocas. Agora a grande mídia nacional aprimorou-se em denunciar a mortalidade dos animais, particularmente do gado bovino – um caso que merece consideração à parte -, mas já não encontra material para falar das grandes migrações, da fome, da sede, da mortalidade dos seres humanos. Ainda na seca de 1982-1983 um livro chamado “Genocídio do Nordeste”, elaborado por um conjunto de entidades que atuavam na região semiárida, projetou a morte de, pelo menos, um milhão de pessoas vitimadas pelas consequências daquela grande estiagem.
Tem contribuído de forma decisiva também para esse novo enfrentamento, com menos sofrimento, as políticas de distribuição e transferência de renda do governo federal, como a aposentadoria dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, assim como o próprio Bolsa Família.
Em conversas diretas com a população, particularmente aqueles que enfrentaram os desafios da estiagem de 1982-1983, ou ainda alguns mais idosos que enfrentaram estiagens mais antigas, vários outros fatores contribuem para um enfrentamento menos trágico do que em outros tempos.
Segundo essas pessoas, a melhora no sistema de transportes – estradas, ônibus, veículos particulares como motos, carros e picapes – facilita o acesso à água que antes era buscada mais longe apenas em lombo de jegue, carroças e mesmo sobre as cabeças e ombros das mulheres.
O fato da energia ter chegado a muitos lugares facilita a implantação de poços tubulares, com bombeamento de água do subsolo, que embora tantas vezes salobra, ao menos serve para a labuta diária da casa e, se o sal não for muito concentrado, para a dessedentação dos animais. Há ainda uma bomba manual, tecnologia difundida pela ASA que colabora muito na disponibilidade hídrica nesses momentos de maior necessidade.
Há mesmo quem afirma que, apesar de todas as precariedades dos assentamentos, a conquista da terra via a reforma agrária ajuda na produção de alimentos e na possibilidade da multiplicação das tecnologias sociais de captação e manejo da água de chuva. De fato, alguns canteiros de produção do projeto P1+2 – Uma Terra e Duas Águas – em plena seca, são como oásis no deserto.
É preciso citar ainda que a insistência numa pecuária de animais de pequeno e médio porte mostrou-se acertada. Nessa estiagem, enquanto o gado bovino morre em quantidade por razões de fome e sede, caprinos e ovinos estão bem, sem perdas, garantindo a quantidade de proteínas e renda necessárias para a população.
Enfim, todo esse leque de novas políticas e novas tecnologias nos indicam que o caminho para a convivência com o Semiárido traçado pela ASA está no caminho correto. Mas, como ainda estamos longe da massificação total dessas tecnologias – as cisternas de produção pouco passam de 10 mil – muitas famílias do meio rural ainda enfrentam situação difícil de sobrevivência em tempos de longas estiagens.
Nesse processo não se pode ignorar, jamais, que existe um confronto de dois projetos para o Semiárido. A velha indústria da seca, alimentada por grandes projetos que não chegam ao cotidiano das populações, mas que são do interesse dos grupos econômicos e políticos, esforça-se para manter seu projeto hegemônico como se ele fosse a solução. A introdução das cisternas de polietileno pelo Ministério da Integração Nacional deve ser vista como uma tentativa de derrubar o novo paradigma da convivência com o Semiárido, construído com diversos apoios, mas feito efetivamente na ponta pela própria população local. Portanto, o que se desenha para o futuro continua sendo um confronto de leituras do Semiárido. O que ninguém mais pode negar, entretanto, é que a lógica da convivência meteu uma cunha no mundo de velhos e novos coronéis que povoam o Semiárido brasileiro e que sempre acumularam patrimônio, renda e poder à custa da população que vivia na miséria. Há algo de novo no Semiárido e ele precisa ser fortalecido para que os sofrimentos em tempos de longa estiagem sejam definitivamente vencidos.
1. Cidades do Semiárido: um novo desafio
Acontece que a realidade social nunca é estática. Quando velhos problemas sociais são resolvidos, surgem novos desafios, frutos da nova realidade. A verdade é que hoje o Semiárido já possui um grande número de cidades -1.133 municípios – e grande parte da população da região também já vive em cidades, embora continue sendo a região mais rural do país. A população da região semiárida está estimada em aproximadamente 22 milhões de pessoas, sendo que 38% (cerca de 8,5 milhões) estão no meio rural e 62% (cerca de 13,5 milhões) estão nas cidades (Site da ASA). Então, nessa estiagem de 2011-2013 uma série de problemas, particularmente de abastecimento hídrico das populações, tem se revelado também nas cidades, obrigando o governo federal e alguns estaduais a construírem obras se emergência para garantir a segurança hídrica da população urbana.
O problema da insegurança hídrica nas cidades pode ser tão ou mais grave que no meio rural. É nos centros urbanos que reside grande parte da população e onde estão os serviços de saúde e educação, o comércio, a administração pública e a indústria. No meio rural a situação se abate sobre populações isoladas, que de alguma forma adquiriram um jeito de enfrentar as penúrias impostas pela escassez de água. Porém, quando falta água nas cidades tudo entra em falência: o abastecimento humano, o comércio, a indústria, o saneamento e tudo que dependa do uso da água. É uma verdadeira tragédia social.
O problema já havia sido diagnosticado pela Agência Nacional de Águas (ANA), em seu Atlas do Nordeste feito entre 2005 e 2006. Àquela época, mesmo ainda não considerando os municípios com população abaixo de cinco mil pessoas, o estudo feito pela Agência já desenhava um futuro sombrio para 1.384 sedes urbanas do Nordeste, a esmagadora maioria do Semiárido. Em um período projetado entre 2015 a 2025 previa que uma série imensa de cidades da região poderia entrar em colapso hídrico caso não fossem ampliados ou feitos novos serviços de abastecimento de água para esses municípios. Acontece que a longa estiagem desses anos atuais, não devidamente considerada nesses estudos, antecipou o colapso hídrico de cidades com populações consideráveis, como é o caso de Guanambi e Irecê na Bahia, ou Serra Talhada no Pernambuco. É bom considerar ainda que grande parte das cidades do litoral e do Agreste Nordestino é abastecida por águas originárias do Semiárido que escoam em direção ao litoral.
O Atlas do Nordeste – hoje ATLAS Brasil, já que o estudo se estendeu a todo território nacional – é um dos bons exemplos da seriedade nos serviços públicos do país, ao menos enquanto diagnóstico. O estudo, posteriormente, foi refinado também para os municípios abaixo de cinco mil habitantes, totalizando um número espantoso de 1.892 sedes urbanas no Nordeste necessitando da ampliação ou novos serviços de água. Portanto, do ponto de vista de diagnóstico, nenhuma autoridade federal, estadual ou municipal pode alegar falta de conhecimento do que deve ser feito para garantir o abastecimento hídrico na região semiárida, inclusive em todo o Brasil.
O básico do Atlas do Nordeste é o diagnóstico minucioso de município a município em termos hídricos. É avaliada a situação atual de cada um deles e projetada a demanda urbana de água para o futuro, particularmente o período de 2015 a 2025. O diagnóstico aponta ainda os mananciais – de superfície e subterrâneos – que ofertarão a água, a obra a ser feita, inclusive os custos preliminares da referida obra. Hoje, cada cidadão pode acessar o ATLAS Brasil e conferir a situação de seu município em termos de água e a demanda para o futuro
A maioria das propostas são serviços de adução para as sedes urbanas, o que se configura num perfil de obra de outra natureza se comparadas àquelas do meio rural. Onde existe concentração urbana a necessidade passa pela adução da fonte até o serviço de tratamento de água municipal, com sua consequente distribuição para o uso doméstico, industrial, nos serviços e demais demandas. Há municípios, como Pintadas na Bahia, que combinam em pleno meio urbano a distribuição dos serviços distribuição de água no meio urbano com as cisternas de captação da água de chuva. É que o manancial que abastece a cidade contém sal, o que obrigou a prefeitura a construir cisternas para garantir água doce para o consumo humano em pleno meio urbano.
Acontece que nem sempre a fonte abastecedora está próxima daquele núcleo urbano. Um exemplo é Aracaju, que tem grande parte de sua demanda de água feita pelas águas do rio São Francisco. As adutoras que levam água até Aracaju, distância de aproximadamente 100 km, são feitas por tubulações, o que evita perdas por evaporação, vazamentos e diminui grandemente os impactos sociais e ambientais de uma obra como essa. Ao contrário da Transposição de Águas do Rio São Francisco para o chamado Nordeste Setentrional, feita por imensos canais, impactando a caatinga, as famílias que estavam em seu percurso, cortando o caminho de animais selvagens e domésticos, dificultando inclusive o trânsito da população da região.
Algumas dessas adutoras, como a do Pajeú, no sertão de Pernambuco, em seu traçado abrangem uma série de municípios e comunidades rurais, evidenciando que elas podem ser otimizadas, diminuindo custos e ganhando em eficiência. O colapso hídrico que se tornou iminente em meados de 2013 na cidade de Serra Talhada, obrigou o Ministério da Integração Nacional a apressar essa adutora que se arrastava há muitos anos. Sua fonte principal de abastecimento é o rio São Francisco. Mas, ela deveria estar pronta há muito mais tempo, chegando inclusive a municípios da Paraíba, que não deveriam passar as necessidades que passam hoje.
Nesse sentido é que se estabeleceu o conflito de grandes obras como a Transposição com o tipo de adução estabelecido pela Agência Nacional de Águas. Na lei brasileira de recursos hídricos, a prioridade no uso da água é o “abastecimento humano e a dessedentação dos animais (Lei n.9.433/97, art. 1, Inciso III). Portanto, o Atlas do Nordeste indica aduções que tem por finalidade o abastecimento hídrico das populações urbanas, não o uso econômico em projeto do agro e hidronegócios, como a irrigação intensiva e a criação de camarões em cativeiro. Esse conflito está posto e a disputa por esse tipo de obras que interessam ao capital deverá continuar e se aprofundar. Uma das razões da escassez de água no meio urbano nessa longa estiagem é que as águas dos açudes e barragens foram prioritariamente utilizadas para irrigação e, inclusive, para as obras da Transposição do São Francisco, diminuindo drasticamente a oferta de água para as populações urbanas.
Foi esse tipo de situação, por exemplo, que se criou com a barragem de Mirorós, no rio Verde, um afluente do São Francisco. A água da barragem foi intensamente utilizada para a irrigação de bananeiras, o que reduziu a 8% as suas reservas, restando uma água salinizada imprópria para o consumo humano. O fato obrigou o governo baiano, em parceria com o governo federal, a instalar rapidamente a adutora para Irecê, tendo como fonte o rio São Francisco. Acontece que essa adutora, por elevar mais alto a água colhida da fonte, consome muito mais energia, elevando o custo da água na ponta final. Portanto, um olhar sistêmico sobre o uso da água na região semiárida, incluindo o abastecimento urbano, necessariamente gerará conflitos entre os usos prioritários e os usos econômicos. Na lei prevalece o abastecimento humano e a dessedentação dos animais. Na prática prevalecem os usos do agro e hidronegócios.
Esse conflito no uso da água dos mananciais estendeu-se inclusive às águas subterrâneas. No chamado Platô do Irecê, Bahia, o uso intenso das águas subterrâneas secou os aquíferos, gerando inclusive instabilidade geológica, como é o caso da cidade de Lapão, que apresentou problemas de afundamentos do terreno em pleno coração da cidade. Segundo técnicos que se reuniram no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia em 2012, o mesmo fenômeno de eliminação dos mananciais pode acontecer no Oeste Baiano se o poder público não fiscalizar eficientemente o uso das águas do aquífero Urucúia pelo agronegócio da região.
2. O futuro
Enfim, não poderemos mais analisar o Semiárido brasileiro apenas a partir do meio rural, embora ali ainda esteja a população em situação de maior vulnerabilidade. Agora a questão urbana tornou-se tão fundamental quanto a rural. O paradigma da convivência com o Semiárido também terá necessariamente que incluir o meio urbano.
Sucede que há um conflito explícito pelo uso da água no Semiárido entre os usos prioritários e econômicos. Portanto, além de uma disputa de paradigmas, há também uma disputa de classes. A sociedade civil organizada, até agora devotada a pensar o meio rural, também terá que considerar o meio urbano. Aliás, a distinção absoluta entre rural e urbano já não cabe mais em nossa sociedade, inclusive na região semiárida. Há múltiplas interfaces no momento atual entre mundos que eram considerados absolutamente distintos e até antagônicos.
Se obras hídricas de porte médio, como as adutoras, não estão ao alcance das organizações em suas implementações, é para tal que existe a luta política. Se no meio rural podemos fazer uma luta política e participar da implementação dessas tecnologias, no meio urbano nos cabe a luta política para que o Estado brasileiro implemente os serviços de água prognosticados no ATLAS do Nordeste para o meio urbano.
Dessa forma, a convivência com o Semiárido passa a ter um olhar mais sistêmico sobre a realidade da região, mais integrado, reconhecendo o papel importante da sociedade civil no meio rural, mas agora estendendo-o a uma luta política para o meio urbano.
Referências:
ASA. Semiárido. Página Inicial. Disponível em: <http://www.asabrasil.org.br>. Acesso em: 17 jun. 2013.
BRASIL. Lei Brasileira de Recursos Hídricos n. 9.433/97. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 17 jun. 2013.
BRASIL. Agência Nacional de Águas. Atlas do Nordeste. Disponível em: <http://atlas.ana.gov.br>. Acesso em: 17 jun. 2013.
CPT. CEPAC. IBASE. Genocídio do Nordeste 1979-1983. Salvador: Mandacaru Ltda, 1984.
DA SILVA, R. M. Alves. Entre dois paradigmas: combate à seca e convivência com o semi-árido. Disponível em: <www.rematlantico.org>. Acesso em: 17 jun. 2013.
MALVEZZI, Roberto. Semi-árido: uma visão holística. CONFEA/CREA: Brasília, 2007
OBS: texto feito para o módulo “Desafios contemporâneos do Semiárido” de ensino à distância da REDEgenteSAN / FAURGS-IABS-MDS.
Roberto Malvezzi (Gogó), Articulista do Portal EcoDebate, é Graduado em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena/SP. Assessor das Pastorais Sociais, escritor e compositor. Residente em Juazeiro da Bahia.
EcoDebate, 18/12/2013
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Roberto Malvezzi, o popular Gogó, apresenta um excelente artigo sobre os problemas hídricos do semiárido. Concordamos com ele quando diz que a água é um produto escasso e, portanto, deve ser usada com parcimônia, evitando desperdícios.
Como a quantidade de água é restrita, a prioridade é o abastecimento humano e animal, conforme está na legislação. Entretanto, a agricultura familiar e a rega de plantas é essencial para a sustentabilidade da região.
Portanto, é necessário aumentar a oferta de água, especialmente nas cidades ameaçadas de colapso hídrico. Lamentavelmente, não está previsto o reúso do esgoto sanitário, que polui rios, córregos e açudes, como vem sendo feito pela Sabesp em São Paulo e pela Caesb em Brasília. Lembro que a vazão de esgoto sanitário pode chegar a 80% das necessidades hídricas de uma cidade e, dessa forma, muitas cidades ameaçadas de colapso hídrico poderão ter sua situação normalizada.
Finalmente, gostaria de dizer que não há nenhum paradoxo entre a transposição de águas para o Nordeste Setentrional e outras transposições de água citadas pelo Gogó. Por exemplo, a transposição de águas do Rio São Francisco para o sertão de Pernambuco será feita por meio de uma adutora (a adutora do Pajeú) porque a vazão será praticamente constante. No caso da transposição de águas para o Nordeste Setentrional, a condução da água será feita tanto por canais como pelo leito de rios intermitentes porque a vazão será muito variável e, tecnicamente, não se justificaria criar adutoras em paralelo para fazer frente às diferentes vazões de transposição.