‘As sementes transgênicas não são mais produtivas, nem foram planejadas com este objetivo’. Entrevista com Leonardo Melgarejo
“Quanto vale a diferenciação de mercados, e quem ganhou com o fato de o Rio Grande do Sul ter jogado fora a preferência dos consumidores europeus? Mas este não é um problema de miopia gaúcha. O mesmo aconteceu no Paraná, onde o governo local defendeu os interesses da soberania nacional por mais tempo”, constata o engenheiro agrônomo.
Passados 10 anos da entrada das sementes transgênicas no Brasil, alguns efeitos sociais e econômicos deste tipo de agricultura podem ser melhor visualizados. Dados indicam que há maior concentração no mercado de sementes, o que resulta em menor poder de escolha dos agricultores, sem contar que aumentou o uso de agrotóxicos, afinal as sementes geneticamente modificadas são mais resistentes a esses produtos químicos. “O objetivo prioritário das empresas parece associado à inserção de transgenes que permitem banhar as lavouras com venenos e alimentar mecanismos de vendas casadas capazes de ampliar a renda de controladores dos mercados de sementes e de agrotóxicos”, explica Leonardo Melgarejo, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
De acordo com Leonardo Melgarejo, as promessas de aumento de produtividade das sementes transgênicas restaram improvadas, o que na prática nunca foi o objetivo na manipulação genética dos grãos. Ao contrário da expectativa, os transgênicos acabaram gerando mais custos. “Isto trouxe crescimento nos custos de produção e redução na rentabilidade, obrigando à busca de ganhos de escala via expansão no tamanho das lavouras. Os resultados práticos estão aí: aumento na concentração de terras, esvaziamento demográfico do campo, desaparecimento de atividades produtivas, desmatamentos, enchentes, problemas ambientais”, aponta.
“Além disso, está sendo estimulada a dependência dos agricultores e a subordinação de nossa economia a interesses pouco comprometidos com nosso desenvolvimento”, complementa. A incorporação da transgenia na agricultura nacional gerou, segundo Melgarejo, degradação ambiental e socioeconômica, cuja avaliação de todos esses processos não pode se chamada de “desenvolvimento”, pois não tem perspectiva de futuro, apesar de certos ganhos setoriais.
Leonardo Melgarejo é engenheiro agrônomo e mestre em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Realizou doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Entre outras atividades profissionais, foi chefe da Divisão de Planejamento e Coordenador do Núcleo de Planejamento, Estudos e Projetos da Empresa de Assistência e Extensão Rural – Emater-RS. Realizou atividades de docência na FATES (atual UNIVATES), na UNIJUÍ e na UFRGS. No momento, é assessor da superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra-RS. É representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário junto à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CTNBio, desde março de 2008, faz parte da AGAPAN e do GEA – NEAD/MDA (Grupo de Estudos em Agrobiodiversidade, do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, do Ministério do Desenvolvimento Agrário).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Os primeiros grãos de soja transgênica vieram clandestinamente da Argentina, ainda no final da década de 1990, apelidados de “maradonas”. Como, a partir de então, as sementes transgênicas se espalharam pelo Rio Grande do Sul?
Leonardo Melgarejo – Progressivamente, avançou a concentração do mercado de sementes, trazendo redução no leque de opções oferecidas aos agricultores. Com poucas grandes empresas dominando o mercado, com vendedores comissionados recebendo taxas associadas aos preços das sementes, com as facilidades que o pacote semente+herbicida efetivamente oferecia para o controle de ervas, vários fatores exerceram efeitos de persuasão que ajudaram na expansão do uso dessas sementes.
Vantagens iniciais efetivas, no sentido de redução na penosidade do trabalho e na simplificação do manejo se somaram a efeitos persuasivos de vasta e bem articulada campanha de divulgação, veiculada nas grandes mídias com apoio de formadores de opinião considerados de alta respeitabilidade. O governo federal contribuiu de forma decisiva, através das ações e mesmo de omissões na fiscalização e na divulgação de informações. Inicialmente passamos por uma fase de redução nos resultados das lavouras, onde, a partir de um primeiro ano de clima excepcional, sementes não transgênicas de maior produtividade foram substituídas por outras, de menor rendimento, com as perdas mascaradas por mecanismos de preços em alta. Posteriormente novas sementes geneticamente modificadas reduziram problemas de produtividade e, mesmo sem oferecer ganhos em relação às lavouras convencionais, pelo fato de se mostrarem superiores aos grãos contrabandeados da Argentina, passaram a ser associadas a vantagens fictícias.
A queda nos resultados econômicos, decorrentes de falhas da tecnologia, com o surgimento de plantas espontâneas tolerantes aos herbicidas daqueles pacotes tecnológicos, foi camuflada pelo lançamento de novos pacotes tecnológicos, como as variedades de milho Bt , resistentes a alguns insetos. Atualmente estas pseudo-vantagens estão desmascaradas pela realidade. Diante de lagartas resistentes comendo o milho que produz toxinas Bt, em lavouras infestadas por ervas que não morrem mesmo encharcadas de herbicidas, os agricultores aguardam a liberação de novas sementes transgênicas, tolerantes a agrotóxicos mais poderosos e contendo proteínas inseticidas teoricamente mais eficazes.
E se os agricultores pretenderem cultivar aquelas variedades não transgênicas de milho e soja, perceberão que elas não são disponíveis. Mesmo querendo, não vão conseguir comprar sementes. A busca de ganhos de produtividade em melhoria de sementes não transgênicas perdeu espaço nas pesquisas e isso se refletiu na multiplicação de sementes e na manutenção de estoques à disposição dos agricultores.
O objetivo prioritário das empresas parece associado à inserção de transgenes que permitem banhar as lavouras com venenos e alimentar mecanismos de vendas casadas capazes de ampliar a renda de controladores dos mercados de sementes e de agrotóxicos. É claro que as empresas procuram inserir os transgenes nas variedades convencionais mais produtivas do momento. Porém, o tempo necessário para incorporação destas características obriga os agricultores a esperar até 10 anos, antes de ter acesso aos ganhos de produtividade. É importante sublinhar: as promessas de ganhos de produtividade através da transgenia ainda não foram cumpridas. Estas sementes não são mais produtivas, nem foram planejadas com este tipo de objetivo.
A Embrapa mostra que as lavouras brasileiras de milho apresentavam um ganho de produtividade efetiva que superava 1% ao ano, antes do surgimento dos transgênicos. Como as empresas afirmam necessitar de 10 anos para produzir um evento deste tipo, resta supor que estamos trabalhando com as melhores sementes de 10 anos atrás, e que com isso o Brasil está perdendo parcela importante da safra potencial. Ao mesmo tempo, em função de falhas da tecnologia, o uso de agrotóxicos aumentou. Isto trouxe crescimento nos custos de produção e redução na rentabilidade, obrigando à busca de ganhos de escala via expansão no tamanho das lavouras. Os resultados práticos estão aí: aumento na concentração de terras, esvaziamento demográfico do campo, desaparecimento de atividades produtivas, desmatamentos, enchentes, problemas ambientais.
IHU On-Line – Como foi a tentativa de resistência do governo gaúcho no começo dos anos 2000, à época comandado por Olívio Dutra, no sentido de proibir o plantio de sementes transgênicas?
Leonardo Melgarejo – Não estou entre as pessoas suficientemente informadas para esclarecer este ponto. Acompanhei o processo desde uma perspectiva setorial, associada aos trabalhos da Empresa de Assistência e Extensão Rural – Emater, que iniciava esforço no sentido de incorporar princípios da Agroecologia na sua atuação. Na ocasião, as informações eram incipientes, praticamente inexistiam estudos independentes e a resistência aos transgênicos se apoiava antes na precaução e na fragilidade dos pressupostos da tecnologia do que na evidência de problemas.
Hoje a situação é distinta e as dúvidas se reduziram. Não se dissiparam apenas porque as informações são controladas por grupos interessados e porque este campo do conhecimento permite especulações de todo o tipo. Ainda assim, nem mesmo os mais ardorosos defensores da soja transgênica mantêm dúvidas a respeito do que aconteceu a partir daquela primeira geração de sementes transgênicas.
Embora de mais fácil gerenciamento, as lavouras de milho e soja tolerantes a herbicidas não são mais produtivas do que as não transgências. E sua expansão não apenas levou ao crescimento no uso de agrotóxicos como trouxe custos novos que, na prática, determinaram queda de rendimentos por metro cultivado, exigindo expansão no tamanho das lavouras, com implicações brutais sob o ponto de vista socioeconômico e ambiental.
Durante o Governo Olívio, que foi muito curto, havia um esforço no sentido de democratização das intervenções, com estímulo a processos participativos e discussões de base. O empenho aplicado no sentido da socialização de informações e envolvimento das pessoas na compreensão e no protagonismo exigia a formação de formadores, algo semelhante a processos de educação informal, onde os resultados são lentos.
A Emater iniciou um trabalho com seus técnicos e precisou de meio governo para consolidar de forma muito incipiente algumas novas práticas. E, enquanto o governo formava seus agentes, a semente maradona passava a fronteira. O Ministério da Agricultura não fiscalizava o plantio irregular, nem delegava ao governo gaúcho esta atribuição. Todos sabíamos que o plantio estava sendo realizado com sementes transgênicas e todos escutávamos formadores de opinião mencionando o atraso dos que negavam as vantagens da nova tecnologia.
Diante do fato consumado, o governo federal autorizou a comercialização em 2003. Dados da Emater mostraram o seguinte: naquele primeiro ano da soja transgênica, uma semente não adaptada às condições gaúchas, desenvolvida para cultivo mais ao sul, apresentou uma produtividade que superou todas as expectativas. Quem acompanha dados de safra sabe que normalmente a colheita se mostra cerca de 15% inferior às previsões realizadas por ocasião do plantio. Os agricultores costumam ser otimistas quando preparam as lavouras, e suas respostas traduzem este otimismo. Os agricultores, os pesquisadores e os analistas corrigem gradativamente seus números e expectativas ao longo da safra. Via de regra, o resultado informado após a colheita se revela perto de 20% inferior às previsões iniciais. É fácil entender isso: o rendimento efetivo tende a ser menor do que o rendimento potencial, porque apenas nos laboratórios existem controles que limitam a aleatoriedade dos fatores ambientais.
Pois bem, naquela primeira safra transgênica, a excepcionalidade do clima ocasionou alteração neste padrão. Os resultados finais se mostraram 10% superiores às expectativas iniciais e 40% superiores à média observada nas três safras anteriores. Os defensores da tecnologia iludiram a população, afirmando que aquele resultado se devia à tecnologia. No ano seguinte ocorreu o inverso, mas isso não foi comentado. O prejuízo da safra seguinte foi atribuído ao clima, e compensado com recursos do Tesouro, rolagens de dívidas e novos créditos. Tudo isso ajudou na polarização de opiniões, com o governo gaúcho sendo isolado, numa disputa desigual. E, claramente, o governo também vivenciava crise de identidade a respeito deste tema.
Infelizmente, como resultado, perdemos a condição de nos firmarmos como grandes exportadores de grãos não transgênicos. Inviabilizamos o mercado da soja limpa, o cultivo e a exportação de milho não transgênico, e estamos com o arroz ameaçado pela possível liberação de um grão tolerante ao glufosinato de amônio . As implicações são enormes. Se não houvéssemos entrado nesta aventura, teríamos assegurado o mercado europeu, que proíbe o plantio destas lavouras e apenas aceita importar os grãos geneticamente modificados colhidos em outros locais porque não encontra oferta suficiente de grãos não transgênicos.
Quanto custaria em propaganda o domínio do mercado europeu para um produto qualquer? Por exemplo, que valor poderia ser gasto para assegurar que os europeus preferissem a carne ou o café brasileiros? Pois bem, abrimos mão desta preferência, que nos era oferecida de forma gratuita, permitindo que nossa soja, nosso milho e talvez em breve nosso arroz se confundam com as produções da Argentina, do Canadá, dos EUA. Quanto vale esta diferenciação de mercados, e quem ganhou com o fato de havermos jogado fora a preferência dos consumidores europeus? Mas este não é um problema de miopia gaúcha. O mesmo aconteceu no Paraná, onde o governo local defendeu os interesses da soberania nacional por mais tempo.
IHU On-Line – Quem pressionou e como foram as pressões exercidas na ocasião pela liberação dos grãos modificados?
Leonardo Melgarejo – Seria difícil mapear as fontes das pressões, mas é fácil identificar a concentração de benefícios. Quem ganhou com a concentração de mercados, com o esvaziamento do campo, com o aumento do uso de agrotóxicos, com a transformação de uma economia que crescia na indústria, na manufatura, e agora cresce na exportação de matérias-primas sem diferenciação?
Como as pressões foram exercidas? De muitas formas. Isso parece envolver desde estímulo a determinadas posturas em campanhas eleitorais, até a reprodução de discursos de marketing em pronunciamentos oficiais, passando pelo oferecimento de bolsas de estudo, de apoio a publicações, de parcerias na estruturação de laboratórios, na veiculação de propagandas em meios de comunicação. Existem estudos interessantes a respeito destes movimentos, que mostram uma formação de discurso e uma construção de fatos públicos, com intencionalidade econômica, revelando articulação de interesses entre empresas e governos, com sustentação acadêmica. O professor Guilherme Delgado descreve este movimento no que ele chama de Economia do Agronegócio; Walter Pengue, na Argentina, e Victor Pelaez, no Paraná, entre outros, estudaram o mesmo fenômeno considerando perspectivas adicionais.
IHU On-Line – Passados 10 anos da liberação do plantio de transgênicos, como vê a postura do atual governo gaúcho em relação aos transgênicos? Como avalia o Programa Troca-Troca de Sementes de Milho?
Leonardo Melgarejo – Infelizmente o PT gaúcho também se mostra marcado pela rejeição criada naquele período, em relação a este tema. Estou certo de que o governador é muito bem intencionado e age da melhor maneira possível, dadas sua perspectiva e informações, considerando os problemas e as responsabilidades de seu cargo. Em sua posição, as opiniões pessoais devem se submeter às exigências da função, e para governar todos os gaúchos é necessário entender que aqui todos sempre agimos motivados por nossas convicções. Com sua formação e cultura, seguramente o governador sabe o que está em jogo, sabe o quanto perdemos enveredando por esta trilha e sabe que estávamos certos ao tentar protelar as decisões de autorização de uso desta tecnologia. Mas a realidade agora é outra. O RS é um estado coberto de lavouras transgênicas, e o governo deve administrar o estado levando em conta que a sociedade, como o próprio governo, não possui clareza e está dividida a respeito desta questão. Infelizmente a campanha de desinformação foi e é vitoriosa.
Esta situação poderia ser alterada com o tempo, a partir de processos informativos, de debates envolvendo os defensores e os críticos da tecnologia. Cabe uma observação: com certeza, o governador e todos os gaúchos apoiamos o processo científico, confiamos que o conhecimento é a base do desenvolvimento e acreditamos que a biotecnologia tem muito a oferecer para a sociedade. Entretanto, quando olhamos com atenção para os transgênicos que estão aí, se torna claro que a ciência não oferece sustentação robusta para os produtos desta tecnologia. Infelizmente os estudos disponíveis são insuficientes, são preparados pelas empresas interessadas, são de curto prazo e frequentemente não apresentam confiabilidade estatística.
São muitos os exemplos a respeito disso. Considere o caso do milho Bt, presente no programa troca-troca. Supostamente esta planta foi modificada para evitar o uso de inseticidas. O milho carrega um gene de uma bactéria do solo, o Bacillus thuringiensis, daí o nome Bt. Os defensores da tecnologia dizem: “Ótimo, não traz riscos. É uma bactéria já usada na agricultura orgânica!”
E as empresas apresentam análises de segurança que são realizadas com a proteína Bt retirada das bactérias, como se a sequência de aminoácidos na proteína e na bactéria não apresentasse diferenças. Mas apresenta. Na bactéria a proteína é grande, e só se transforma em, digamos, “inseticida” quando fracionada no intestino das lagartas. Além disso, os inseticidas como o Dipel (1) só são aplicados sobre as lavouras quando a população de lagarta ultrapassa determinado limite. E no milho? No milho as proteínas inseticidas estão presentes em todas as células, desde a ponta das raízes até os grãos de pólen. Estão permanentemente ativas e mantêm sua propriedade tóxica durante meses no solo. Após a decomposição da palha, aquela toxina permanece ativa, em quantidades absurdamente superiores às que seriam aplicadas com os inseticidas Bt, mesmo diante do mais absoluto ataque de lagartas.
Mas o problema não se resume a isso. Os estudos que apoiam a liberação dos milhos Bt afirmam que aquelas proteínas desaparecem na digestão. Entretanto, estudo realizado no Canadá mostrou presença de fragmentos destas proteínas no cordão umbilical de bebês recém-nascidos. Isto não sugere que o processo digestivo e mesmo a barreira da placenta devem ser melhor estudados desde a perspectiva destas proteínas? Significaria que devemos realizar estudos com animais em gestação? Ou ao contrário, é bobagem pensar nisso e devemos ir levando para ver como é que fica?
O princípio da precaução recomenda que apoiemos e estimulemos a realização de novos estudos. Esta é a posição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea, esta é a posição do Conselho Federal de Nutricionistas, esta é a posição do Instituto de Defesa do Consumidor, esta é a posição da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – Agapan, esta é a posição de grande parte dos pesquisadores independentes e de boa parte das organizações sociais do planeta.
E não se trata de alarmismo, a própria CTNBio prevê esta necessidade de estudos e possui uma normativa que pede a realização de avaliações plurigeracionais, de estudos com animais em gestação, de estudos em todos os biomas brasileiros. Infelizmente, mesmo estas exigências, associadas a estudos previstos nas normas, não têm sido cumpridas. Devemos considerar normal que o governo do estado e a população gaúcha se mostrem divididos em relação a este assunto, pois nem a comunidade científica tem consenso quanto aos riscos associados ao consumo dos OGMs.
Mas quanto a um aspecto, estou seguro de que poderíamos chegar a um acordo. Todos sabemos que um veneno é sempre um veneno, e que um grão que foi planejado para tomar banhos de veneno não deve merecer muita confiança. É claro que o pão, a massa, a papinha de bebê elaborados com aquele grão também merecem dúvidas. E se alguns consideram que isso é bobagem, outros, pensando diferente, não deveriam poder optar na hora da compra? A rotulagem dos transgênicos ajudaria neste sentido.
Portanto, a inexistência prática da rotulagem se inclui entre os argumentos para impedir a distribuição de milho transgênico no programa troca-troca. Com isso, o governo gaúcho estimula a contaminação das lavouras não transgênicas e expande os riscos dos consumidores, associados a pontos não bem esclarecidos da tecnologia, ou a aspectos dos produtos que não encontram sustentação na ciência.
Além disso, estão sendo estimuladas a dependência dos agricultores e a subordinação de nossa economia a interesses pouco comprometidos com nosso desenvolvimento. Felizmente, apesar da desinformação alimentada por aqueles interesses, em que pese o discurso de necessidade das sementes transgênicas no troca-troca, a demanda de milho transgênico (no troca-troca) parece ter ficado restrita a uma faixa em torno de 10%. A maioria dos agricultores familiares gaúchos, assim com a maioria dos consumidores brasileiros, sabe o que quer. Quer alimentos e lavouras livres de transgênicos.
IHU On-Line – De que maneira avalia a discussão atual sobre a problemática dos transgênicos? O que mudou ao longo dos últimos 10 anos na condução da pauta? Há mais ou menos diálogo entre produtores, pesquisadores, consumidores e Estado?
Leonardo Melgarejo – Como comentei anteriormente, o professor Guilherme Delgado publicou recentemente um livro dedicado ao que ele chama Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio – mudanças cíclicas em meio século (Porto Alegre: Editora Ufrgs, 2012). Neste estudo ele mostra que uma articulação entre determinadas empresas, o Estado, redes de comunicação e setores da academia colaboram entre si para determinados objetivos que, a rigor, contrariam os interesses da soberania nacional. Estas tecnologias parecem bem ajustadas à análise do professor Guilherme Delgado, sugerindo que, ao longo dos últimos 10 anos, foi obtido alto grau de hegemonia, bloqueando a visibilidade de análises que a contrariam.
Se de um lado cresce o número de publicações internacionais em revistas científicas de caráter independente, alertando para os problemas dos transgênicos, no Brasil isto quase não ocorre. Aqui, na avaliação de riscos ambientais, destacam-se estudos em desenvolvimento pelo grupo do professor Rubens Nodari, na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Quanto aos agrotóxicos, destacam-se os trabalhos da professora Raquel Rigoto, na Universidade Federal do Ceará – UFC, e do professor Wanderley Pignati, na Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT. Qualquer deles está mais apropriado a falar sobre este tema e as dificuldades enfrentadas por estudiosos que pretendam avaliar este assunto desde uma perspectiva que contrarie as campanhas de marketing.
De outro lado, a sociedade parece estar despertando a respeito do tema, o que sugere uma visão otimista. A presidente Dilma lançou, atendendo demanda do movimento das mulheres camponesas, o Plano Nacional de Agroecologia. Organizações da Sociedade Civil realizaram, no Paraná, um Seminário Internacional sobre os 10 anos de transgênicos (2), coletando informações que merecem um tratamento específico.
Particularmente, acredito que estes 10 anos trouxeram muitas novidades. A mais relevante parece ser a entrada em cena de organizações preocupadas com o tema, a exemplo do Conselho Federal de Nutricionistas, do Consea e, mais recentemente, do Ministério Público Federal. Todos eles vêm agindo no sentido de criar espaços para construção e divulgação de informações. Estas iniciativas contribuem fortemente para retirar este assunto do anonimato, qualificando as discussões levadas a termo na sociedade.
Ao mesmo tempo, cresce a disponibilidade de estudos críticos, na bibliografia internacional, de maneira que está superado aquele momento onde foi criado um mito de que a disputa se dava entre os cientistas da bioengenharia e os apologistas do atraso. Atualmente a resistência a estas tecnologias cresce na mesma medida em que cresce o acesso às informações especializadas. E, aparentemente, está se consolidando uma espécie de despertar da consciência coletiva a respeito das manipulações envolvidas nesta questão. Como há alguns anos, quando a esperança vencia o medo, parece que estamos diante de outra vaga, onde, em face da Economia do Agronegócio, a indignação vencerá a apatia.
IHU On-Line – O que levou a semente transgênica a ser uma opção/aposta do governo de esquerda brasileiro? Como isso se consolidou?
Leonardo Melgarejo – Não me parece que se trate de uma opção do governo de esquerda. Creio que estamos diante do resultado de uma opção da coligação de forças que domina nossa economia e que age por intermédio dos governos. Em todos os países e épocas as forças econômicas se empenham em função de seus interesses. Países de economia periférica, como o nosso, tendem a ser influenciados pelas decisões das áreas centrais. Parece-me evidente que, embora esta aposta nos transgênicos se mostre contrária aos interesses do Brasil e tenha se consolidado durante o governo do PT, ela não existe fora de contexto. São muitas as áreas com características similares e existirão outras talvez mais relevantes desde perspectivas que não acompanho. Acredito que estas outras prioridades das equipes de governo devem ter assegurado ganhos importantes para o país ao longo dos últimos anos.
Acredito que nossos governos se empenharam em avançar nos campos em que conseguiram avançar e cederam nas áreas onde julgaram necessário ceder. Não estou seguro quanto às áreas estratégicas onde as conquistas devem ser comemoradas, mas com certeza percebo que avançamos no apoio à organização social e no estímulo ao consumo das classes menos favorecidas. Avançamos muito no campo da educação e na valorização dos agricultores familiares. Mas sem dúvida perdemos nas questões ambientais e no que diz respeito à segurança e soberania alimentar.
IHU On-Line – Nesta década de organismos geneticamente modificados legalizados no Brasil, quais foram os impactos dos transgênicos nas lavouras do Rio Grande do Sul? O que melhorou e o que piorou?
Leonardo Melgarejo – Houve ampliação nos tamanhos mínimos das unidades produtivas economicamente viáveis para estas culturas. Isto implica na concentração de terras, na exclusão de alternativas produtivas, no esvaziamento do campo. Como consequências, temos o enfraquecimento econômico dos pequenos municípios e a fragilização do tecido social no campo. As implicações são muitas: a redução na diversidade de alimentos e de ocupações produtivas economicamente viáveis inviabiliza a manutenção de serviços no campo.
O esvaziamento das escolas, do serviço de saúde, das redes de coleta de produtos para o mercado interno reforçam tendências à expansão de monoculturas de commodities integradas ao mercado internacional. Com elas, temos aplicações massivas e repetitivas de práticas e insumos de base agroindustrial. As pressões consequentes destes sistemas produtivos beneficiam algumas formas da microvida e prejudicam outras, alterando na base as redes tróficas milenarmente construídas em cada ambiente.
A degradação ambiental é inevitável, e acompanha a degradação socioeconômica. Nestes 10 anos ocorreu uma espécie de desenvolvimento às avessas no campo brasileiro, sob várias perspectivas. Ao invés de consolidarmos núcleos rurais de consumidores de bens industriais e serviços, atuantes no sentido de potencializar o aproveitamento dos recursos naturais, renováveis de forma articulada aos grandes centros urbanos, estamos fazendo o oposto.
Não se trata de um problema brasileiro, trata-se de um modelo generalizado que contraria o projeto humano à medida que está levando ao esgotamento dos recursos em ritmo mais acelerado do que a capacidade de reposição. Não pode ser interpretado como desenvolvimento algo que não tem qualquer possibilidade de futuro, ainda que traga alguns avanços setoriais.
Neste particular, as lavouras transgênicas mobilizaram recursos muito relevantes, que podem ser percebidos em elementos associados ao agronegócio. Máquinas caras, desenhos geométricos relacionados a linhas de irrigação, frotas de tratores e esquadrilhas de pulverização aérea. Caminhonetes de todos os tipos e tamanhos, feiras e exposições subsidiadas a créditos públicos, estradas e pontes para escoamento de grãos e o poder da bancada ruralista são alguns dos indicadores de sucesso deste modelo.
Na contramão, temos exemplos de avanços contra-hegemônicos, de alternativa que contraria a lógica do agronegócio porque privilegia a policultura, relações amigáveis com a natureza e o fortalecimento do tecido social no campo. Trata-se de processo de desenvolvimento rural, este sim de desenvolvimento, apoiado na agricultura familiar e coerente com suas características e especificidades.
Como exemplo neste sentido, teremos a realização, neste mês, em Porto Alegre, do VIII Congresso Brasileiro de Agroecologia (3), onde estão inscritos 1.400 trabalhos e relatos de experiência que contrariam a perspectiva do agronegócio e evidenciam o potencial da agroecologia. Não se trata de algo utópico; trabalho realizado por 400 especialistas de mais de 90 países aponta neste mesmo rumo.
IHU On-Line – Qual a viabilidade de se produzir em larga escala uma agricultura alternativa ao cultivo de sementes transgênicas? Como as sementes crioulas podem recuperar seu espaço no cenário nacional e internacional?
Leonardo Melgarejo – As experiências demonstram que a viabilidade existe. Aliás, se com apoio de governo, com créditos, com pesquisa de suporte, com redes de comercialização articuladas é possível expandir este tipo de agricultura inviável, porque não seria possível expandir uma agricultura que nos leve no sentido oposto?
Se os esforços e o engenho humano vêm permitindo construir formas de exploração do planeta que contrariam a natureza, que se chocam contra princípios básicos da vida, porque estes mesmos esforços não permitiriam obter resultados positivos, que não contrariem a natureza e as necessidades da humanidade? Na natureza não existem monoculturas, não existem espécies campeãs do tipo que tentamos construir em nossas lavouras de soja, de cana, de eucalipto. Por que não existem? Porque não é inteligente utilizar os mesmos recursos de uma mesma forma, por longos períodos de tempo, em um mesmo lugar.
É inteligente o oposto: estabelecer grupos de utilização que aproveitem de forma distinta os recursos de determinada região, onde os excedentes, ou os dejetos, ou os recursos desprezados por uns, sejam de utilidade para outros. As florestas são o oposto das monoculturas porque seguem princípios mais úteis e mais inteligentes sob a perspectiva do aproveitamento dos recursos.
A agricultura familiar é o oposto do latifúndio e, pelos mesmos motivos, deve ser estimulada, em substituição às formas de exploração que dependem dos monocultivos predatórios à natureza. A agroecologia permite discutir e recuperar a saúde do planeta, e o VIII Congresso Brasileiro discutirá isso em Porto Alegre. Ali serão apresentados vários exemplos concretos, como o caso do arroz orgânico no RS, do cacau em agroflorestas da Bahia, da exploração de leite a pasto no Paraná, dos bancos de sementes crioulas em vários locais do país, entre tantos outros. No site do CBA é possível obter detalhes a respeito disso.
De forma objetiva, as sementes crioulas podem recuperar seu espaço e o farão, assim que a sociedade tiver acesso às informações necessárias para decidir de forma consciente sobre o que prefere, como alimento, como modelo de desenvolvimento, como futuro e como país. Confio que a aposta do governo federal na educação nos levará neste rumo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Leonardo Melgarejo – O Ministério Público Federal – MPF, através de sua Quarta Câmara, está promovendo, no início de dezembro, uma grande audiência pública sobre uma nova onda de sementes transgênicas, de milho e de soja, tolerantes ao herbicida 2,4-D (4). Trata-se de algo muito relevante. Este agrotóxico é tão mais perigoso que os anteriores, podendo ser classificado como extremamente tóxico (caso do 2,4-D) em comparação com outro que pode ser considerado de baixa toxicidade (caso do glifosato). Se a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, que se recusou a realizar audiência pública para discutir este tema com a sociedade, assim o decidir e aprovar o cultivo destes transgênicos, no próximo ano, talvez com o povo distraído olhando os jogos da Copa, teremos um produto extremamente tóxico sendo jogado de avião nas áreas produtoras de milho e soja. O MPF merece nosso aplauso por esta iniciativa e também por sua disposição de avaliar a estrutura e as implicações éticas e socioeconômicas de decisões tomadas pela CTNBio.
Ainda em dezembro, o Consea realizará uma segunda mesa de debate sobre transgênicos, onde estas tecnologias serão avaliadas e discutidas de forma ampla, em continuidade ao esforço que aquele conselho vem realizando para dar visibilidade ao que vem ocorrendo neste campo. Iniciativa que merece nosso aplauso, e nossa atenção.
E esta seria a mensagem final: como humanidade, só sobrevivemos porque aprendemos a agir em cooperação, a atuar em rede, valorizando ações de reciprocidade positiva, compartilhando conhecimentos e esforços, agindo como floresta e não como lavoura, negando a hipótese das entidades campeãs. Em algum momento desaprendemos isso e passamos a tentar submeter não apenas a natureza, envolvendo todos os outros seres, mas também o futuro de todos que ainda não existem, a nossos objetivos de curto prazo. É claro que isso não poderia dar certo. Precisamos recuperar o espírito das construções coletivas, buscar valores éticos e morais, operar com horizontes de longo prazo. As iniciativas do Ministério Público Federal e do Consea, o VIII Congresso Brasileiro de Agroecologia, apontam neste rumo e até por isso merecem todo nosso apoio.
Notas:
1.- Dipel: trata-se de um inseticida biológico de ocorrência natural que busca controlar lagartas desfolhadoras presentes em florestas. (Nota da IHU On-Line)
2.- 10 anos dos transgênicos: a Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos realizou um seminário para discutir os 10 anos da legalização da produção de transgênicos no Brasil. Após o evento, foi escrita uma carta sobre o seminário que pode ser lida no link http://bit.ly/HXQc48. (Nota da IHU On-Line)
3.- VIII Congresso Brasileiro de Agroecologia será realizado entre os dias 23 e 28 de novembro. Mais informações em www.cbagroecologia.org.br. (Nota da IHU On-Line)
4.- 2,4-D: trata-se de um sal que foi o primeiro herbicida seletivo descoberto para o controle de plantas daninhas latifoliadas anuais. (Nota da IHU On-Line)
Observação: A fonte das imagens que ilustram a reportagem são, respectivamente: http://migre.me/gDAds e www.ecoagencia.com.br
(EcoDebate, 18/11/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
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