Marajó – gotas sobre a História de Cachoeira do Arari, crônica de Rogério Almeida
Tita é encorpada. Tem 110 quilos adquiridos em pouco mais de 53 anos. A mulher negra de cabelos curtos pintados em tom caju não tem letra. Aprendeu a ler, escrever e fazer conta por necessidade.
Desde cedo trabalha. Aos 15 já lavava roupa de “branco”. O peso de Tita é distribuído em 1.m55cm. Sente dores nos joelhos, pés e nas costas. No corpo inteiro.
Ficar por muito tempo sentada ou em pé causa desconforto. Cerveja e samba é o seu ponto fraco. Ela conta que é comum ficar porre em casa em fins de semana. Um box na praça central de Cachoeira do Arari é o ganha pão da autônoma. Cachoeira integra o arquipélago do Marajó. A região é a mais empobrecida do estado do Pará. Possui o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. Quatro médicas cubanas aguardam o registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) para poder iniciar as atividades de medicina preventiva. Enquanto isso não ocorre, elas dividem o tempo entre passeios e estudos. Duas das quatro médicas não eram aguardadas pela prefeitura. Elas aportaram em Cachoeira no dia 01 de novembro.
Sobre o meio ambiente, um técnico da prefeitura informa que a vegetação é quase intacta nas áreas de várzea, o que poderia servir de apelo para uma política ambiental. No fim de outubro Cachoeira do Arari passou a integrar a política estadual de municípios verdes.
Tita comercializa alimentação, biscoitos, velas e bebidas. O “leite de onça” é produzido com álcool e leite condensado. Uma auxiliar é o quadro funcional da empresa. A assistente tem namorada ou “marida”, como elas costumam galhofar. Iemanjá é a cabeça de Tita. Uma imagem fica no pé da TV. Atrás a foto de um sobrinho. Ela acredita que a entidade protege a ela e o parente. Após muito tratamento conseguiu engravidar. A criança nasceu com quilo e meio. Hoje é adulta.
O Aracu frito é o petisco da casa. O peixe tem muitas espinhas. Estima-se que 42% da população de 22 mil pessoas de Cachoeira do Arari mantenham laços com a pesca. 9 mil pescadores estão cadastrados no ministério. Vicente, o “Beca” ex coordenador da Colônia de Pescadores Z40 é vice prefeito da cidade.
Ele é o terceiro ex presidente de colônia a ser vice prefeito. Claudionor, hoje secretário de obras já ocupou o cargo. Ele na década de 1990 foi presidente do Grupo de Trabalho da Amazônia (GTA). Uma espécie de central que aglutinava inúmeras representações do campo popular de todos os estados da Amazônia Legal. O GTA contava com financiamento internacional pós Eco-92. Além da Z40, existem a colônia Z-26 e um sindicato de pescadores para representar a categoria.
Dalcidio Jurandir é o filho mais ilustre de Cachoeira do Arari. O município vive sob a ditadura das águas. As águas da baía nesses dias são bem agitadas. O navio de dois andares Comandante Marcos sacode como se fosse afundar. Véspera do dia de finados. Os mais descontraídos fazem festa, enquanto outros vomitam, e alguns conseguiam até dormir. O medo viaja junto por três horas. Algumas pessoas usam colete. Uma jovem não cessa a conversa ao celular, apesar dos solavancos da embarcação. A feição traduz a miscigenação: os olhos são puxados, os lábios carnudos e os cabelos lisos.
O Porto de Camará é uma espécie de entroncamento. De lá é possível seguir para Salvaterra ou Soure e Cachoeira, separada do porto por duas horas de viagem em micro ônibus numa precária estrada.
O padre italiano Giovanni Gallo deu visibilidade internacional para o município a partir da edificação do Museu do Marajó, antes sediado na vizinha cidade de Santa Cruz do Arari. O mesmo padece de problemas constantes para a sua manutenção. Esses dias em letras desenhadas um aviso em papel A4 apelava para a contribuição de visitantes para o pagamento da conta de energia elétrica. Itaci, uma espécie de “faz tudo” conta que o pico de visitas é em janeiro, por conta do festejo de São Benedito. Naquele dia do fim de outubro de 2013 éramos os primeiros visitantes.
Um Museu é uma festa de criatividade. Compensados, fotos, fios, pegadinhas e formas de interação provocam o visitante numa trilha sobre a história milenar da região, tributária de sociedades complexas. A neta do ex presidente do EUA, Anna Roosevelt, e também arqueóloga assina artigos sobre a região e o Baixo Amazonas.
O espólio de Gallo encontra-se numa imbricada rede de disputa, que envolve população local, pesquisadores e empresários radicados em Belém. Por conta de uma prestação de contas com limites junto ao Ministério da Cultura, o Museu tem problemas para a captação de recursos.
Pecuária bubalina, pesca, cultura da mandioca, extrativismo do açaí e produção de abacaxi conformam a base da economia local. Nos dias atuais a monocultura de arroz integra a paisagem dos campos naturais. Toma cerca de 6 mil hectares. Com endosso federal, estadual e do setor rural do estado, a família Quartieiro se apossou de porções de terras. Promove queimadas e no arrastão de corrente faz sucumbir bacuriçais em algumas ilhas, Santa Cruz é uma delas. O agrotóxico é lançado a partir de avião. A família ocupava a área indígena Raposa Serra do Sol em Roraima.
As terras do Marajó foram de sesmarias, e ainda hoje há “coronel” que manda na freguesia: Monteiro e Liberato de castro são dois deles. O último tem rusgas com remanescentes de quilombolas numa localidade conhecida como Tororomba, no rio Gurupá. O extrativismo é o centro de gravidade do conflito. O mais aguerrido foi morto este ano em Belém, às vésperas de um encontro estadual para debater as demandas da categoria. Ele vinha sendo ameaçado de morte. Mas, a morte foi noticiada como questão passional. Os parceiros não acreditam na tese. Além de controlar vastas extensões de terra, Castro elegeu a filha como prefeita da cidade vizinha, Ponta de Pedras.
Fim de tarde de sexta feira. A praça é agitada. Motos circulam de um lado outro para outro. Ninguém usa capacete. Além de bares e lanchonetes, a praça abriga a sede da prefeitura. Dali é possível avistar os trapiches. As cercas de proteção possuem motivos marajoaras. Uma placa prestes a cair do Museu do Marajó dá boas vindas em vários idiomas.
Os “pés inchados” da cidade compartilham “buchudinhas”. Trocam insultos. Riem. Choram. Empurram uns aos outros. As TV´s do local exibem o jogo do Paysandu contra o Joinville. O “Papão da Curuzu” está prestes a cair para a terceira divisão do campeonato nacional. Perdeu de 4X2.
Tita tem namorado. Ele tem 16 anos a mais que ela, é o dono do box que ela administra. A jovem senhora fala sacanagem com desenvoltura, enquanto outra gordinha trata das unhas dos pés e mãos. Uma moto taxista de estatura mediana e corpo franzino aguarda a vez na manicure. O cabelo pintado de amarelo tem arranjos em cachos. As sobrancelhas desenhadas moldam olhos sapecas.
“Tigrão” é o apelido do parceiro de Tita. “Outro dia ele chegou de Belém. Eu doida para colocar o bloco na rua e ele roncando. Deixei ele dormir um cadinho, e na madruga o coro comeu”, conta com alegria juvenil.
A comerciante parece gostar de dedo de prosa. Encaixa uma história na outra. O causo agora é sobre o desenho nas “xotas” das madames. A pilhéria é de responsabilidade de uma enteada que mora na capital. Trabalha em casa de gente. Entre risos a negra narra que as madames fazem bigodinhos na periquita. Aqui a gente mesmo passa o aparelho, Tita ri que se engasga.
Rogério Almeida, jornalista, é professor da Universidade da Amazônia (UNAMA), Belém-PA e publica o blog FURO
Crônica enviada pelo Autor ao EcoDebate, 05/11/2013
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