Hidrelétrica de Teles Pires. ‘A floresta é destruída sem cerimônia e deixa a terra nua, vulnerável e sangrando’. Entrevista com Telma Monteiro
“Os impactos negativos e mal dimensionados nos estudos são recorrentes em todos os projetos hidrelétricos que estão sendo licenciados”, afirma a especialista em análise de processos de licenciamento ambiental.
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A determinação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região de paralisar as obras da usina hidrelétrica de Teles Pires está relacionada à falta do Estudo do Componente Indígena – ECI, apesar da Licença Prévia para a construção da hidrelétrica ter sido concedida pelo Ibama em 2010. De acordo com Telma Monteiro, “o Ibama emitiu a Licença Prévia e a Licença de Instalação sem o ECI, que deveria ser parte integrante do EIA/RIMA”.
Telma explica que, em 2008, ano em que se iniciou o processo de licenciamento da hidrelétrica, “foi solicitado que se verificasse e apontasse a existência de populações indígenas na região do empreendimento. No entanto, o estudo e a caracterização das terras indígenas, de grupos, comunidades étnicas remanescentes e aldeias não foram, até hoje, devidamente analisados”. E acrescenta: “Há uma lacuna no Estudo do Componente Indígena – ECI que deve ser feito pelo empreendedor e apresentado à Funai”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Telma esclarece quais são os principais equívocos em torno da construção da hidrelétrica e chama a atenção para o trecho do rio Teles Pires onde será construído o reservatório da usina. Na avaliação dela, o local é “mal estudado”, uma vez que a “área é constituída por ambientes naturais preservados, em especial nas encostas que desaguam no rio. O canteiro de obras, a barragem e as demais estruturas já começaram a induzir ao desmatamento e à ocupação irregular”.
Telma Monteiro é especialista em análise de processos de licenciamento ambiental e coordenadora de Energia e Infraestrutura Amazônia da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Por quais razões o Tribunal Regional Federal da 1ª Região determinou a paralisação da usina de Teles Pires?
Telma Monteiro – A determinação se deu em função do pedido do Ministério Público Federal em conjunto com o Ministério Público do estado de Mato Grosso para suspender o licenciamento ambiental e as obras da Usina Hidrelétrica Teles Pires até que seja realizado o Estudo do Componente Indígena – ECI.
Para o desembargador Souza Prudente, o Ibama emitiu a Licença Prévia e a Licença de Instalação sem o ECI, que deveria ser parte integrante do EIA/RIMA. Há, também, outra ação em tramitação, anterior a essa, mostrando que não houve a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas que sofrerão os impactos do empreendimento, violando assim o artigo 231 da Constituição Federal e o artigo 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT.
Os ministérios públicos pediram a paralização sob o argumento de que o ECI é o documento que considera os significativos impactos específicos nas comunidades indígenas e as consequências da destruição das corredeiras Sete Quedas, no rio Teles Pires, consideradas patrimônio sagrado.
Mas, no dia 26 de setembro passado, a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, derrubou a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) e mandou que as obras fossem retomadas. Como tem acontecido ao recorrer das decisões que atendem ao pedido do MP, a Advocacia Geral da União – AGU alegou que parar a UHE Teles Pires acarretaria “grave lesão à ordem econômica” e “desequilíbrio no mercado de distribuição de energia elétrica”. Esse argumento também é recorrente.
IHU On-Line – Como avalia o estudo de impacto ambiental (EIA/RIMA) da Usina de Teles Pires? Quais as falhas do estudo?
Telma Monteiro – A falha nos estudos indígenas é um exemplo grave. Em 2008, início do processo de licenciamento da UHE Teles Pires, foi solicitado que se verificasse e apontasse a existência de populações indígenas na região do empreendimento. No entanto, o estudo e a caracterização das terras indígenas, de grupos, comunidades étnicas remanescentes e aldeias não foram, até hoje, devidamente analisados. Há uma lacuna no Estudo do Componente Indígena – ECI que deve ser feito pelo empreendedor e apresentado à Funai.
Outro problema mal estudado é o trecho do rio Teles Pires onde pretendem fazer o reservatório. A área é constituída por ambientes naturais preservados, em especial nas encostas que desaguam no rio. O canteiro de obras, a barragem e as demais estruturas já começaram a induzir ao desmatamento e à ocupação irregular.
Outra questão que tem sido insistentemente apontada nas ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público, que o judiciário tem ignorado, é a necessidade de um estudo dos impactos sinérgicos e cumulativos decorrentes da construção de uma sequência de barragens no rio Teles Pires. Os efeitos desse conjunto acabam mascarados com os procedimentos individualizados de licenciamento ambiental.
O próprio Ibama, responsável pelo processo de licenciamento e concessão das licenças Prévia e de Instalação da UHE Teles Pires, já havia apontado a relação com o projeto da UHE São Manoel, a jusante (rio abaixo). A região não é antropizada e apresenta uma paisagem com extensas áreas de florestas e espécies vegetais que podem sofrer com a inundação permanente provocada pelos empreendimentos.
Enfim, os impactos negativos e mal dimensionados nos estudos, na verdade, são recorrentes em todos os projetos hidrelétricos que estão sendo licenciados. Problemas sérios continuam sendo tratados com displicência, como a questão indígena, as alterações na qualidade da água, nos hábitats aquáticos e terrestres, nas populações de fauna terrestre, na pesca artesanal, no turismo, apenas para citar alguns. Comentar e apontar as falhas nos estudos ambientais de projetos hidrelétricos em andamento é um trabalho hercúleo, que necessitaria o espaço de alguns volumes escritos.
IHU On-Line – Como está o processo de construção de Teles Pires?
Telma Monteiro – As obras continuam e os impactos também. Apenas para relembrar o processo, a Licença Prévia foi concedida pelo Ibama em dezembro de 2010. Em julho de 2011 o Contrato de Concessão foi assinado, e em 19 agosto o Ibama concedeu a Licença de Instalação que permitiu que as obras iniciassem imediatamente, no dia 22 de agosto de 2011.
Basta acessar as imagens das obras da UHE Teles Pires na internet para ter uma ideia da dimensão do estrago. A floresta é destruída sem cerimônia e deixa exposta a terra nua e vulnerável à mercê das máquinas que a farão sangrar. O rio Teles Pires, maior vítima até agora, e seu mundo submerso começam a dar sinais de sofrimento. Então, o que há para dizer mais? As palavras já não bastam para descrever tanta insensatez.
IHU On-Line – De que maneira Teles Pires impacta as comunidades indígenas Munduruku e Kayabi?
Telma Monteiro – Já bem antes da concessão das licenças, os impactos começaram para os indígenas Kayabi e Munduruku. A presença de pesquisadores, de trabalhadores que perfuram o solo, abrem picadas na mata já é o prenúncio da tempestade. A paz acabou para eles, pois as alterações das águas e da pesca com o início das obras, as explosões de rochas, a movimentação de terra e a presença de estranhos no entorno de suas aldeias conduzem ao estresse social e cultural.
Imagine, por exemplo, o grau de conflito que leva a presença de trabalhadores da construção civil contratados para construir um posto de saúde numa aldeia isolada. Não é preciso ser antropólogo para apreender as dimensões dessa intromissão na vida familiar, na cultura e no hábitat dos povos indígenas.
Há ainda outros problemas graves com o assédio a que eles têm se submetido no sentido de negociar e aceitar as chamadas compensações. Nem a consulta prévia a que os povos indígenas têm direito, conforme a Convenção 169 da OIT da qual o Brasil é signatário, está sendo respeitada. Os seus direitos não estão sendo respeitados. Não bastasse tudo isso, a área das corredeiras Sete Quedas, local sagrado dos indígenas, será destruída. Esse impacto foi objeto de ação ajuizada pelo MPF.
IHU On-Line – Como você avalia o debate acerca da construção de hidrelétricas de reservatório e de fio d’água? Num primeiro momento, o governo defendeu a construção de hidrelétricas a fio d’água, mas depois voltou atrás, dizendo que as de reservatório garantem a sustentabilidade energética. O que está por trás de cada projeto?
Telma Monteiro – Desde que os primeiros projetos hidrelétricos da era Lula foram negociados na Amazônia, o discurso da hidrelétrica a fio d’água tem sido uma espécie de canto da sereia. O reservatório, na teoria, ocuparia apenas o leito do rio no seu nível mais alto e não haveria impactos ambientais. No entanto, os idealizadores desse conceito omitem o fato de que as cheias na natureza são sazonais e o rio de planície é como um grande pulmão que se enche de ar e depois o expele. Essa é a dinâmica que mantém a vida dos igarapés, das ilhas, das margens.
Áreas que só estariam inundadas em uma determinada época do ano ficariam permanentemente inundadas com o reservatório a fio d’água, criando uma alteração no ecossistema que ainda não foi estudado. Outros problemas já estão ocorrendo no rio Madeira, com a construção das hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, mesmo com os reservatórios a fio d’água. O impacto das águas dos vertedouros da UHE Santo Antônio que estão destruindo a margem direita do rio Madeira ainda está sem solução. Isso não foi sequer previsto nos estudos, pois é inédito.
O que, então, nos reservará de surpresas a construção desse conjunto de usinas no rio Teles Pires?
IHU On-Line – Ao comentar o caso da licença ambiental de Pai Querê, indeferida pelo Ibama, você assinala que os projetos hidrelétricos têm os mesmos impactos, mas recebem tratamento diferenciado pelo Ibama. Por que isso acontece?
Telma Monteiro – Já não é a primeira vez que o Ibama usa de dois pesos e duas medidas em licenciamento de hidrelétricas. Além de Pai Querê, conheço outro caso, a UHE Ipueiras, no estado do Tocantins, em que o Ibama decidiu pela inviabilidade do projeto, pois ele produziria impactos irreversíveis à biodiversidade do Bioma Cerrado.
O parecer técnico de Ipueiras data de setembro de 2005, e a conclusão descreve os impactos em 84 mil hectares de vegetação nativa em ótimo e bom estado de conservação. A ictiofauna do rio Tocantins seria irreversivelmente comprometida. E como fica a biodiversidade dos rios Teles Pires, Tapajós, Xingu, Madeira?
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Telma Monteiro – Sim. Os responsáveis pelos empreendimentos hidrelétricos têm demonstrado absoluto descaso para com os impactos sobre os povos indígenas. Como já afirmei muitas vezes, os impactos começam com a notícia de que haverá estudos e pesquisadores nas comunidades.
Isso vira uma bola de neve e o ECI só aparece depois das audiências públicas, quando na verdade ele deveria ser parte integrante do EIA/RIMA. Esse descaso resulta em acirramento de conflitos, aumento dos custos do projeto e atropelo do licenciamento ambiental.
(Ecodebate, 14/10/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
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Mesmo que só haja grupos indígenas a dezenas de Km, dirão que serão afetados para tentar embargar a obra. Infelizmente, Telma, esse assunto virou uma espécie de cavalo de batalha de uma oposição que não governaria o país sem energia hidroelétrica. Tentar impedir de fazer para depois dizer que não fizeram é um método desleal de luta política, assim como ocupar locais à força, queimar canteiros de obras, sublevar operários e índios, levar índios de uma região para outra para fazer manifestações … você sabe bem do que falo, não sabe? E sabe quem move isso.
Bem, vale lembrar que as grandes empreiteiras são grandes financiadoras de campanhas políticas … isso por si só já explica muita coisa.
Muda o cenário e o público, mas a peça e os atores são os mesmos!
Sou de Xaxim-SC, e estou fazendo minha dissertação em Ciências Ambientais sobre os impactos socioambientais dos atingidos diretamente após estes empreendimentos. É intrigante ver como há expertise dos atores envolvidos. O que fica são lembranças e sentimentos de perdas locais.