Reforma agrária e garantia das terras dos povos tradicionais são fundamentais para a agroecologia
Entrevista
Para Denis Monteiro, secretário executivo da Articulação Nacional de Agroecologia – ANA, não há como avançar na política de agroecologia com o quadro de concentração fundiária do Brasil.
Por Ednubia Ghisi, no sítio da Terra de Direitos
Foto: Joka Madruga
O primeiro Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – Planapo em breve estará em vigor no Brasil, implementando a Política Nacional de Agroecologia, definida pelo Decreto 7.794, de 2012. Para além do período de discussões entre movimentos sociais, organizações e representantes do governo federal, que durou mais de um ano, o Plano é resultado da luta histórica de movimentos contra o modelo do agronegócio, os transgênicos e agrotóxicos.
Em entrevista concedida durante a 12ª Jornada de Agroecologia do Paraná, Denis Monteiro, secretário executivo da Articulação Nacional de Agroecologia – ANA, aponta avanços e limites do Plano.
A garantia do acesso à terra e ao garantia dos direitos territoriais está entre os pontos fracos do Planapo: “As ações do Plano também são muito tímidas no que diz respeito à garantia dos direitos territoriais. Essa é uma questão que a gente vai reiteradamente colocar em todos os momentos de mobilização e de articulação com o governo federal”.
Confira a entrevista:
A questão do financiamento tem sido uma das grandes dificuldades para a produção agroecológica e familiar. O que o Plano prevê para mudar essa lógica de financiamento volta ao agronegócio?
Esse é um dos principais desafios do plano, porque ele prevê o financiamento para a transição agroecológica, mas a gente sabe que toda a lógica de funcionamento dos financiamentos é para atrelar a agricultura familiar aos complexos agroindustriais. Então a proposta de financiamento foi construída assim e vem permanecendo dessa forma, induz que o agricultor compre a semente hibrida ou transgênica, o adubo químico e o agrotóxico. É preciso reverter essa lógica para que o financiamento seja capaz de estruturar as unidades produtivas dos agricultores, capaz de financiar o uso da semente crioula, os insumos para a agricultura orgânica e não os adubos químicos, de pensar um sistema diversificado e não uma só cultura para comercialização. É preciso que haja mudanças importantes na política de financiamento para que possa incorporar o enfoque agroecológico. Nós apresentamos para o governo um conjunto de propostas nesse sentido, como a não exigência do cadastro das variedades crioulas para que elas sejam financiadas e seguradas, para que possa haver um financiamento das variedades crioulas. Propomos também um bônus de adimplência, para que os agricultores que estão no processo de transição agroecológica, diversificando sua produção, usando tecnologias agroecológicas, possam ter um bônus de adimplência quando foram pagar esse crédito. Ou seja, o estado financiar e incentivar a produção agroecológica.
Quais as dificuldades para implementar essas propostas?
Temos encontrado pouco espaço no Ministério do Desenvolvimento Agrário para que essa discussão seja feita, ou seja, para que o financiamento seja adequado ao enfoque agroecológico. E gente espera que com a instituição do Plano tenhamos mais espaço. Fora isso tem um conjunto de ações para apoio diretamente à produção. Tem a perspectiva de da criação de um programa com a participação do BNDS, da Fundação Banco do Brasil e outros ministérios, de fortalecimentos das redes locais de agroecologia. Temos conversado com o governo de que esse programa deve apoiar essas organizações, porque são elas que atuam diretamente promovendo a agroecologia no nível local. E também tem esses recursos do BNDS e outros que podem apoiar esse processo de experimentação dos agricultores, implantação de tecnologias agroecológicas nas unidades produtivas, apoio também à agroindústria e à comercialização. Isso tudo está contemplado no Plano e, se for efetivo, a gente vai ter um avanço significativo no aumento da escala da agroecologia. Ou seja, famílias que já estão no processo de transição agroecológica, diversificando mais sua produção, e outras famílias que hoje estão vinculadas ao pacote convencional ou no sistema tradicional de baixo uso de insumos, poderão trabalhar a transição agroecológica e vamos ter daqui a três anos um avanço significativo.
Também existe a proposta de incentivo à produção orgânica voltadas especialmente aos jovens do campo.
Tem algumas ações voltadas para formação em agroecologia que dão apoio para cursos de nível médio, escola família agrícola e outras iniciativas de formação no campo, para incorporar a agroecologia nesse tipo de formação. Tem recursos que vão ser destinados para isso e a gente acha que pode ser um ponto que se fortaleça. E outro eixo de ação é apoio diretamente aos grupos de jovens que trabalham diretamente com a produção agroecológica. Ou seja, é um incentivo para que grupos de jovens das comunidades aumentem e diversifiquem a sua produção e possam acessar mercados. É um contingente pequeno, nesse caso dos grupos produtivos. O Plano prevê apoiar diretamente 15 mil jovens, então sabemos que é um contingente muito pequeno frente à demanda que existe e ao desafio da realidade da juventude no meio rural, mas se essas ações foram efetivadas, já teremos um avanço. E tem tido uma participação muito importante na construção dessas ações os movimentos de juventude, a Pastoral da Juventude Rural e outros movimentos que têm pressionado e apresentado propostas nesse sentido. A Secretaria Nacional da Juventude, vinculada a Secretaria Geral da Presidência, também tem sido bastante sensível e ativa na produção dessas propostas.
Como você avalia a posição do governo federal quando se afirma a necessidade da reforma agrária para o avanço da agroecologia?
O que a gente disse, desde antes de entrarmos na discussão da política do Plano, é que a questão agrária e a garantia dos direitos territoriais das populações tradicionais, das terras quilombolas, indígenas, dos geraizeiros, faxinalenses, das quebradeiras de coco babaçu são fundamentais para a agroecologia. Não dá pra imaginar de avançar numa política de agroecologia com essa estrutura fundiária altamente concentrada que a gente tem no Brasil hoje, ou com as populações tradicionais muito inseguras com relação ao acesso à terra, sempre ameaçadas de perder suas terras. A questão do cumprimento da função social da terra, da garantia dos direitos territoriais das populações tradicionais, é absolutamente fundamental. Disso nós não vamos abrir mão e vamos cobrar sempre que essa questão seja recolocada na discussão. O que a gente percebeu, inclusive na própria construção da política, é que esse pacto de economia política do agronegócio interdita a discussão da questão agrária e da reforma agrária. Porque ao agronegócio interessa avançar sob os territórios das populações tradicionais. Ao agronegócio não interessa a realização da reforma agrária, porque significa perder território para uma outra lógica de produção, uma lógica camponesa. Esse debate foi um pouco interditado. A própria política que nós propusemos, de que houvesse claramente uma diretriz colocando essa questão da função social da terra e dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais, não foi contemplada. As ações do Plano também são muito tímidas no que diz respeito à garantia dos direitos territoriais. Essa é uma questão que a gente vai reiteradamente colocar em todos os momentos de mobilização e de articulação com o governo federal, da importância da questão agrária como um todo.
Sobre a proposta de criação da Agência Nacional de Assistência Técnica de Extensão Rural – ANATER, como impacta a agricultura familiar e camponesa?
Hoje nós vivemos o risco da implantação de uma Agência Nacional de Assistência Técnica de Extensão Rural, a ANATER, que pode significar um retrocesso, da forma como está sendo conduzida pelo governo, e como o debate está sendo feito no congresso. Nós hoje temos uma lei de ATER, que garante exclusividade da agricultura familiar para ATER pública. ATER pública é para agricultura familiar, mas essa exclusividade não está sendo considerada na discussão da Agência Nacional, assim como a agroecologia não está sendo orientadora. A lógica que orienta a criação dessa Agência é a da difusão de tecnologias, e a gente sabe que as tecnologias que estão na Embrapa, que também estão sendo discutidas na ANATER, são para difundir um pacote tecnológico da revolução verde junto à agricultura familiar. Não é isso que a gente quer. A ANATER também prevê um papel protagonista e consultivo para setores da agricultura patronal, como, por exemplo, a Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária, que não tem nada o que dizer com relação à política de ATER para agricultura familiar. Quem tem a dizer sobre ATER são as organizações dos agricultores familiares, organizações camponesas, as organizações que prestam assessoria, cooperativas, e os próprios órgãos que hoje estão lidando com ATER, como o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA. Esse é o ambiente que tem discutido ATER para agricultura familiar. São essas organizações que precisam ter o protagonismo dessa discussão. Então nós queremos que o debate sobre a criação da agência seja reaberto. Até agora não foi um debate em que as posições do campo democrático popular puderem ser colocadas suficientemente. A gente quer a abertura desse debate porque, se uma ATER contrariar os princípios da própria Política Nacional de Agroecologia, vai ser uma contradição bastante arriscada para que a política seja efetiva.
Como está a relação entre estado, movimentos sociais e organizações para o avanço no modelo agroecológico de agricultura?
Nós colocamos desde o início para o governo, nessa construção do Plano, que não é possível avançar na agroecologia sem o protagonismo das organizações da sociedade civil. São essas organizações, de assessoria, organizações dos agricultores, associações, que vêm historicamente promovendo a agroecologia, quando o estado ainda nem falava disso, quando as políticas públicas vinham na contramão da agroecologia. Para avançar numa política de agroecologia, é preciso o garantir protagonismo dessas organizações e viabilizar que tenham liberdade para executar políticas públicas, para agir politicamente. A gente não vê sinalização do governo brasileiro de que vai rever a forma como hoje faz a relação entre estado e sociedade. Há um processo de criminalização da sociedade civil, inclusive em relação ao acesso a recursos. Foi uma promessa da presidenta Dilma rever o marco legal que regula a relação sociedade e estado no que diz respeito a recursos públicos, isso até agora não foi feito, não há sinalização do governo de que vai se avançar nesse campo. E se a gente não tiver avanço nesse campo, não vamos avançar na agroecologia.
EcoDebate, 27/08/2013
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