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Íntimo e pessoal, artigo de Montserrat Martins

 

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[EcoDebate] Gênios não são os que alcançam um alvo que ninguém alcançou, mas que veem um alvo que ninguém viu, dizia Schopenhauer. Pois essa “genialidade” talvez não dependa de inteligências privilegiadas e sim de mais sensibilidade e empatia, da capacidade de ouvir genuinamente. O que pode parecer fácil mas não é, absolutamente não é. Nossa tendência é distorcermos o que o outro nos diz, antes de compreendermos seus reais sentimentos e pensamentos. De enquadrar o que ouvimos no já sabido, reduzindo fenômenos novos a velhos conhecidos, por nossas necessidades instintivas de segurança, de saber com o que estamos lidando.

Rotulamos para evitar o desconforto do estranhamento, pois contra o conhecido já temos nossas defesas armadas. Ser empático, então, é antes de tudo ser capaz de desarmar-se, despir-se de defesas, preconceitos, ideias preconcebidas, de todos os rótulos e esquemas prévios de interpretação dos fatos. Isso é possível? Não por acaso, a empatia é a mais complexa das capacidades humanas. Não é uma mera postura de abertura intelectual, é também um estado emocional de sensibilidade à outra pessoa.

“O que há de mais íntimo e pessoal, é o que há de mais universal”, relatou um psicólogo nos anos 80, sobre as tendências de mudanças sociais e de comportamento. Em plena época do neoliberalismo triunfante, a previsão desafiava a tese do “fim da História”, de que era assim mesmo e acabou. Ele havia detectado, no íntimo das pessoas com quem conversava, desejos de mudança de valores, de um mundo diferente. Ao ouvir novos anseios, podemos enquadrá-los em teorias, antes de ouvir o que as pessoas tem a dizer. Porque se ouvirmos, temos de conviver com a insegurança de não saber como compreender, que resposta dar, como lidar com suas demandas. Foi o que aconteceu em junho com a intelectualidade pátria, em busca de explicações para os fenômenos de rua. Muitas interpretações pejorativas, vendo ameaças a conquistas da sociedade, ao invés do desejo de ir além.

Quais os precedentes dos movimentos de rua, com o que compará-los? Em “Contra a interpretação”, Susan Sontag mostra como qualquer interpretação é reducionista, tenta “reduzir” o fenômeno a uma outra coisa. Mas, vamos lá, as comparações com o maio de 68 na França pareciam legítimas, pelo menos num ponto: eram manifestações contra o poder e também contra as instituições tradicionais de contestação, já envelhecidas. Outras comparações inevitáveis foram com a primavera árabe e com o M-15 que, na Espanha, dizia que “nossos sonhos não cabem nas urnas”, pois não se sentiam representados pelas forças políticas tradicionais.

Mais que comparar, cabe ouvir. O psicólogo que ouviu o “íntimo e pessoal” dissonante dos chavões dominantes nos anos 80, Carl Rogers, também comentou que a região onde estava tinha tendências a antecipar o futuro, a Califórnia. Ele não estava elogiando o “american way of life” da época, ao contrário, criticava o militarismo imperialista do Bush (pai, na época). Além disso, Rogers visitou a China e voltou elogiando a participação dos chineses na sua sociedade (no livro “Sobre o poder pessoal”, em que também escreveu um capítulo sobre a pedagogia de Paulo Freire), em contraste com a alienação dos americanos diante dos desmandos do poder econômico. Não eram observações de um revolucionário, mas de um psicólogo que gostava de ouvir as pessoas. E é verdade, os californianos tem um papel nas mudanças do mundo, mesmo. A tecnologia de informação do vale do silício, de fato, está ajudando a mudar o mundo. O íntimo e pessoal se torna cada vez mais universal – e mais rebelde do que muitos imaginavam.

Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.

EcoDebate, 30/07/2013


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One thought on “Íntimo e pessoal, artigo de Montserrat Martins

  • Que artigo gostoso Montserrat Martins, Obrigado pela referência, que eu desconhecia, deste livro do Carl Rogers. foi publicado no Brasil?

    Seu texto lembrou-me um pouco as crônicas que Luis Carlos Lisboa escrevia no no antigo JT – Jornal da Tarde – do Grupo Estadão, deliciosos, leves, perspicazes, profundamente humanos, pessoais e, por vezes, ‘cósmicos’. Talvez tenha sido por ele que cheguei a Jidhu Krishnamurti. Que trata eternamente do tema de que vc tratou nessa texto.

    Um gde e ftn abç

    Paulo Mancini

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