UTI ambiental: contabilidade de água em pequenas bacias hidrográficas; artigo de Osvaldo Ferreira Valente
[EcoDebate] No último artigo desta série, publicado no dia quatro próximo passado, eu prometi que iria colocar números nas relações entre a bacia hidrográfica e o ciclo hidrológico. A metodologia de fazer contabilidade de água em pequenas bacias hidrográficas, que será usada na produção deste texto, está desenvolvida no livro “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas”, do qual sou o primeiro autor. A ideia é dar ao manejador uma ferramenta para analisar, passo a passo, o comportamento atual do organismo produtor de água; ele conhecerá, também, a possibilidade de avaliar posteriormente os resultados do tratamento prescrito, num esforço para evitar o empirismo de avaliações baseadas muito mais no interesse de quem faz do que na realidade comportamental do ecossistema hidrológico em pauta.
Vamos usar como exemplo uma pequena bacia de 100 hectares, de 2a ordem, recebendo 1.300 mm (1,3 m) de chuva por ano, em média. Vamos considerar, em primeiro lugar, que ela tinha um bom comportamento hidrológico, há alguns anos, operando com evapotranspiração de 70% e 10 % de enxurrada/escoamento subsuperficial. Podemos, então, fazer a nossa primeira contabilidade, lembrando que um hectare tem 10.000 metros quadrados de área:
1) Volume recebido pela bacia = 1,3 m/ano x 100 ha x 10.000 m2/ha = 1.300.000 m3/ano;
2) Volume evapotranspirado pela bacia = 0,70 x 1.300.000 m3/ano = 910.000 m3/ano;
3) Volume perdido por enxurrada e por escoamento subsuperficial = 0,10 x 1.300.000 m3/ano = 130.000 m3/ano.
Se nos recordarmos das Figuras apresentadas no último artigo (UTI ambiental: diagnóstico da água III), poderemos calcular a quantidade de água (AL) recebida pelo aquífero ou lençol subterrâneo, assim:
AL = 1.300.000 m3/ano – 910.000 m3/ano – 130.000 m3/ano = 260.000 m3/ano.
Se dividirmos 260.000 por 1.300.000, vamos encontrar 0,20. O que significa que a bacia estava, há alguns anos, colocando no aquífero 20% do volume recebido por chuvas anualmente. Se o leitor analisar bem o que fizemos, verificará que demos algumas voltas para chegar à porcentagem armazenada no aquífero (há caminho mais direto). Mas foi de propósito, pois o ciclo hidrológico é assim. Também para mostrar que lidamos com enormes quantidades de água, na maioria do território brasileiro, onde os valores anuais de chuvas estão acima de 1.000 mm. Anotamos os números com todos os algarismos, sem uso de potências de dez, facilitando a visualização de suas grandezas. Pena que não temos conseguido lidar bem com esses fantásticos volumes de água recebidos por nossas bacias hidrográficas.
Gostaria que o leitor imaginasse, agora, o aquífero como sendo uma grande caixa d’água e que a nascente e o córrego são torneiras drenando o volume armazenado, conforme esquema da Figura aqui apresentada. Essa caixa d’água subterrânea foi colocada à nossa disposição pela natureza e a sua existência, na maioria dos casos, pode ser comprovada pela presença de nascentes e córregos, pois ambos são formados pela emergência de água nela armazenada. Se há uma nascente/córrego, há um aquífero em equilíbrio com eles. Mas mesmo a ausência da manifestação superficial não elimina a existência do aquífero e ele poderá ser acessado por poços freáticos ou artesianos.
Se a vazão da torneira ou da nascente/córrego fosse uniforme ao longo do ano, e sabendo que um ano tem 525.960 minutos, elas estariam liberando 494,3 litros de água por minuto, assim calculados:
Vazão média = 260.000 m3/ano : 525.960 min/ano = 0,4943 m3/min
(ou 494,3 L/min).
É quase intuitivo para todos nós o fato de que com a caixa cheia sairá mais água pela torneira do que o valor calculado, que é médio; quando a caixa já estiver bem vazia, a vazão da torneira será menor. O mesmo raciocínio pode ser aplicado às nascentes e aos córregos. Admitindo que a bacia que estava produzindo a média de 494,3 L/min tinha um bom comportamento hidrológico, podemos aceitar variações de 30% em relação a este valor, para mais ou para menos, variando de 642.6 L/min na estação chuvosa (494,3 x 1,30) a 346 L/min no final do período de estiagem (494,3 x 0,70).
Mas observe o leitor que os valores calculados até aqui se referem ao comportamento da bacia há alguns anos. A realidade atual é outra, pois a bacia foi bastante degradada e a produção de água já não é mais a mesma. Medidas feitas no final do período de estiagem têm indicado vazões de 140 L/m. Usando a variação de 30 % em relação à média, chega-se ao valor de 200 L/min para esta última (140 dividido por 0,7)
Fazendo o caminho inverso de alguns dos cálculos realizados anteriormente, teremos:
AL = 0,200 m3/min x 525.960 min/ano = 105.192 m3/ano
O armazenamento de água no aquífero, em porcentagem do volume de chuva recebido, está sendo, então, de 8,09 %, assim calculado:
Armazenamento = 105.192 : 1.300.000 x 100 = 8,09%
Comparando os 8,09 % de agora com os 20 % anteriores, dá para perceber como piorou o comportamento da bacia. Podemos, então, a partir da realidade apresentada, estabelecer metas a serem alcançadas em planos de manejo para revitalizarem a capacidade de produção de água da área. Numa primeira fase, vamos pensar em um armazenamento de 15 %, o que leva ao seguinte:
AL = 1.300.000 m3/ano x 0,15 = 195.000 m3/ano
Como o AL atual está sendo de apenas 105.192 m3/ano, temos que planejar ações capazes de colocarem mais 89.808 m3/ano no aquífero (195.000 menos 105.192). Aí está a meta de trabalho. Medições futuras, depois de implantadas as tecnologias de manejo apropriadas ao caso, servirão para indicar se as operações estão dando os resultados esperados, ou se precisam ser intensificadas.Se estiverem dando certo, poderemos perseguir uma nova meta, ou seja, recuperar os 20 % originais e a consequente vazão mínima de 346 L/min.
Se você conseguiu chegar até aqui, meu pobre leitor, eu agradeço, informando que não precisamos nos preocupar em perseguir precisões de dados, medições e cálculos, pois estamos trabalhando com metas que podem ser corrigidas ao longo do tempo. Mas a aplicação da contabilidade apresentada é importante para entendermos melhor o comportamento do ecossistema hidrológico que pretendemos modificar. Enfim, é possível concluir que a garantia de água para o dia a dia está muito além de simplicidades vendidas por aí, com bastante frequência.
Fico devendo, para o próximo artigo, alguns exemplos de tecnologias que poderão ser utilizadas para aumentar a recarga dos aquíferos. Ou seja, remédios que poderão ser prescritos para a cura do doente.
Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas, professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e autor de dois livros recém-publicados: “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas”e “Das chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia”; colaborador e articulista do EcoDebate.
valente.osvaldo@gmail.com
Nota do EcoDebate: sobre o mesmo tema sugerimos que leiam, também, os artigos anteriores desta série:
UTI ambiental: diagnóstico da água I
UTI ambiental: diagnóstico da água II
UTI ambiental: diagnóstico da água III
EcoDebate, 19/07/2013
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Professor, consegui ler o artigo até o final ! kkk
Brincadeiras á parte, agradeço essa ótima lição de hidrologia. Vamos divulgar, esse é um conhecimento que deveria ser ministrado já no ensino médio, para todos e não somente aos profissionais da área. Até como um ótimo exercício de matemática ! Tema transversal.