Transporte: Estudantes sofrem com direito que é financiando, mas não posto em prática, por Viviane Tavares
Direito de ir e vir
As manifestações em todo país indicam um problema: o transporte público não anda bem. Não são os R$ 0,20 , dizem os manifestantes: são os transportes como um todo, o projeto de cidade mais democrática, a questão da mobilidade urbana, entre outras bandeiras que entraram no conjunto destas manifestações que já bateram recorde de mobilização. Entre os manifestantes, que antes eram tratados como ‘baderneiros’ e ‘desocupados’ pela imprensa comercial e por setores da sociedade, estão estudantes de ensino fundamental, médio e universitário que brigam pelos seus direitos de ir e vir da escola ou universidade. Direito esse compartilhado pelos idosos e pelos deficientes, garantido pelo Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03 ) e, e pela Lei do Passe Livre (Lei 8.899/94 ), respectivamente. Os estudantes ainda não têm essa garantia dada por lei e ficam sujeitos às políticas estaduais ou municipais.
O artigo 11 do Estatuto da Juventude, que tramita na Câmara dos Deputados, dispõe sobre o direito ao transporte escolar que será progressivamente estendido aos jovens estudantes. O artigo 4º da Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) também pontua esta importância. A questão é que uma vez conquistada, o direito nem sempre é garantido. A secretaria da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), por exemplo, precisa tomar medidas quando existe aula após um feriado, em sábado letivo ou em recesso escolar. Nestas ocasiões, ela manda um ofício às empresas de ônibus para avisar para que elas liberem os estudantes nos ônibus. “Por ser uma escola federal, os estudantes têm um calendário diferente, e a gente sempre tem que mandar ofício avisando que haverá aula para que o estudante consiga pegar o ônibus”, informa Luis Maurício Baldacci, da Coordenação Geral do Ensino Técnico de Nível Médio em Saúde (Cogets).
O geógrafo e especialista em planejamento urbano e uso do solo Jorge Borges vai além e analisa que a condição de estudante já deveria garantir a gratuidade dos transportes públicos. “O aluno deveria receber o direito de ir a uma biblioteca, a uma atividade cultural, de desporto… O fato de ele ser estudante, já seria suficiente para ele receber esse direito de passe livre, e não se limitar, como é hoje, ao trajeto casa-escola, de segunda a sexta. Há municípios que nem incluem os sábados letivos ”, explica o especialista que também é mestre em planejamento de transportes.
A importância do transporte para a educação
No documento ‘Transporte Urbano e Inclusão Social: Elementos para Políticas Públicas ’, de Alexandre Gomido, diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest), , do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que o motivo ‘escola’ chega a ser 60% das razões de viagens para as pessoas com renda familiar de até um salário mínimo. “À medida que a renda se eleva, aumenta a proporção das viagens realizadas por outros motivos, como lazer, compras e saúde”, acrescenta o documento.
A educação, portanto, está diretamente ligada à questão do direito ao transporte público e de qualidade. A pesquisa “Motivos de evasão escolar ”, do Todos pela Educação em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostra que a escola distante de casa e a falta de transporte estão entre os principais motivos de estudantes abandonarem os estudos, assegurando 25% dos casos de evasão.
Esta relação entre transporte e escola já é visada em alguns municípios para ser mais uma fonte de subsídios para as empresas de transporte público. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, como denuncia o vereador Eliomar Coelho (Psol/RJ), nos anos de 2011 e 2012, a Prefeitura repassou cerca de R$ 50 milhões por ano, inclusive verba do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) para a empresa RioÔnibus. A justificativa é a compensação pelas gratuidades dos alunos da rede pública municipal e a instalação do sistema de acompanhamento da assiduidade e frequência dos alunos. ‘Curiosamente, esse valor equivale à aludida perda de receita pelas empresas, com a implantação do Bilhete Único Carioca’, aponta o vereador.
A inexistência de uma rede de transportes socialmente efetiva, que garanta a acessibilidade da população a todo o espaço urbano, pode infligir consideráveis gastos de tempo nos deslocamentos dos mais pobres, informa o estudo do IPEA. “O tempo excedente nas viagens poderia ser aproveitado para outras atividades remuneradas, para atividades de lazer, e, claro, de educação. Não é à toa que tem uma relação entre as pessoas que mais passam tempo dentro de transporte público com o nível de escolaridade baixo”, lembra Alexandre.
Quem paga a conta do transporte
A Constituição Brasileira de 1988, no artigo 30, ainda indica a responsabilidade do transporte público aos municípios, ao estabelecer que compete aos municípios“organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”. Uma vez concedido ao poder executivo municipal, cabe, então a ele, fiscalizar e interceder para que este serviço seja realizado com qualidade.
O pesquisador do IPEA Alexandre Gomide, em entrevista à EPSJV, indica que existem diversas maneiras de custear os transportes públicos, podendo, assim reduzir o preço das passagens. A primeira, aponta ele, seria por meio de um transporte estatal; a segunda por meio de incentivos fiscais, como tem sido defendido por muitos especialistas; e a terceira, onerando mais quem usa transporte individual para que seja criada uma espécie de fundo. “Quando o governo dá uma isenção fiscal a uma fábrica de automóveis e o mercado é concorrencial, este desconto vai acabar sendo repassado para o produto, porque se uma empresa não repassar e baixar o valor do seu produto, outra empresa pode fazer e ganha o mercado. No transporte público, como esta questão dos custos não é muito clara, muitas vezes essas empresas que operam no país não tem o contrato regularizado ou operam sob contratos precários. E como os vários municípios não têm condições de regulamentar o serviço muitas dessas isenções não são repassadas para a tarifa. A desoneração é muito bem-vinda, mas o setor já recebeu duas exonerações esse ano: o da folha de pagamento, que acarretou em uma queda de 3,5% no custo, e agora do Pis/Cofins que o governo federal deu. Isso tudo dá quase 8%, então, teoricamente, não teria que ter aumento nenhum. Além disso, municípios em Belém e Manaus, por exemplo, concederam também o do ISS”, analisa.
O especialista em mobilidade urbana Jorge Borges também indica que a questão da isenção de impostos por parte do governo municipal e federal não tem garantido o preço das passagens. “As gratuidades como um todo são feitas pelas empresas por meio dos cartões, e é a partir daí que elas reivindicam os subsídios. A isenção de impostos, por exemplo, é uma estratégia para manter o valor da passagem. Mas ela não tem nenhum planejamento em relação a isso, e acaba virando uma estratégia inócua. As empresas vêm conseguindo várias isenções e redução de impostos, e a passagem tem subido acima da inflação e dos indicadores de custos das próprias empresas”, avalia e ressalta: “Não existe fiscalização na rua. A empresa tem uma postura agressiva com relação ao estudante, e os motoristas mal preparados e superexplorados, cada vez mais tem sido avessos a transportar os estudantes. Além disso, em alguns municípios, os motoristas têm uma cota mínima de passageiros pagantes que, caso ele alcance, ganha um dinheiro extra. Se ele para muito para estudante, idoso ou deficiente, o número de passageiros pagantes diminui, e ele fica com dificuldade de alcançar a meta que dá esse dinheiro extra para ele. Para o motorista não interessa carregar gratuidade porque aumenta o tempo de viagem dele e diminui o número de pagantes”, informa.
Ele usa o exemplo do Rio de Janeiro, onde as empresas de ônibus já contam com benefícios fiscais. A prefeitura do Rio de Janeiro, em 2010, reduziu o ISS dos ônibus de 2%, que é uma média nacional, para 0,01% , o que representa renúncia de receita de R$ 109,2 milhões em dois anos. Para 2014, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) prevê que a prefeitura abra mão de R$ 56,4 milhões em receitas. Com base em projeções até 2016, isso dará R$ 280 milhões.
No mês passado, o setor de transportes foi isentado do imposto federal para o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), o que acarretou em cerca de 0,10 centavos a menos em cada passagem. Nesta última terça-feira, dia 18, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado incluiu na pauta o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 310/2009, de Lindbergh Farias (PT-RJ), que institui o Regime Especial de Incentivo para o Transporte Coletivo Urbano e Metropolitano de Passageiros (Reitup). “A redução dos impostos prevista no Reitup vai ocorrer por meio da isenção da contribuição para o PIS/Pasep, e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), incidentes sobre o faturamento dos serviços de transporte, e da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) incidente sobre a aquisição de óleo diesel”, diz texto do site do Senado.
“À princípio, os subsídios são instrumentos legítimos de financiamento de transporte em vários países do mundo, inclusive em países onde o capitalismo é mais avançado, onde as empresas de ônibus são subsidiadas ou estatizadas. No Brasil, nós temos um sistema dominado totalmente pela própria empresa, ou seja, quem produz informação sobre quantos passageiros têm é a empresa, quem define o acesso de quem vai usar o sistema ou não é a empresa, independente se está recebendo isenções ou não”, analisa Jorge Borges.
A pesquisadora Margareth Uomara, do Instituto Polis, propõe outra solução. Ela indica que o poder executivo, tem total autonomia para exigir serviços de qualidade. “A terceirização dos serviços é um problema porque o poder executivo perde o controle de quanto de fato custa o serviço. Mas, é importante lembrar que todo poder que dá a concessão tem autonomia total para dar a regra. E o concedente aceita se quiser”, informa.
Jorge Borges compartilha da ideia de Uomara e aponta diferentes modelos possíveis: “O poder público pode operar diretamente, como era antigamente, e como é em cidades como Montreal, no Canadá, onde uma empresa pública opera e dá até garantias de que o ônibus e o metrô vão chegar pontualmente nos horários. Outra questão é que o sistema seja todo eletrônico. Hoje o motorista recebe em dinheiro vivo, que será contabilizado na garagem da empresa e depois no banco. A empresa na hora de preencher os dados para mandar para a prefeitura, preenche o que quiser. Se é eletrônico, fica mais fácil de fiscalizar por meio do sistema, podendo ser realizado uma espécie de declaração de renda da empresa periodicamente”, indica e analisa: “Infelizmente esse modelo acaba com a profissão de trocador, que vai ser extinta gradualmente. Mas, pode possibilitar o fim da superexploração do motorista, a chamada dupla função. Em Goiânia, você tem uma cabine de bilhete a cada esquina, ou seja, existem pessoas que trabalham nestas cabines porque os passageiros só podem entrar com o bilhete, então, os antigos trocadores podem voltar a ter seu espaço”, analisa.
O filósofo Vladimir Safatle em artigo para a Folha de São Paulo em 18/06/2013 lembra que uma das propostas que estão nas ruas era do PT. “Em uma ironia maior da história, o PT ouve das ruas a radicalidade de propostas que ele construiu, mas que não tem mais coragem de assumir. A proposta original previa financiar subsídios ao transporte por meio do aumento progressivo do IPTU. Ela poderia ainda apelar a um imposto sobre o segundo carro das famílias, estimulando as classes média e alta a entrar no ônibus e a descongestionar as ruas”, ressalta.
Uma questão ainda maior: Mobilidade urbana
“A mobilidade urbana, pelo conceito de planejamento de transporte, é um conjunto de indicadores que medem a capacidade de deslocamento em uma cidade. Ou seja, ela afere quanto uma população exerce seu direito de ir e vir no tecido urbano”, explica Jorge. Para isso, existem vários elementos para medir como a conectividade, as linhas de transporte, da acessibilidade, que são as passarelas, calçadas, acesso às estações de trem e metrô, e vários outros indicadores. “Em muitas cidades, a questão da mobilidade tem sido vista como um plano secundário”, completa o especialista.
A política de transporte e mobilidade é parte da política urbana em geral, que é responsabilidade direta do município. A prefeitura que tem a responsabilidade de fazer zoneamento urbano, definir os parâmetros, de ocupação do solo. “O município tem a autonomia de definir quais são as áreas mais adensadas, com mais atividades se instalando, as áreas mais residenciais, mais industriais, mais comerciais. “Essa política urbana é fundamental para pensar a estrutura de transporte. Não tem como ser descolado”., explica Jorge.
Margareth Uemura explica que a questão da mobilidade urbana mal planejada também é uma forma de segregação. “Quando analisamos os dados da pesquisa origem-destino, é possível reparar que os principais motivos que as pessoas se deslocam é para trabalhar e estudar. Quanto mais excluídas essas pessoas são, mais elas se deslocam. As pessoas que podem escolher onde morar, obviamente, moram perto do trabalho. Mas nem todo mundo tem o privilégio de escolher onde morar. Aliado a isso, você tem um transporte público ruim”, analisa. A pesquisa origem-destino é realizada pelos estados e cidades para basear o planejamento de transporte. Na região metropolitana de Campinas, por exemplo, baseado no último estudo realizado em 2011, mostram que trabalho e saúde concentram 66,7% dos motivos da viagem, e que o tempo médio dessas viagens é de 49 minutos.
O projeto de lei 1.687 de 2007 , o PL da Mobilidade Urbana, arquivado na mesa de diretoria da Câmara dos Deputados propõe entre tantos itens uma nova regulamentação que visa à modernização do marco regulatório dos serviços de transportes públicos, a exigência que todos os municípios acima de 20 mil habitantes elaborem seus planos de mobilidade urbana e, além disso, com obrigatoriedade de divulgarem os impactos, no valor final das tarifas, dos benefícios tarifários concedidos.
Manifestações em todo o país
As manifestações estão em todo o país e fora dele. Diversas cidades já baixaram suas tarifas, entre elas, estão Rio de Janeiro, São Paulo, Blumenau, João Pessoa, Natal, Porto Alegre, Recife, Vitória, entre outros.
Viviane Tavares – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
EcoDebate, 28/06/2013
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