Mais medicalização, menos autonomia. Entrevista com Charles Dalcanale Tesser
Não dá para dizer que os profissionais de saúde sejam os principais atores ou molas propulsoras da medicalização, mas de qualquer forma tendem a ter uma ação pró-medicalização, constata o médico e professor da UFSC.
Ao comentar sobre os desafios que surgem a partir da hegemonia político-epistemológica da biociência e da disputa mercadológica atual no campo da saúde, o médico e professor Charles Tesser considera que esse é um dos dramas atuais na área da saúde, porque, segundo ele, “a tendência da especialização e as dificuldades da sociedade contemporânea, em função do capitalismo, cada vez mais vão acirrando o ambiente de competividade e de disputa”.
Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, esclarece que existe na área da saúde uma competição entre as categorias profissionais, dos especialistas, pelas fatias do mercado. “Afinal, as pessoas querem se estabelecer, trabalhar, ter um lugar na sociedade, com reconhecimento e remuneração. Isso é algo que tende a acirrar o processo de medicalização, no sentido de que as pessoas e as corporações querem abocanhar pedaços de técnicas, procedimentos, de fazeres como sendo seus”.
Tesser fala na importância de resgatar a autonomia do sujeito diante do enfrentamento da vida, no combate à medicalização desnecessária. De qualquer forma, continua, “temos um processo histórico que vem desde o fim do século XX, que é uma tendência de, na atuação profissional, exigir submissão, pouca autonomia; a gente faz e intervém. O médico dá o remédio, opera e a pessoa só cumpre ordens. Isso é frustrante, medicalizante e funciona muito mal”.
Charles Dalcanale Tesser é médico formado pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, com residência em Medicina Preventiva e Social pela mesma instituição. Tem especialização em Homeopatia pela Associação Paulista de Homeopatia e mestrado e doutorado em Saúde Coletiva pela Unicamp. É professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Dentre outros, é organizador do livro Medicalização social e atenção à saúde no SUS (São Paulo: Hucitec, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que podemos entender por medicalização social?
Charles Tesser – A medicalização não tem uma definição muito simples ou fácil. Mas podemos pensá-la como um processo de múltiplas dimensões que envolvem duas características principais. A primeira consiste no fato de que ocorre um processo de transformação de eventos, de características, de aspectos das pessoas e de suas vidas em problemas que passam a ser objeto da ação profissional da área da saúde.
Ou seja, ocorre a transformação de aspectos relativos a experiências da vida das pessoas em problemas médicos, que até recentemente não eram consideradas como tal. É um processo que está avançando desde a década de 1960, principalmente em função do avanço tecnológico e da medicina. Uma segunda característica do processo de medicalização é o fato de esse processo gerar cada vez mais dependência das pessoas de profissionais de saúde ou de médicos, ou de tecnologias especializadas que são dominadas por profissionais de saúde, para tocarem sua vida.
IHU On-Line – Como a questão da medicalização social afeta o Sistema Único de Saúde no Brasil?
Charles Tesser – O SUS está tentando se organizar, com muita dificuldade, como algo que ainda está incompleto, pela metade, e que sofre as consequências da medicalização. Ele não só sofre as consequências, porque se gera uma demanda infinita por profissionais de saúde, como também está diante de algo não resolvível, porque é muito frustrante atribuir um tratamento a coisas da vida com remédios ou cirurgias.
Por outro lado, os próprios profissionais de saúde que trabalham no SUS tendem, por sua formação, pela tendência das práticas, a reforçar a medicalização. Isso é um tiro no próprio pé. Não dá para dizer que os profissionais de saúde sejam os principais atores ou molas propulsoras da medicalização, mas de qualquer forma tendem a ter uma ação pró-medicalização.
IHU On-Line – O que faria parte de um processo de pluralização terapêutica das instituições de saúde?
Charles Tesser – A ideia de pluralização dos cuidados ou pluralização terapêutica não é algo novo e nem surgiu aqui no Brasil. É uma ideia de reconhecimento que foi feita por outros pesquisadores, normalmente sociólogos e antropólogos da saúde, de que, na sociedade em geral, as pessoas e grupos sociais recorrem a diversos tipos de cuidado, incluindo o cuidado médico e científico. Além desse, há uma procura crescente, nos últimos 40 anos, de outros tipos de cuidado. Diante disso, o sistema de saúde reconhece que ele mesmo pode se pluralizar também.
IHU On-Line – A que outros tipos de cuidado o senhor se refere?
Charles Tesser – Posso citar alguns exemplos, como as medicinas orientais, dentre as quais a acupuntura. Há outros tipos de tratamento já reconhecidos pela sociedade, como a homeopatia, práticas corporais, como a yoga, meditação, relaxamento.
IHU On-Line – Quais os desafios que surgem a partir da hegemonia político-epistemológica da biociência e da disputa mercadológica atual no campo da saúde?
Charles Tesser – Esse é um dos dramas, porque a tendência da especialização e as dificuldades da sociedade contemporânea, em função do capitalismo, cada vez mais vão acirrando o ambiente de competividade e de disputa. Temos, na área da saúde, uma competição entre as categorias profissionais, dos especialistas, pelas fatias do mercado. Afinal, as pessoas querem se estabelecer, trabalhar, ter um lugar na sociedade, com reconhecimento e remuneração. Isso é algo que tende a acirrar o processo de medicalização, no sentido de que as pessoas e as corporações querem abocanhar pedaços de técnicas, procedimentos, de fazeres como sendo seus.
IHU On-Line – O que deve ser levado em conta quando se fala de autonomia em saúde-doença?
Charles Tesser – A maior parte do que as pessoas fazem em relação à própria vida e à saúde é por conta própria, ou seja, em um ambiente de cuidado doméstico, familiar, na sua rede de relações sociais. Uma parte das ações para se cuidar foi introduzida na cultura pelos próprios profissionais de saúde. No entanto, a autonomia diminui conforme aumenta a medicalização. E conforme aumenta a medicalização, se dissemina nas pessoas e nas populações uma sensação de insegurança e de incompetência para fazer as coisas que costumam fazer para enfrentar a vida: pequenos problemas, pequenas dores não necessariamente precisam gerar demanda de um profissional de saúde.
A ideia hoje é muito explorada em todo mundo, até nas próprias profissões acadêmicas da saúde, é que, dado o aumento da longevidade e a proeminência de doenças crônicas, deveríamos tentar trabalhar para incrementar, resgatar, valorizar ou estimular a autonomia das pessoas em geral, seja para terem mais segurança, tranquilidade e mais conhecimento, senso crítico e bom senso para se cuidarem por conta própria, seja para participarem dos cuidados que transcendem a esfera da competência leiga e que necessitam de um curador, um profissional de saúde.
De qualquer forma, temos um processo histórico que vem desde o fim do século XX, que é uma tendência de, na atuação profissional, exigir submissão, pouca autonomia; a gente faz e intervém. O médico dá o remédio, opera e a pessoa só cumpre ordens. Isso é frustrante, medicalizante e funciona muito mal.
Nota: A fonte da imagem que ilustra esta página é http://migre.me/eIDlO
(Ecodebate, 29/05/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
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