Dossiê elaborado pelo Comitê Popular Copa e Olimpíadas denuncia violações de direitos humanos
Um total de onze mil famílias estão diretamente envolvidas com os grandes eventos que acontecerão no Rio de Janeiro, uma das sedes da Copa do Mundo 2014 e cidade-sede das Olimpíadas 2016. Não, eles não são os que conseguiram comprar os ingressos antecipados para esses dois maiores eventos esportivos do mundo, e sim, são os que perderam ou perderão suas casas por conta dessas festividades esportivas. Lançado no último dia 14 de maio, o 2º Dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos , elaborado pelo Comitê Popular Copa e Olimpíadas, traz denúncias de como as melhorias na cidade para receber esses dois eventos estão sendo realizadas e quais são os verdadeiros legados até agora.
Entre as obras em andamento na cidade do Rio de Janeiro, estão as instalações e reformas de unidades esportivas, como o Estádio Mário Filho, o Maracanã, ampliação e criação de linhas de metrô, corredores de ônibus e melhorias de vias de acesso à área urbana e aeroportos. Estas melhorias, denominadas pelos governos municipal, estadual e federal, como legados da Copa, são abordados de forma aprofundada pelo documento. “Os impactos das intervenções urbanas são de grandes proporções, e envolvem diversos processos de exclusão social, com destaque para as remoções. Para se ter uma ideia, as informações disponíveis possibilitam estimar gastos da ordem de um bilhão de reais com desapropriações, apenas para a implantação dos Bus Rapid Transit (BRT)’, exemplifica o documento.
O Dossiê é dividido em nove capítulos nos quais separa temáticas como Moradia, Mobilidade, Trabalho, Meio Ambiente, Segurança Pública, Informação e Participação, Orçamento e Finanças, Iniciativas de Resistência do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas e Propostas do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas. “A intenção é visibilizar o legado oculto, que é de uma cidade mais individual, mais segregada. E também mobilizar a sociedade colocando essa questão em discussão para que participem dos processos relativos a isso. A questão central é que nós não estamos diante apenas da preparação do Rio de Janeiro para os megaeventos, o que está em curso é um projeto de reestruturação urbana que terá grandes impactos na cidade. Ao contrário do que está sendo falado, vinculado à pressa, a fazer tudo com urgência, descumprindo a legislação para dar conta dos prazos exigidos pela FIFA e pelo COI, tentamos pontuar que este projeto de cidade tem uma profundidade além dos eventos”, explica professor do IPPUR/UFRJ e representante do Comitê Popular da Copa e Olimpíada, Orlando Santos Junior.
O capítulo de ‘Moradia’ mostra como a cidade se reestruturou a partir da transferência de milhares de famílias, que antes habitavam áreas de interesse para a realização desses grandes eventos, para áreas periféricas. “Trata-se de uma política de relocalização dos pobres na cidade a serviço de interesses imobiliários e oportunidades de negócios”, diz o dossiê. Uma pesquisa desenvolvida pelo estudante Lucas Faulhaber, em seu trabalho de final de curso da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), e introduzida nessa versão do Dossiê, mostra como as remoções fazem parte de um projeto de cidade. A maior parte das comunidades que foram removidas fizeram o caminho de saída da Zona Sul e Centro do Rio de Janeiro para a Zona Oeste, região mais distante do Centro da cidade, que chega a uma distância de mais de 50 km. Veja o gráfico ao lado. Entre as comunidades atingidas estão a Largo do Campinho, Largo do Tanque e Arroio Pavuna, afetadas por conta do BRT Transcarioca; Vila das Torres, por conta da Construção do Parque Madureira; Vila Harmonia, Vila Recreio II e Vila da Amoedo, por conta da construção do BRT Transoeste; ocupações na Rua do Livramento e Quilombo das Guerreiras, referentes ao Projeto Porto Maravilha; Pavão-Pavãozinho, Vidigal e Indiana, consideradas áreas de risco.
Morador do Pico Santa Marta, uma das comunidades vítimas de remoções, Vitor Lara conta que a abordagem foi realizada de forma autoritária. “Apresentaram um laudo a mando de algum geólogo, com argumentos sem nexos, sem estudo de campo ou pesquisa aprofundada. Não existe registro de nenhum acidente natural desde a década de 1980, quando o Pico foi revitalizado durante o governo Brizola. A proposta, que foi apresentada sem discussão, era de que as pessoas fossem removidas para outro local que a prefeitura também considera de risco, o antigo lixão. Lá seriam construídos apartamentos de 32m². Só por aí podemos ver que a preocupação não é com a nossa segurança”, diz o morador.
Emprego
Uma das outras justificativas para tanta obra realizada é a geração de emprego. A estimativa na página eletrônica do Consórcio Maracanã Rio 2014 – formado pelas construtoras Odebrecht Infraestrutura e Andrade Gutierrez – é de que foram gerados cerca de três mil empregos diretos, como informa o relatório que completa que estes empregos apresentam grandes indícios de precarização do trabalho. “As pressões exercidas pela FIFA e pelo COI, combinadas com o discurso que propaga a incapacidade do país de entregar a tempo a infraestrutura necessária à realização dos jogos, facilitam e legitimam a adoção de padrões de relação de trabalho fundados na precarização. Desta forma, criam-se justificativas para que ocorram processos de violações dos direitos dos trabalhadores, no caso específico da reforma do Maracanã. Já ocorreram duas paralisações durante a realização das obras, relacionadas às péssimas condições de trabalho. Mas inúmeros outros casos, tanto no país quanto no Rio de Janeiro, vêm acontecendo no transcorrer das obras vinculadas aos megaeventos esportivos da Copa e das Olimpíadas”, analisa o relatório.
Em contrapartida, o governo estadual removeu ambulantes no entorno do Maracanã. Além disso, os ambulantes da Zona Sul também estão sendo impactados por conta de outros eventos esportivos, porque ficam impedidos de montar suas barracas na ocasião. No total, somente na cidade do Rio de Janeiro, estima-se que existam 60 mil trabalhadores ambulantes. “A prefeitura aprovou na Câmara dos Vereadores, em 2009, uma legislação que proíbe qualquer camelô de trabalhar em um raio de dois quilômetros dos estádios e outras localizações de competições, de hospedagem dos atletas e de eventos relacionados. Também está prevista a repressão, com prisão e apreensão de mercadorias, de qualquer pessoa que comercialize material que faça referência aos símbolos dos eventos e de seus patrocinadores”, informa o relatório.
O professor do IPPUR/UFRJ reconhece a geração de empregos, mas que outros interesses estão em jogo. “É inegável que existe uma geração de emprego de diversos setores como o setor civil, de turismo e de entretenimento. Mas há outros setores que sofrem indiretamente o impacto dessas intervenções e sofrem violações de direitos, como o seu direito ao trabalho, em relação aos grandes interesses que estão envolvidos aos grandes negócios. Os dois setores mais atingidos neste modelo são os camelôs. Não é apenas perseguição, a repressão ao comércio informal, o que está em jogo é a criação de espaços monopólicos para a operação das empresas associadas aos grandes eventos. Elas operam o espaço, regulam o espaço e isso é absolutamente inédito porque a FIFA e o COI terão o poder, inclusive, de regulação das atividades econômicas de um espaço da cidade durante a realização destes megaeventos. A ordem pública é controlada para se tornar subordinada a alguns interesses e de outro lado você tem espaços onde a empresa pode operar de forma monopolista”, atenta.
Esporte brasileiro
O caso do Maracanã também é simbólico. Mais de 1 bilhão de reais já foram gastos com as obras de reforma do estádio, que já havia sido reformado para receber os jogos Pan Americanos em 2007. O projeto de reforma atual inclui também uma concessão por 35 anos do Complexo do Maracanã ao consórcio formado pelas empresas Odebrecht, AEG e IMX, sendo a última responsável pelo estudo de viabilidade do projeto do novo Complexo do Maracanã, além da demolição de espaços de treinamentos de atletas olímpicos como o Parque Aquático Julio Delamare e o Estádio de Atletismo Célio de Barros. Fora isso, a Escola Municipal Friedenreich, – uma das dez melhores do país, de acordo com o Ideb – , e o prédio datado de 1862, no qual Darci Ribeiro instituiu o antigo Museu do Índio foram condenados a demolição. Veja mais detalhes na matéria ‘Território das comunidades tradicionais: uma disputa histórica’.
De acordo com o levantamento do documento, o Célio de Barros era utilizado por cerca de 600 pessoas ao dia e abrigava 15 equipes de atletismo. “Ao todo, tínhamos, até janeiro, cerca de 150 atletas treinando em alto rendimento no local, em busca de índices para os principais campeonatos continentais e mundiais de diferentes categoriais e para as olimpíadas e as paraolimpíadas de 2016, que, como se sabe, serão realizadas na própria cidade do Rio de Janeiro”, informa o documento.
Atleta que utiliza um dos espaços a ser demolido, Monica Lages do Amaral se mobilizou com a causa e fez parte do documento com seu depoimento. “Estou há treze anos treinando diariamente. Tão perto das olimpíadas na minha cidade, que pode ser a minha primeira, o processo vai ser interrompido. Só que não há ninguém preocupado com isso além da gente. O foco para 2016 não está em medalhas, mas no dinheiro”, diz a atleta, que treina no Parque Julio Delamare.
Segurança Pública
De acordo com o documento, o gasto público com segurança por conta do evento já está na casa dos 2 bilhões de reais e envolverá cerca de 53 mil agentes. Os pesquisadores apontam também que a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPS) tem relação direta com essas manifestações esportivas e que, segundo eles, representa o maior gasto do estado em segurança pública. ‘Só em 2014, o custo será de R$ 720 milhões, prevendo um efetivo de 12 mil policiais’. Até agora, 18 UPPs já foram instaladas nas regiões mais nobres da cidade, e o planejamento da instalação é que até a Copa do Mundo sejam instalados 40 UPPs em toda a cidade.
A relação das UPPs com a especulação imobiliária pode ser vista de diversas formas. O jogo Banco Imobiliário Cidade Olímpica traz em uma de suas cartas denominadas “Sorte” a valorização do apartamento ao lado de uma comunidade pacificada. Além disso, o empresário Eike Batista, em acordo com o governo do Estado, investirá 20 milhões de reais por ano até 2014 para o financiamento das UPPs.
“Criam uma política de ordem, de controle, de segurança que permita a reincorporação das áreas que estavam desvalorizadas ao circuito de valorização imobiliária e também a apropriação das próprias áreas das favelas ao mercado. As UPPs aparecem neste contexto. Há uma mudança no paradigma do poder público. Incorporar essas áreas ao mercado não é visto como negativo, pelo contrário, vai ser enaltecido. A Prefeitura do Rio se subordinar aos interesses econômicos em nome do desenvolvimento da cidade é visto como positivo. Não importa se isso produz múltiplos espaços de maiores desigualdades, ou maior exclusão social. Se isso vai gerar a expulsão via mercado, a expulsão de uma parcela da população, das classes populares que moram na favela, isso é considerado um efeito não desejável, mas um efeito sobre o qual você não pode fugir. Ele é visto como o preço a pagar para o seu desenvolvimento, é inevitável. Nesse novo paradigma, há uma associação entre o interesse econômico e o bem comum. Se é bom para os negócios, é bom para o bem de todos. Nenhuma implantação da UPP foi acompanhada de garantia da educação, de direito social nessas áreas. É uma nítida política de incorporação dessas áreas ao mercado imobiliário”, analisa o professor.
O morador do Pico Santa Marta ratifica essa análise. “Depois da entrada do projeto das unidades pacificadoras (UPP) muitas outras entraram também, inclusive as ameaças de remoções. Então, no dia 11 de janeiro, nós recebemos a notícia que seríamos removidos de nossas casas com o argumento de que a área era de risco. Mas, o que podemos ver disso tudo é que o lugar que nós moramos se tornou propício para explorar”, diz o morador.
Internação Compulsória
O documento também denuncia a questão da internação compulsória como uma das estratégias para receber os grandes eventos. Já apontados em diversas matérias da EPSJV/Fiocruz como um retrocesso no tratamento de pessoas com problemas de saúde mental, a política de internação compulsória é, de acordo com o documento, de cunho ‘proibicista, manicomial e higienista’.
“É óbvio que o projeto de internação compulsória se encaixa nesse projeto de ordem pública, de limpeza da cidade, e, no Brasil, como todo mundo sabe, quando se diz respeito à política de drogas, está completamente defasado do debate contemporâneo. A política se relaciona muito bem com a necessidade de limpar certas áreas da cidade da presença indesejada de pessoas que impedem a incorporação destes espaços no circuito de especulação mobiliária”, avalia Orlando.
Matéria de Viviane Tavares – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), publicada pelo EcoDebate, 24/05/2013
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