Agentes do extinto serviço de proteção escravizavam índios, aponta Relatório Figueiredo
Relatório Figueiredo – Conclusões da investigação feita em 1967 têm mais de 7 mil páginas que foram encontradas recentemente no antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro (Foto: Arthur William )
Criado em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) muitas vezes atuou de maneira totalmente contrária aos interesses das pessoas por quem deveria zelar. Uma investigação coordenada em 1967 pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia indicou que, além da corrupção sistêmica no órgão – que posteriormente seria substituído pela Fundação Nacional do Índio, a Funai, parte de seus agentes praticavam escravidão e tortura de índios em todo o país.
As revelações estão no chamado Relatório Figueiredo, documento com as conclusões da investigação comandada pelo procurador. São mais de 7 mil páginas que acreditava-se estarem perdidas, mas foram encontradas recentemente no antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro.
“De maneira geral não se respeitava o indígena como pessoa humana, servindo de homens e mulheres, como animais de carga, cujo trabalho deve reverter ao funcionário. No caso da mulher, torna-se mais revoltante porque as condições eram mais desumanas”, anotou Figueiredo em uma das cerca de 5 mil páginas remanescentes encontradas e digitalizadas por Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e coordenador do projeto Armazém Memória.
As denúncias de escravidão aparecem nos relatos das “dezenas de testemunhas” e “centenas de documentos” que fizeram parte da apuração pedida pelo Ministério do Interior e motivada por uma Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada em 1963. “O trabalho escravo não era a única forma de exploração. Muito adotada também era a usurpação do produto do trabalho. Os roçados laboriosamente cultivados eram sumariamente arrebatados do miserável sem pagamento de indenização ou satisfação prestada”, ressalta o procurador.
No Paraná, o relatório diz que o responsável pelo posto do SPI em Guarapuava, Iridiano Amarinho de Oliveira, “açoitava os índios para obrigá-los a trabalhar para ele”, usando um rabo de tatu. No mesmo estado o funcionário do Posto Manuel Ribas, Lauro de Souza Bueno, é apontado como “torturador de índios”. Segundo o documento, ele usava, com a anuência do chefe do posto, seu irmão, Raul de Souza Bueno, o tronco. O mecanismo desenvolvido à época em que a escravidão era permitida no país, que prensa o tornozelo da vítima. “Um processo muito doloroso, que se levado ao extremo poderá provocar a fratura do osso, como aconteceu muitas vezes”, destaca o texto.
Sobre essas práticas, escreveu Figueiredo: “o Serviço de Proteção ao Índio degenerou-se a ponto de persegui-los até o extermínio”. Em suas passagens pelos postos do SPI o procurador diz ter encontrado assassinatos de índios, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo, apropriação e desvio de recursos do patrimônio indígena e dilapidação do patrimônio indígena.
Um dos maiores exemplos dessa conduta é o diretor do SPI naqueles anos, o major Luiz de Vinhas Neves. Entre dezenas de irregularidades apontadas pelo relatório, Neves é acusado de ter firmado, em proveito próprio, um contrato de exploração de cassiterita em Rondônia e ter usado o trabalho de índios na mineração.
Na jurisdição do atual Mato Grosso do Sul, Flávio de Abreu não só escravizava os índios no posto sob seu comando, como os usava como moeda de troca. De acordo com os relatos colhidos no documento, Flávio “entregou a índia bororo de nome Rosa ao indivíduo por nome Seabra, em paga do trabalho de Seabra na confecção de um fogão de barro”. “O pai da índia fez reclamações ao sr. Flávio sobre a entrega de sua filha ao indivíduo Seabra. Em virtude dessa reclamação o senhor Flávio Abreu mandou surrar o reclamante”, completa o texto.
Após enumerar torturas e espoliações, em uma das suas observações Figueiredo destaca que caso pudessem usufruir de seu patrimônio, os povos indígenas provavelmente teriam uma vida de fartura.“O patrimônio indígena é fabuloso. As suas rendas alcançariam milhões de cruzeiros novos se bem administrados. Não requereria um centavo sequer de ajuda governamental e o índio viveria rico e saudável em seus vastos domínios”.
Membro da Comissão Nacional da Verdade, responsável por coordenar a apuração das denúncias sobre violações aos direitos indígenas entre 1946 e 1988, a psicanalista Maria Rita Kehl informou que a comissão vai analisar todas as denúncias e fatos narrados no chamado Relatório Figueiredo
Edição: Denise Griesinger
Reportagem de Daniel Mello, da Agência Brasil, publicada pelo EcoDebate, 26/04/2013
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