Evangelho de Lucas: história, Jerusalém e salvação, artigo de Gilvander Luís Moreira
Evangelho de Lucas: história, Jerusalém e salvação.
Gilvander Luís Moreira1
Que visão o Evangelho de Lucas apresenta de história, Jerusalém e salvação?
Teologia da História em Lucas.
Analisando atentamente o terceiro evangelho da Bíblica e os Atos dos Apóstolos percebemos que há um plano global subjacente à obra lucana. Usando a linguagem de Conzelmann, que divide a história da libertação-salvação em três períodos,2 podemos dizer que o Primeiro Testamentonarra o caminho de Israel, que é o tempo das promessas.3O evangelho de Lucas narra o caminho de Jesus, que é o tempo da realização. Podemos deduzir isso pela ênfase que se dá ao “Hoje”: “Hoje se cumpre…”.4 E os Atos dos Apóstolos narra o caminho das Igrejas, que é o tempo do Espírito Santo.
Lucas elabora uma teologia da história que tem suas raízes no passado, chega ao auge em Jesus, continua nas Igrejas5 pela ação do Espírito Santo e consuma-se na parusia. A manifestação de Jesus não é algo que acontecerá no fim dos tempos, como se ele permanecesse ausente; é antes a manifestação gloriosa de um Jesus que sempre esteve presente nas comunidades, como aparece no evangelho de Mateus (Mt 28,20). Com a ascensão, “Jesus não foi embora”, mas foi exaltado, glorificado, legitimado. Jesus “vai, mas não vai”; ausente no aspecto físico, continua presente por meio do Espírito Santo. O corpo das pessoas que aderem ao seu projeto passa a ser o “corpo de Cristo”, movido pelo Espírito de Jesus.6 Para Lucas, Deus agiu na história da primeira comunidade cristã da mesma forma como agiu em Jesus. Este era enviado de Deus e os cristãos também o são. Por conseqüência, concluímos que todos somos convidados a “encarnar a realidade” de que também somos enviados de Deus para a libertação de todos e de tudo. Ignacio Ellacuría dizia que dom Oscar Romero foi (e continua sendo, mesmo depois da morte, como ressuscitado) um enviado de Deus para libertar o seu povo. Oscar Romero dizia aos cristãos perseguidos pela ditadura militar em El Salvador: “Vocês são Jesus Cristo, aqui e agora. Vocês são enviados de Deus para salvar e libertar o nosso povo”.
A parusia começou na encarnação, vida e ressurreição de Jesus e será completada quando ele terminar de voltar e não quando começar a voltar.
Jerusalém em Lucas.
O evangelho de Lucas é o único dos quatro evangelhos da Bíblia que começa e termina em Jerusalém, precisamente no templo. Imediatamente depois do prólogo geral à obra lucana (Lc 1,1-4), a primeira cena se desenvolve “no santuário do Senhor” (Lc 1,5-23). Depois da ressurreição, os onze voltam para o templo em Jerusalém (Lc 24,53). Os pais de Jesus o levam duas vezes ao templo (Lc 2,22.42). O episódio de Jesus aos doze anos conversando com os doutores no templo é prefiguração do ensinamento futuro de Jesus no templo (Lc 19,47).
Lucas apresenta as três tentações em uma ordem diferente do evangelho de Mateus. Este inicia apresentando a tentação da transformação de pedras em pão (primeira tentação), do jogar-se do pináculo do templo e ser salvo pelos anjos (segunda tentação) e a tentação de contemplar em uma alta montanha os reinos com todo o esplendor (terceira tentação) (Mt 4,1-11 e Lc 4,1-13). Para Mateus é importante colocar a última tentação no cume de uma montanha, pois o evangelho está sendo dirigido a comunidades oriundas principalmente do meio judaico, onde “montanha” é, por excelência, o local do encontro do ser humano com Deus e consigo mesmo. Assim, Mateus enfatiza Jesus, em profunda intimidade com o Pai, na montanha, superando as tentações.
No evangelho de Lucas, a primeira tentação se dá no deserto, onde Jesus é tentado a transformar pedra em pão. A segunda, acontece na montanha, em que contempla os reinos. A terceira, acontece no pináculo do templo, onde Jesus é tentado a saltar dali para ser salvo pelos anjos. Há uma progressão nas tentações. O clímax do confronto entre Satanás e Jesus aconteceu precisamente em Jerusalém, onde acontecerá a execução do Justo com a pena de morte, a pena capital. Assim, a cena na qual Jesus se encontra sobre o pináculo da “casa de seu Pai” se torna muito eloqüente, porque no evangelho de Lucas, “Jerusalém” é o ponto de chegada de Jesus para realizar a obra (Lc 17,11; Lc 19,28-38). Para as primeiras comunidades cristãs, “Jerusalém” é o ponto de partida para a missão (Lc 24,52). Jerusalém tem uma importância particular, pois é a cidade do “destino” final de Jesus e de onde se irradia a libertação-salvação para todo o gênero humano. Jesus caminha para Jerusalém como se buscasse alcançar uma meta (Lc 13,22). Lucas valoriza “Jerusalém” não somente como lugar físico, mas primordialmente como lugar teológico que representa a “cidade de Davi”,7 o monte Sião, de onde Deus legisla. Lucas se refere a “Jerusalém” com o termo grego Ierousalëm, designação de Jerusalém não como lugar geográfico, mas de lugar sagrado do judaísmo.
Salvação em Lucas.
A salvação acontece com base nas entranhas da história da humanidade. Deus, pela encarnação que culmina em Jesus de Nazaré, assume as entranhas humanas para salvar todos e tudo. Infelizmente já faz parte do senso comum que salvação se refere apenas à “alma”. Perdeu-se a relação do corpo com a salvação. Diante disso é bom recordar que a palavra “salvação”, no seu sentido original, quer dizer livrar o ser humano de algum mal físico, moral ou político, ou de algum cataclismo cósmico; isso supõe resgate da integridade. Com referência ao acontecimento Cristo, resgatar a integridade do ser humano significa restabelecer sua relação inata com Deus, com os outros, com toda a criação e consigo mesmo. Não podemos esquecer que o credo cristão afirma a convicção na ressurreição da “carne”, não apenas da “alma”.
Salvação é um dos efeitos mais importantes do acontecimento Cristo, pelo menos na mentalidade de Lucas, no evangelho e em Atos dos Apóstolos. Ele é o único dos evangelistas sinóticos a chamar Jesus de “Salvador”.8 O melhor resumo que mostra o que é salvação é: “O filho do Homem veio buscar o que estava perdido e salvá-lo” (Lc 19,10).
Não podemos continuar pensando, segundo o senso comum, que salvação se refere somente a algo pós-morte e que não tem nada a ver com libertações na história. Na Bíblia, as categorias salvação e libertação são “equivalentes” e complementares, mesmo que alguns textos possam enfatizar mais a ideia de salvação, e outros, mais a ideia de libertação. Por exemplo, etimologicamente o nome Josué significa “o Senhor é libertação-salvação”(Nm 11,28); Josué é a versão hebraica do nome de Jesus. Este é versão aramaica. Logo, etimologicamente, Jesus é o novo Josué, aquele que liberta e salva, em um processo interdependente. Josué conduziu o povo na conquista da terra prometida. Jesus conduz o povo para a construção do Reino de Deus no mundo. Outro exemplo: o nome Oséias significa libertação-salvação (Nm 13,8).O profeta Oséias combateu com veemência a idolatria, libertando e salvando o povo.
Libertação-salvação faz parte do campo semântico dos verbos libertar, salvar, sarar, curar, resgatar, perdoar, reerguer, redimir, integrar, recuperar, incluir, apoiar e outros similares. Isso indica a inter-relação existente entre libertar e salvar: são duas faces da mesma medalha; inseparáveis como carne e unha. “Salvação” que não implica libertação real, concreta e corporal das pessoas é pseudo-salvação.
Lucas não quer, em momento algum, espiritualizar a proposta do Evangelho de Jesus Cristo, mas inseri-la nos processos orgânicos de libertação. A salvação que Lucas defende não é aparente, como diz o povo: “Peruca em cabeça de careca”.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 01 de abril de 2013.
1 Gilvander Luís Moreira, Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais; Colaborador e Articulista do Portal EcoDebate – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis – facebook: Gilvander Moreira
2Conzelmann sugere três períodos para a história da salvação:
O tempo de Israel compreende o Primeiro Testamento, da criação do mundo até João Batista, inclusive (Lc 1,5–3,1) – (tempo do Pai).
O tempo de Jesus compreende o Segundo Testamento, do início do ministério público de Jesus de Nazaré até a sua ascensão (Lc 3,2–24,51) – (tempo do Filho).
O tempo da(s) Igreja(s), sob a perseguição, vai da ascensão até a parusia (Lc 24,52-53; At 1,3–28,31) (tempo do Espírito Santo).
Três passagens em Lc fundamentam esta divisão:
Em Lc 16,16 aparece uma divisão em dois períodos: a lei e os profetas, até João. Daí em diante é anunciada a Boa-Nova do Reino de Deus, com a indicação do tempo de Jesus (cf. Lc 4,21).
Em Lc 22,35-37 Jesus adverte aos doze para a hora em que terão de procurar bolsas, alforjes, mantos e espadas. No “tempo de Jesus” não havia necessidade de todas essas provisões, mas no “tempo da(s) Igreja(s) perseguidas (ecclesia pressa) a situação é muito diferente, profundamente conflitiva: repreensão, opressão e repressão eram “pão de cada dia” experimentado pelas comunidades cristãs (At 8,1b.4; 11,19).
Em Lc 4,21 com o “hoje se cumpre…”.
3Cf. Lc 1,16.54.68.80; 2,25.32.34; 4,25.27; 7,9; 22,30; 24,21.
4Cf. Lc 2,11; 4,21; 5,26; 12,28; 13,32.33; 19,5.9.42; 22,34.61; 23,43.
5Colocamos Igreja no plural também para recordar que nasceram, organizaram-se e cresceram diversas Igrejas — Jerusalém, Samaria, Antioquia, Roma, Corinto, Tessalônica, Filipos, Éfeso, de Pérgamo, Filadélfia, Gálatas, Colossos, de Tiatira, Esmirna, Sardes, Laodicéia etc. Logo, não podemos pensar em uma única Igreja cristã primitiva, mas em uma grande diversidade de Igrejas cristãs primitivas que formavam uma grande unidade com base na grande diversidade entre elas.
6Cf. At 1,2.5.8.16; 2,4.17.18; 2,33.38; 4,8.25.31; 5,3.9.32; 6,6.5.10; 7,51.55; 8,15.17.18.19.29.39; 9,17.31; 10,19.38.44.45.47; 11,12.15.16.24.28; 13,2.4.9.52; 15,8.28; 16,6.7; 19,2.6; 20,23.28; 21,4.11; 28,25.
7Davi é recordado como um dos três reis bons, principalmente pela sua primeira fase. Ele uniu e organizou marginalizados e excluídos da sociedade e implementou um governo popular e democrático. A expressão “cidade de Davi” quer recordar o Davi da primeira fase, não o Davi corrompido pelo poder, no final do seu reinado.
8Em grego, sõtër, cf. Lc 2,11. Em Atos dos Apóstolos Lucas se refere a Jesus como Salvador mais duas vezes: At 5,31; 13,23.
EcoDebate, 02/04/2013
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