Energia, entropia, ecologia, economia
Não foi o alarme da mudança climática, nem o encontro Eco-92, no Rio, que despertou nos economistas – alguns deles, pelo menos – a noção de que a economia humana se desenrola num planeta real, de recursos finitos. Já na década de 1960, o romeno Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994) advertiu para a urgência de enriquecer a economia com noções físicas como energia e entropia. Economista com formação de matemático e estatístico, admirado por Joseph Schumpeter e Paul Samuelson e cotado para o Prêmio Nobel por seus trabalhos sobre a teoria do consumidor e a economia agrária, Georgescu-Roegen se dedicou a repensar o modo como a economia pensa a produção. Mas a virada intelectual selou o destino do romeno entre seus pares: até então admirado, ele teve de enfrentar o ostracismo.
A reportagem é de Diego Viana, publicada no jornal Valor, 15-03-2013.
Hoje, quando a sustentabilidade se torna pouco a pouco incontornável nas discussões sobre a economia mundial, as ideias de Georgescu-Roegen começam a encontrar um pouco mais de ressonância. Na quarta-feira, será lançado em São Paulo o livro O Decrescimento: Entropia, Ecologia, Economia, com artigos que expõem as ideias pioneiras do matemático romeno. Organizado pelo economista e professor da Universidade de São Paulo (USP) José Eli da Veiga, o lançamento terá a presença de dois economistas que conviveram com Georgescu-Roegen: o ex-ministro da Fazenda e do Planejamento Delfim Netto e o ex-presidente do Banco Central Ibrahim Eris.
Formado em matemática na Universidade de Bucareste e especializado em estatística na França, Georgescu-Roegen se interessou por economia quando foi professor em Harvard, entre 1934 e 1936. Sua convivência com Schumpeter, um dos maiores economistas do século XX, teria resultado em um livro a quatro mãos, se não tivesse decidido retornar à Romênia com a justificativa de que devia algo a seu país. Mais tarde, ao fim da Segunda Guerra, tornou-se professor na Universidade Vanderbilt.
Em 1966, publicou o livro Analytical Economics: Issues and Problems, centrado na teoria do consumidor e elogiado em profusão por Samuelson, outro dos maiores economistas de seu tempo, com epítetos inequívocos como “professor dos professores” e “economista dos economistas”.
A causa do ostracismo de Georgescu-Roegen – encaminhado pelo próprio Samuelson, que fez desaparecer o nome do romeno de seu ubíquo manual, “Economics”, a partir da décima edição – foi seu interesse intelectual por uma área de estudos até então considerada exotérica, para não dizer absurda: a ecologia. Ao se dar conta de que o processo produtivo e o consumo não são mera função do trabalho, do capital e de insumos, mas uma realidade física, química e social, o até então admirado romeno selou sua sorte no clã dos economistas. “Ele não foi só esquecido. Foi banido. Ele sofreu uma espécie de censura”, diz Veiga.
Segundo o economista da USP, a gota d’água foi a reunião da associação dos economistas americanos (American Economic Association) de 1973. “É como o conclave do Vaticano”, diz Veiga. Nos meses anteriores, fora publicado o manifesto “Rumo a uma Economia Humana”, escrito por membros da organização Fellowship of Reconciliation reunidos em um grupo de trabalho intitulado “Dai Dong”, sob orientação do pacifista americano Alfred Hassler. “Hoje, esse manifesto me parece até ingênuo, mas na época foi considerado radicalmente ecologista ao mencionar ameaças aos ecossistemas”, diz Veiga.
Na reunião dos economistas americanos, de que Georgescu-Roegen participava todos os anos, o matemático romeno propôs que a associação assinasse e apoiasse o manifesto. “Criou-se uma confusão, porque os economistas eram contra e acabaram encontrando uma solução de compromisso: em vez de assinar e apoiar, a associação publicou o texto, mas como anexo e com um tamanho de letra praticamente ilegível.”
Até então respeitado por seus colegas por sua capacidade superior de aplicar a matemática às funções de consumo e produção, Georgescu-Roegen percebeu que sua linha de pensamento era heterodoxa demais para aquele ambiente intelectual. “Georgescu foi bloqueado como são bloqueados todos aqueles que não se integram no mainstream”, afirma Delfim Netto. “Marx é bloqueado, por exemplo. Diz-se que Georgescu não ganhou um Prêmio Nobel porque não criou uma ‘georgescologia’, não fez escola. Mas ele tinha nível para ganhar o Nobel, sobretudo em comparação com as bobagens que ganham hoje.”
Com o avanço progressivo da matematização na teoria econômica, os economistas se puseram a perseguir a ambição de produzir teses tão exatas e claras quanto as da física. Mas os economistas têm de enfrentar uma dificuldade que não atinge os físicos. “Acontece que nossos ‘átomos’ pensam”, argumenta Delfim Netto. “Por isso, em economia, o passado não contém o futuro e não é capaz de explicá-lo. Na física, o passado contém o futuro. É por isso que nenhum modelo econômico funciona de verdade.”
Outro problema que afasta a economia de atingir seu objetivo de perfeição quantitativa, segundo Veiga, é a insistência numa concepção mecanicista e equilibrada do funcionamento do ciclo produtivo. “Com toda sua formação científica, Georgescu-Roegen ficou muito espantado ao começar a estudar a teoria do produtor e descobrir que os conceitos que os economistas tomavam emprestados da física ainda eram todos newtonianos”, diz Veiga. A essa altura, a física já tinha abandonado suas concepções de equilíbrio mecanicista, que ainda orientava as pesquisas econômicas. Já em seu livro de 1966, Georgescu-Roegen se mostrava inconformado com aquilo que Veiga nomeia o “progressivo distanciamento da teoria econômica dos fundamentos básicos das ciências naturais”. Dentre os fundamentos em questão, Veiga cita o campo físico da termodinâmica e o evolucionismo.
Suas preocupações epistemológicas heterodoxas puseram Georgescu-Roegen entre os primeiros economistas a buscar um fundamento para a economia que levasse em conta o fato de que o próprio ato de produzir é transformador, tanto para a matéria-prima quanto para o maquinário e para as sociedades em que tem lugar. Com isso, seu pensamento econômico se tornou progressivamente evolucionário. Até hoje, análises evolucionárias da economia, como as de Geoffrey Hodgson, encontram pouca ressonância na profissão, embora Veiga se refira às ideias do economista britânico, editor da revista Journal of Institutional Economics, como “o futuro da economia”.
Para Delfim, a redescoberta das teses de Georgescu-Roegen é um caminho imposto pelas circunstâncias de um mundo que começa a encontrar seus limites físicos. “A concepção de Georgescu está se impondo naturalmente. Foi homem que antecipou em pelo menos 50, 60 anos essa visão de mundo”, diz. “Mas não foi só intuitivo. Construiu um dispositivo analítico que levava a reconhecer os fatos: o desenvolvimento não é um fenômeno econômico, mas termodinâmico. Portanto, obedece às leis da termodinâmica.”
Ao lado das mudanças no processo produtivo, o economista romeno passou a argumentar que a produção não pode ser entendida como um sistema fechado, capaz de funcionar indefinidamente a partir de seus princípios, sem levar em consideração o canal de entrada de recursos. Se fosse assim, a economia funcionaria como um “moto-perpétuo”, a máquina capaz de trabalhar eternamente, sem o acréscimo de energia exterior. Mas isso seria absurdo, porque exigiria o esquecimento da segunda lei da termodinâmica, segundo a qual todo sistema caminha na direção do equilíbrio, isto é, da máxima entropia, e deixa de produzir qualquer modificação.
Georgescu-Roegen se esforça por introduzir o tempo nas equações de produção, propõe a necessidade de entender diferenças qualitativas nas funções de capital e trabalho, em vez de ater-se às proporções quantitativas entre um e outro, e termina por afirmar que, em vez de falar em produção, a teoria econômica deveria referir-se a uma transformação. Afinal, o processo de produção econômica consiste em tomar elementos da natureza e transformá-los em mercadorias para o consumo humano, com um gasto concomitante de energia que se degrada necessariamente e é irrecuperável.
Segundo Veiga, o título escolhido pelos organizadores franceses Jacques Grinevald e Ivo Rens para a coletânea de artigos de Georgescu-Roegen não é o ideal. O termo “decrescimento” é infiel às ideias do economista romeno. O termo assumiu um sentido mais político do que propriamente “bioeconômico”, para usar as palavras do romeno. Georgescu-Roegen, no texto “A Energia e os Mitos Econômicos”, escreve – com bastante sarcasmo, na avaliação de Veiga – um programa de nove pontos para chegar a um equilíbrio ambiental e econômico, conforme proposto por economistas ecológicos com quem ele não concordava inteiramente. Esses pontos incluíam generalidades como o fim da guerra e a redução da população, além de propostas como o fim da moeda e a cura da “sede mórbida por engenhocas extravagantes”.
Veiga aponta os limites do pensamento de Georgescu-Roegen, a começar pela ideia de decrescimento, radicalizada por rivais e alunos seus como, respectivamente, Kenneth Boulding e Herman Daly. “Falar em abrir mão do crescimento pode fazer muito sentido na Escandinávia, na Áustria e na Suíça, mas a maior parte do mundo precisa do crescimento econômico, e muito”, afirma.
Paralelamente, o economista romeno cai em armadilha parecida com a de Thomas Malthus, que previu, no século XIX, uma crise alimentar como resultado do crescimento populacional explosivo. “Quando penso no tempo que levaria para que a entropia nos obrigasse a abdicar do crescimento, concluo que seriam séculos”, diz Veiga. “Afinal, a eficiência energética da produção está aumentando muito rapidamente. A intensidade carbono da economia mundial, por exemplo, é muito inferior ao que era há poucas décadas.”
Veiga evoca os conceitos de “descolamento relativo” e “descolamento absoluto” para explicar seu ceticismo com os alarmes de Georgescu-Roegen. Na maior parte do mundo, incluindo a até recentemente “muito suja” China, a produção dos bens exige cada vez menos custo energético, mas o consumo do insumo continua a crescer em termos absolutos porque a economia cresce. No Reino Unido, porém, há indícios de que o consumo energético esteja caindo absolutamente. “É um indício de que a economia está se tornando imaterial, e essa tendência tende a se generalizar”, diz.
O evento em homenagem a Georgescu-Roegen será realizado na FEA-USP, faculdade cujo primeiro programa de pós-graduação em economia ele ajudou a criar, na década de 1960. O economista esteve no Brasil graças ao acordo entre o Ministério da Educação e o Usaid, programa de ajuda econômica do governo dos EUA. Do período passado no Brasil, Georgescu-Roegen levou diversos alunos para doutoramento nos EUA. Lá, o então futuro presidente do Branco Central Ibrahim Eris foi um dos poucos alunos a completar uma tese com o exigente professor.
(Ecodebate, 20/03/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
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