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Artigo

Ecumenismo a partir da Obra Lucana, artigo de Gilvander Luís Moreira

 

artigo

 

Ecumenismo a partir da Obra Lucana

Gilvander Luís Moreira1

[EcoDebate]

Iniciando a reflexão.

Pode parecer anacronismo falar em ecumenismo nas primeiras comunidades cristãs a partir de Atos dos Apóstolos, mas se justifica, pois não existiu somente uma Igreja Primitiva, mas várias Igrejas Primitivas. Várias igrejas foram se constituindo a partir da igreja-mãe de Jerusalém: igrejas da Samaria, de Cesareia, de Antioquia, de Roma, de Corinto, de Tessalônica, de Roma e muitas outras. Igrejas que cultivavam o respeito ao diferente nas suas relações internas e também na sua relação com outras igrejas que, mesmo sendo cristãs, tinham ensinamento e práticas distintas. Assim sendo podemos dizer que segundo a obra de Lucas – Evangelho de Lucas (Lc) e Atos dos Apóstolos (At) -, as primeiras comunidades cristãs, eram, por excelência, ecumênicas. Costuravam uma unidade entre elas com base na diversidade e na pluralidade e regiam-se por um projeto de inclusão, de comunhão, de convivência fraterna, de fração do pão e oração. Em Atos dos Apóstolos há uma valorização da alteridade, do outro. É a partir do outro e, especialmente, do outro que é injustiçado que se analisa a realidade e atua de forma transformante. O Espírito Santo está em nós como está no outro (At 10,44-45).

Identificamos nove posturas ecumênicas nas primeiras comunidades-Igrejas cristãs. Ei-las, abaixo.

  1. Desapego de doutrinas

Ser ecumênico significa desapegar-se de doutrinas e colocar a vida humana – envolvendo também toda a biodiversidade – acima de tudo. Isso aconteceu na vivência dos primeiros cristãos e cristãs. O apóstolo Pedro, segundo Atos dos Apóstolos, teve a grandeza de se desvencilhar-se das doutrinas da pureza e da impureza. Ele se desinstalou de Jerusalém, onde nasceu e se desenvolveu a comunidade-mãe, e partiu para a missão no meio dos excluídos, dos discriminados. Conviveu por algum tempo com Simão, seu xará, e, acima de tudo, como profissão, era um curtidor de couro, considerado o mais impuro entre os impuros. Em um bonito processo de conversão, Pedro foi ao encontro do oficial romano Cornélio, mas teve de justificar sua conduta em Jerusalém (At 11,1-18). Pedro arcou com as conseqüências da sua postura aberta e inculturada. Voltando a Jerusalém, “foi encostado na parede”. Dois grupos se enfrentaram: de um lado, os apóstolos e irmãos da Judeia, os da circuncisão, censuravam Pedro por ter entrado em casa de incircuncisos e comido com eles (At 11,3). Do outro lado, o próprio Pedro com a experiência do Pentecostes dos gentios (At 10,44.47) no coração e na mente (At 11,17).

Pedro teve de partilhar a experiência de Deus vivida no meio dos gentios e excluídos. Lucas registra que a conversão de Pedro contribuiu para a conversão da Igreja-mãe, a de Jerusalém (At 11,4-18). Por três vezes Pedro ouviu: “Não chame de impuro o que Deus purificou” (At 11,9); e por três vezes esse acontecimento é narrado em Atos dos Apóstolos. Isso mostra a interpretação rigorosa que alguns faziam das leis, e aponta a barreira que devia ser superada. As primeiras comunidades cristãs sofriam na pele as conseqüências dramáticas da lei da pureza e da impureza. “Um povo inteiro” era marginalizado e excluído. O Espírito de Deus aponta insistentemente em outra direção: para Deus não existe puro e impuro. Ele ama a todos, não exclui ninguém.

Provavelmente já havia em Jerusalém um grupo mais radical e outro mais moderado. O motivo da reprovação não é o batismo, mas a entrada de Pedro em casa de uma pessoa pagã e a refeição comum de ambos. Em sua defesa, Pedro acentua a iniciativa divina, e os de Jerusalém acabam por abrir-se à ação do Espírito no meio dos excluídos (At 11,18).

O episódio de Cornélio ocupa um lugar de destaque nos Atos dos Apóstolos: foi uma antecipação da “assembléia de Jerusalém”, em At 15,1-35, e preparou as missões de Paulo (At 15,36–19,20). Cornélio representava o Império Romano e o modo como Lucas achava que as pessoas deviam comportar-se em relação ao império. O oficial romano não debateu, não pôs condições. Pedro falou e ele ouviu atentamente o Evangelho de Jesus Cristo. Para Lucas, não era impossível que os funcionários romanos se convertessem e assim pusessem serviços e estruturas do império à disposição da irradiação da Palavra de Deus, o projeto do evangelho de Jesus Cristo. Com esse exemplo, Lucas espera convencer altos funcionários romanos à fé cristã.

Desapego a doutrinas leva a rompimento e a superação de barreiras. Eis outra característica do ecumenismo segundo o livro de Atos dos Apóstolos.

  1. Rompimento e superação de barreiras

Em Atos, barreiras vão sendo rompidas, uma a uma, até o capítulo 15, no qual se vence a maior de todas: a exigência da circuncisão. A partir de At 15,36, uma vez vencidas as barreiras, as portas para uma evangelização inculturada são escancaradas. Eis algumas das muitas barreiras que são superadas, em parte ou totalmente, segundo Atos dos Apóstolos:

  • A mesa comum — antes um judeu não podia entrar na casa de um pagão e, muito menos, comer com ele. O apóstolo Pedro percorre todos os lugares. Encontra paralíticos e os cura. Permanece vários dias em Jope, hospedado na casa de um curtidor de couro chamado Simão (cf. At 9,32-35.43). Entra na casa de um oficial romano, em Cesareia (At 11,12). Assim, cai por terra a impossibilidade de mesa comum entre judeus e pagãos.
  • A herança de Israel (lei mosaica) — passa a ser de todos e não somente dos judeus. As primeiras comunidades cristãs fazem a experiência segundo a qual Deus não faz discriminação de nenhuma ordem (cf. At 10,15).
  • Templos e sinagogas não são mais os centros sagradose orientadores da vida das comunidades — a missão acontece com base nas casas (oikia, em grego). A casa de Simão, o curtidor de couro (At 9,43); a casa de Cornélio (At 10,1); a casa de Maria, mãe de João Marcos (At 12,12); a casa do procônsul Sérgio Paulo (At 13,7); a casa de Filipe, o evangelista, (At 21,8) etc. De casa em casa, o projeto do movimento de Jesus se irradia da Galileia, passando por Jerusalém, até os confins da terra, a capital do Império Romano.
  • Os pagãos são aceitos nas comunidades cristãs, sem ser circuncidados — O concílio de Jerusalém (cf. At 15,1-35) atesta um salto de qualidade na caminhada das primeiras Igrejas cristãs ao concordar com os clamores da Igreja de Antioquia, igreja de periferia, que advogava a superação da barreira da circuncisão como condição para ser cristão.
  • A lógica e a ideologia do Império Romanovão sendo minadas e corroídas, pela vida organizada em comunidades, e não mais no individualismo — As comunidades cristãs percebem que diante de um império muito poderoso, a melhor estratégia é a infiltração e não o confronto. Como cupim debaixo da ponte, as comunidades cristãs vão solapando a lógica e as estruturas do império.
  • O abismo que separa ricos e pobres ganha uma ponte — assim sendo começa a existir comunicação entre os “grandes e os pequenos”, entre o mundo dos incluídos e o mundo dos excluídos. Com a comunicação afetiva e efetiva, muitos preconceitos, tabus e distanciamentos vão se desmanchando. Nada melhor do que a convivência com os pobres para fazer ruir, com um castelo na areia, preconceitos e tabus.
  • Patriarcalismo e machismo são questionadospela presença e protagonismo das mulheres nas Comunidades Cristãs — são as “Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da primeira hora.2

A partir do encontro de Pedro com Cornélio, cai a barreira entre judeus e não-judeus.

Nos atos do apóstolo Pedro (At 10,1—11,18), temos o relato de duas conversões entrelaçadas e interdependentes: a conversão de Cornélio e de toda a sua casa-comunidade e a conversão de Pedro e de parte da Igreja judaico-cristã de Jerusalém. À primeira vista, o Espírito atuou em Cornélio, mas, observando nas entrelinhas, vemos que o Espírito agiu também e principalmente no apóstolo Pedro. Hoje, o Espírito atua do mesmo modo nos evangelizadores e nos evangelizados. Pedro evangelizava as comunidades judaico-cristãs de Lida e Jope. O Espírito mudou seu programa e o levou onde ele jamais pensava ir.

O rompimento/superação de barreiras convida para a comunhão “total” de vida. Eis outra característica do ecumenismo segundo o livro dos Atos dos Apóstolos.

  1. Comunhão “total” de vida

O ecumenismo nos leva a um sentimento de pertença. Ser ecumênico implica sentir-se elo vivo da grande comunidade de vida, em uma comunhão real e “total”. Para Paulo, e também para Lucas, o que caracteriza a comunidade cristã é uma comunhão “total”: material e espiritual, com participação na mesma mesa. Não basta fraternidade “espiritual” ou de amizade; é preciso também fraternidade econômica,3 política e cultural. Não agradam ao Espírito de Deus pessoas que se encontram para a eucaristia aos domingos, mas que durante a semana oprimem umas às outras. Lucas quer romper as oposições entre grupos e pessoas, entre ricos e pobres, escravos e senhores, judeus e não-judeus, homens e mulheres, trabalhadores e patrões. É ilusória a comunidade na qual uns poucos se banqueteiam e outros passam fome, uns têm casas próprias e outros devem pagar aluguéis caríssimos, uns ganham demais e outros ganham quase nada, uns vivem no luxo e outros sobrevivem do/no lixo; uns detêm o poder4 e outros são subjugados.

A comunhão eclesial é, antes de tudo, uma comunhão material, corporal: as pessoas devem estar lado a lado, comer a mesma comida, partilhar alegrias e angústias. Uma missão direcionada aos não-cristãos implica aproximação das relações sociais com gente considerada excluída, impura.

Olhando a com base nos(as) excluídos(as) das nossas Igrejas, constatamos com pesar que a lei do puro e do impuro, de modo disfarçado, continua em plena vigência. O que pensar dos casais não casados na Igreja que encontram muitas barreiras para batizar seus filhos? O que pensar das viúvas que reencontram o amor, mas não podem casar-se porque o homem é separado? O que pensar da proibição católica de preservativos quando o vírus HIV assola um número assustador de pessoas? O que pensar de 75% das comunidades cristãs católicas, entre as quais as Comunidades Eclesiais de Base, que não têm o direito sagrado de participar da eucaristia dominical? O que pensar das pessoas divorciadas que são excluídas da mesa eucarística. E muitas outras questões. Tudo isso é, na prática, apego à lei da pureza, o que pisa na dignidade humana. Usar o nome de Deus, um discurso religioso para justificar práticas discriminatórias é terrorismo religioso, algo execrável. Feliz quem denuncia os moralismos e os fundamentalismos.

A comunhão “total” de vida conduz à superação de preconceitos.

  1. Superação de preconceitos

Pedro, “o apóstolo dos circuncisos” (Gl 2,7), cura o paralítico Eneias (At 9,32-35) em Lida, reanima Tabita (At 9,36-42) em Jope e legitima Simão, um curtidor de couro (At 9,43). Tudo isso é descrito em At 9,32-43. Tais sinais, ao romper as barreiras da paralisia, da doença-morte e das profissões impuras, mostram a sintonia total entre Jesus e Pedro. Jesus continua agindo por meio de Pedro. Tal Jesus, tal Pedro. A cura de Eneias lembra Jesus curando um paralítico (Mc 2,1-12), e o episódio da reanimação de Tabita atualiza o relato da reanimação da filha de Jairo (Mc 5,36-43) e evoca também os relatos de reanimação do ciclo de Elias e Eliseu (1Rs 17,17-24; 2Rs 4,18-37).

Em Jope, Pedro fica na casa do curtidor de couro chamado Simão (9,43). A profissão de curtidor era considerada pelos judeus a mais impura das profissões e uma pessoa impura era excluída da convivência social e religiosa. A comunidade onde Pedro se hospeda não se submete aos critérios rigorosos de pureza dos doutores da lei. O cristianismo espalhou-se principalmente entre as categorias de pessoas modestas, que eram, mais ou menos, marginalizadas pela lei, além de penetrar na classe média, aberta à novidade.

Eneias, Tabita e Simão são pessoas que simbolicamente representam as comunidades judaico-cristãs. Algumas estavam paralisadas; outras estavam enfraquecidas a ponto de morrer; e outras estavam sendo marginalizadas pelo judaísmo oficial. Pedro, com a mensagem de Jesus, chega para revitalizar, para fortalecer e para libertar essas comunidades.

A superação de preconceitos estimula a abertura para o novo, o diferente, o excluído.

  1. Abertura para o novo, o diferente, o excluído (At 6,1-7)

Ser ecumênico implica abrir-se ao novo que não é apenas novidade, ao diferente que tem direito de ser diferente. Os Helenistas eram judeus cristãos de língua e cultura grega, residentes em Jerusalém, provavelmente originários da diáspora. Tratava-se de um grupo profético, crítico em relação à lei e ao templo; foram também os perseguidos e dispersados no dia da grande perseguição contra a Igreja de Jerusalém, depois do martírio de Estevão (At 8,2).

O relato sobre as viúvas no livro dos Atos dos Apóstolos (At 6,1-7) é um tanto incongruente, pois trata-se de um problema de desleixo não para com todas as viúvas, mas somente para com as dos helenistas. Trata-se não de um problema prático de falta de servidores das mesas, mas de um problema de discriminação dos helenistas; portanto, não sustenta também a oposição entre diakonía, serviço das mesas (v. 2) e a diakonía da Palavra (v. 4). De At 6 a At 15, os helenistas não servem às mesas, mas dedicam-se basicamente ao serviço da Palavra. Os sete helenistas fazem, na prática, exatamente o que os apóstolos faziam: evangelizar de modo profético. Em nenhum momento da narração afirma-se explicitamente que os sete são diákonos (utiliza-se somente o verbo servir, diakoneo,em grego) e o substantivo serviço (diakonía, em grego).

Duas soluções se apresentam para explicar as contradições de At 6,1-7. Em primeiro lugar, é possível que Lucas tenha unido dois fatos ou tradições históricas diferentes: uma mais antiga, referente ao problema prático do serviço às mesas, e outra posterior, a respeito do conflito entre o grupo dos hebreus e o dos helenistas. Em segundo lugar, os sete helenistas, no começo, tinham sido escolhidos realmente para servir às mesas. No entanto, em pouco tempo, essa diakonía das mesas levou-os para além dessa tarefa prática, para o serviço profético da Palavra. Segundo essa hipótese, pode-se dizer que os sete helenistas descobriram sua vocação profética a partir do serviço quotidiano aos excluídos da comunidade. Lucas nos mostra que quando os conflitos são resolvidos de forma correta e em sintonia com o Espírito do Deus da vida, toda a Igreja sai fortalecida.

Abertura para o novo, o diferente, o excluído, deságua na não-discriminação de ninguém. Eis outra característica do ecumenismo segundo o livro de Atos dos Apóstolos.

  1. Não discriminar ninguém

Segundo At 10, Pedro tem uma visão na qual se recusa comer alimentos impuros e parece desconhecer a declaração de Jesus de que todos os alimentos são puros (Mc 7,17-23). Pedro agiu como judeu de estrita observância das regras alimentares. O sentido dessa visão só vai ser esclarecido em At 10,28, quando uma voz, em outra visão, diz a Pedro que todos os alimentos são puros. Lucas menciona Gen 1,24; 6,20 como se dissesse: “Mas no início não era assim”, pois Deus criou tudo com a mesma dignidadee não fez distinção entre puro e impuro. Por meio da visão de Pedro, Lucas esclareceu duas posturas diferentes diante dos alimentos e diante das pessoas: “Judeu-cristãos podem comer de tudo, pois nenhum alimento é impuro”; “todas as pessoas são iguais”. Com base nesse esclarecimento, judeu-cristãos superam o problema cultural de não poder sentar à mesa, com gentios, para comer. Jesus teve a grandeza de ultrapassar limites culturais e quem agir como ele — entrando nas casas dos não-judeus e comendo com eles — prestar-lhe-á homenagem e agradará “aos céus” (At 10,16).

Enquanto Pedro estava ainda perplexo, os enviados de Cornélio chegaram e o convidaram a ir à casa do centurião para ser ouvido (At 10,17-23). A ordem para acompanhar os enviados veio do Espírito Santo (At 10,19-20). Aqui aparece um elemento novo: Pedro foi convidado a ir à casa de Cornélio para ser ouvido, não para ser investigado pela sua prática, o que seria mais natural, pois Cornélio era um oficial militar do império.

Pedro veio de Jope acompanhado por seis irmãos (At 10,11-14). Cornélio apareceu acompanhado por toda a sua casa-comunidade. São duas comunidades, cada uma com sua liderança, encontrando-se e é Pedro quem faz a conexão entre elas.

Somente quando entrou na casa de Cornélio é que Pedro entendeu o significado da visão que teve anteriormente: ele referiu-se à lei judaica, que proíbe um judeu de juntar-se a um estrangeiro e entrar em sua casa, e ressaltou a ordem divina de não chamar de profano ou de impuro nenhuma pessoa (At 10,28). O discurso de Pedro mostrou sua mudança de atitude: Deus não faz discriminação de pessoas,5 o importante é a prática da justiça (At 10,34-35). O discurso de Pedro é interrompido pela descida do Espírito Santo, que paira6 sobre todos os que ouviam a Palavra (At 10,44). Faíscas de Deus saem do discurso de Pedro. Os circuncisos, que vieram com Pedro, ficam atônitos ao ver que os gentios recebem o Espírito Santo do mesmo modo como a comunidade de Jerusalém o recebeu. À ordem de Pedro para que todos sejam batizados, nasce a primeira comunidade cristã gentia (At 10,24-48).

A atitude de não discriminar ninguém é caminho que estabelece a ajuda mútua e a solidariedade com base nas necessidades. Passa pelo diálogo que pressupõe amor ao outro, fé no outro e humildade. Eis outra característica do ecumenismo segundo o livro dos Atos dos Apóstolos.

  1. Ajuda mútua e solidariedade conforme as necessidades

Em At 11,28, o profeta Ágabo escutou um “surrurro-cochicho” de Deus, analisou criticamente a realidade e advertiu: “Virá uma grande fome sobre toda a Terra”. Sensibilizada pela fome dos “santos”7 de Jerusalém, a comunidade cristã de Antioquia enviou-lhes recursos8 por meio de Barnabé e Paulo, solidarizando-se com eles nos momentos de fome. Aqui temos um primeiro exemplo de “ajuda intereclesial”, isto é, Igrejas que dão as mãos considerando-se Igrejas-irmãs.

Lucas legitimou a Igreja de Antioquia, sem desprezar a Igreja de Jerusalém. As duas são necessárias: uma para assegurar a continuidade com Israel e a outra para assegurar a missão aos gentios. Mas ambas são convidadas a pensar e agir a partir dos oprimidos. A existência dos diversos modelos de Igreja no cristianismo originário desafia as nossas Igrejas: devemos construir comunidades que sejam comunhão de Igrejas, comunhão de diferentes modelos eclesiais, uma Igreja que seja comunhão de comunidades.

  1. Princípios ecumênicos nas primeiras comunidades cristãs

Todos são iguais diante de Deus (Mc 7,24-30; Lc 7,1-10; 13,22-30). A lei já ensinava: “Deus não faz acepção de pessoas” (Dt 10,17). Paulo assumiu esse ensinamento na carta aos Gálatas (Gl 2,6; 3,28), afirmando que na comunidade, após o batismo, que é igual para todos, não pode haver diferença entre judeus e gregos (preconceitos de raça, de origem, de família ou de tradição), entre escravo e livre (preconceitos econômicos, profissionais ou sociais), entre homem e mulher (preconceitos sexistas ou de gênero). Lucas se refere ao mesmo ensinamento em At 10,34.

O Espírito Santo está em todos e em tudo, permeia e perpassa tudo. Todos nós somos irmãos e irmãs. As comunidades se organizam de acordo com os excluídos e as casas. A vida de todos e de tudo é o valor maior. Ensinamento dos enviados de Deus, os apóstolos, não os do império. A vida do povo é a melhor escola.

Livre e libertador, o Espírito de Deus é condutor do processo de abertura para atender às diferentes necessidades.

Nos Atos dos Apóstolos temos estas características de universalidade: a) de Pessoas: Pedro e Paulo, Barnabé, muitas mulheres); b) de Igrejas: de Jerusalém, de Samaria, de Antioquia; d) de Regiões: Judéia (Jerusalém) e Síria (Antioquia); e) de Classes sociais: ricos e pobres; f) de Religiões: judeus e pagãos; g) de Gênero: homem e mulher; e h) de Exercício de poder-serviço.

Para finalizar, não podemos esquecer-nos que em Atos dos Apóstolos encontramos também uma abertura para a inculturação. Eis mais uma característica presente no seio das primeiras comunidades cristãs.

  1. Inculturação

O tema de um santo que viria a este mundo por um nascimento virginal era conhecido tanto em círculos judaicos como em tradições helenísticas e egípcias. Fílon, o filósofo judeu, já considerava o nascimento de Isaac um nascimento virginal e falava da união extática da alma com Deus.9 No culto egípcio do sol, celebrava-se o nascimento desse astro na passagem do dia 24 para o dia 25 de dezembro e a comunidade assim se manifestava: “A virgem pariu; a luz vem surgindo”.10 O rei do Egito — assim imaginava-se — era gerado por Deus. Todos esses elementos, egípcios e helenísticos, já estavam presentes no judaísmo. Lucas, pois, valeu-se de tradições judaicas, e respondeu também às aspirações dos gregos. Com a sua narrativa da anunciação, o evangelista soube tornar compreensível a virgindade – teológica e não física, obviamente – da mãe do Messias, a grandeza desse Messias como Filho de Deus, sua realeza eterna e sua geração pelo Espírito Santo.11 Assim como o solstício do verão segue o do inverno em uma distância de seis meses, assim Jesus nasce seis meses depois do profeta João Batista. Com ele, a luz da graça divina brilha na friagem do nosso mundo. Hoje, muitos teólogos pedem um diálogo entre as diversas religiões. Lucas já fez isso, no seu tempo, de forma muito sensata. Com as tradições de diversas correntes religiosas como pano de fundo, ele formulou a mensagem do mistério de Jesus de tal maneira que pessoas de todas as culturas religiosas podem entender o que, em Jesus, Deus lhes concedeu.

Diálogo inter-religioso verdadeiro — no nível tanto pequeno quanto grande — respeita as identidades de pessoas e grupos e, cada vez mais, é condição necessária” para uma convivência com qualidade e plenitude.

Hoje há um esforço de caminhada inter-religiosa entre várias Igrejas e religiões, mas há obstáculos que entravam esse processo.

Enfim, com Hans Kung afirmamos que não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões. Entre nós acrescentamos, também paz entre as igrejas. Bom será se convivermos a partir de uma ética mínima. Nessa perspectiva o ecumenismo tem muito a nos inspirar.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 04 de março de 2013.

1 Gilvander Luís Moreira: Frei e padre carmelita; bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina, em Minas Gerais; Articulista do Portal EcoDebate e mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br –www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis – facebook: Gilvander Moreira

2Cf. At 16,1.11-18.40; 17,4.12.34; 18,1; 21,5.9; 22,4; 23,16; 24,24; 25,13.23; 26,30.

3Dom Moacyr Grechi, ao investigar denúncias de torturas de trabalhadores rurais bóias-frias, disse: “Quero uma reunião somente com os trabalhadores, pois junto com os patrões eles não estarão livres para dizer a verdade.”

4Uma Igreja que se apega ao poder e casa com ele troca o Evangelho por uma aliança com um projeto satânico.

5São Tiago nos alerta que Deus não faz distinção de pessoas, mas faz opção pelos pobres. Não é tolerável “ricos” discriminarem “pobres” (Tg 2,1-9).

6Podemos perguntar: “Como o Espírito desceu…?” Certamente não foi de uma forma mágica. O certo é que “da mesma forma” que o Espírito agia nos primeiros cristãos continua agindo hoje no meio do povo. Um dia eu perguntei a uma religiosa: “Por que você se tornou freira?” Ela me respondeu imediatamente: “Deus me chamou!” Eu insisti: “Mas como?” Ela desconversou: “Eu teria que te contar toda a minha vida para você ver Deus me chamando, mas o mais importante é você acreditar que Deus me chamou para uma missão”. Assim também o Espírito de Deus continua agindo de mil e uma formas. Por exemplo, no 10º Intereclesial das CEBs em Ilhéus, BA, em julho de 2000, vivemos uma semana de um grande Pentecostes. Algo parecido aconteceu também no 11º Intereclesial, em Ipatinga, MG, em 2005 e no 12º Intereclesial, em Porto Velho, RO, em 2009. Quem estava lá com o coração aberto e desarmado pode ensaiar para falar o que aconteceu, mesmo sabendo que são experiências indescritíveis.

7Assim os cristãos eram chamados.

8Não se trata de esmolas, e sim de serviço entre irmãos ou de solidariedade (cf. Mt 10,45; Lc 22,27; 1Cor 12,5; 2Cor 4,1; 5,18; 6,3).

9Bovon, F. L’Evangile de Luc 1–9. Paris, 1993. p. 66.

10Ibidem, p. 68.

11Ibidem, p. 69.

 

EcoDebate, 05/03/2013


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