Filosofia de praia, artigo de Montserrat Martins
[EcoDebate] Assim como tem a filosofia de boteco, onde se resolvem os grandes problemas do mundo e da humanidade, tem a filosofia de praia, mais modesta e cotidiana. No boteco à noite, depois de uns tragos, se fazem revoluções, se derrubam governos e se dão conselhos a Deus sobre as modificações necessárias na fabricação de novas pessoas. Na praia, lagarteando, as filosofias são mais prosaicas, do tipo “as mentirinhas é que salvam as relações”. Vou entrar no clima e dar o meu pitaco, então. A tese citada se fundamenta em alguns elementos indiscutíveis, a começar pela vaidade, pelas necessidades de apoio aos egos frágeis, pela dificuldade humana em aceitar críticas. Apesar de estar “baseada em fatos reais”, a tese de que as mentiras ajudam nos relacionamentos bem sucedidos é ilusória. Vamos à minha “contra tese” filosófica de praia, então.
Em primeiro lugar, as necessidades mais profundas do ser humano não estão situadas no ego. No ego, onde estão os mecanismos de defesa inconscientes, estão sim as bases para a homeostase da vaidade e para a dificuldade em aceitar críticas, para preservar a auto-imagem e a auto-estima. Agora pense bem, você já viu alguém feliz baseado na própria vaidade? E você já viu alguém feliz vivendo defensivamente, zelando por sua auto-imagem e auto-estima contra ataques alienígenas?
A felicidade se situa no coração, na alma, em lugares bem mais profundos do que o ego. Sim, precisamos do ego no dia a dia para sobrevivermos em ambientes hostis, inóspitos, temos mecanismos de defesa inconscientes por isso mesmo, porque precisamos do ego para nos relacionarmos com as pessoas. Mas na hora da dor, do sofrimento, não é ele quem nos dá alento, não é ele quem nos segura, nos dá base, nos dá chão: é o afeto. O afeto autêntico, espontâneo, não se preocupa em julgar, mas em compreender. E é dessa compreensão que vivemos, seja em nossos acertos ou erros. Sermos amados quando erramos – quer dizer, sermos amados como pessoa, mesmo que nossos erros não sejam apreciados – é que nos dá base para sermos felizes, independente de verdades ou mentiras. Se eu tiver que mentir para ser amado, ou se tiver que mentir para dizer que amo, estarei tendo uma relação de egos, não uma relação amorosa. E egos não sustentam pessoas, afetos sim.
Mas há uma forma de confusão mais grave, entre mentiras e felicidade. Essa forma vem da incompreensão do que realmente acontece com as pessoas que sabem amar, de modo a fazer a pessoa amada feliz. O amor que sustenta é dotado de algumas qualidades essenciais, que incluem a compreensão, a humildade, a interpretação “benigna” do outro. Quem olha de fora um relacionamento amoroso, de espíritos desarmados, pode pensar que está diante de pequenas mentiras que sustentam o ego. Não é o caso, quando falamos de sentimentos profundos. Antes de “mentir para agradar” quem se ama, se tem uma interpretação benigna, compreensiva, da pessoa amada.
Existe o “me engana que eu gosto”, a pseudo-felicidade, social, aparente. Mas não é disso que se trata, para quem está em busca da felicidade. Se trata de compreender que a vida é mais complexa do que parece, mais profunda que as aparências, e que não se resume à dicotomia entre ‘verdades’ e ‘mentiras’. Podemos ir além das aparências para observar sutis diferenças entre felicidades “sociais” e as afetivas, entre relacionamentos de egos e de corações. Quem ama não mente, quem ama compreende. Era esse o meu “pitaco”, para a filosofia de praia. Bom carnaval!
Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
EcoDebate, 11/02/2013
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