Valores Éticos do Brasil, artigo de Millos Augusto Stringuini
Valores Éticos do Brasil.
Millos Augusto Stringuini, Dr.Sc.
Biólogo, Doutor em Ciências do Meio Ambiente, Conselheiro do CRBio03 e Coordenador da Comissão de Meio Ambiente, Perito e Consultor Internacional, Professor Cátedra Sul – Universidade de Liége – DSGE, Bélgica. Membro Fundador de Honra da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica.
Palavras-chave: Ética, Moral, Valores éticos.
Sumário: Considerações iniciais – Introdução – Ética e Moral – A relatividade da ética – A influência da televisão e da Internet na Ética – Resultados complementares da enquete – Considerações finais – Referências.
Considerações Iniciais.
Esse artigo aborda uma temática de grandes dimensões. Sua finalidade em essência é estimular o debate sobre os Valores Éticos do Brasil, visando contribuir para melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro.
Deve ser lembrado que o desenvolvimento de uma nação não está somente centrado em aspectos econômicos e de qualidade ambiental. Fundamentalmente, o desenvolvimento de um país está embasado pela convivência humana com equidade e harmonia.
Por outro lado, pensar em equidade e harmonia entre humanos é, seguramente, desenvolver pensamentos sobre uma utopia. Todavia, se não existissem as metáforas e as utopias, o que seria da vida dos humanos?
Nesse contexto, a ética é uma das mais belas metáforas utópicas já desenvolvidas pelo pensamento humano; sempre inatingível em sua plenitude prática, mas sempre desejada pelas pessoas que possuem consciência social e ambiental.
Introdução.
A mídia mundial tem apresentado a existência de uma crise ética em evolução no planeta. A chamada “falta de ética no Mundo e no Brasil” é frequentemente reclamada pelos comunicadores sociais e, em especial, pelos comentaristas políticos e econômicos de televisão.
No Brasil essa crise é evidente. Tem como um de seus mais explícitos exemplos, a enorme progressão da falta de segurança pública em todo o país. Os sistemas policiais têm aumentado progressiva e constantemente seus efetivos e ações, mas nada é suficiente para resolver esses problemas que se potencializam pela epidemia crescente de drogadição.
Igualmente, o caótico e genocida trânsito do Brasil é outro exemplo do grande déficit ético existente no país, pois o individualismo ao volante é a práxis.
Ao mesmo tempo, em quase todos os confins do planeta Terra, ocorre o descaso com os valores humanos da vida e com o meio ambiente: corrupção, assassinatos, ditaduras, guerras civis, religiosas e internacionais, racismo, xenofobia, etc. Esse mosaico destrutivo tem por base a crise ética que viceja na humanidade.
Tudo isso em plena consonância com o aumento da fome, da sede, com destruição continuada de todos os ecossistemas, em um contexto psíquico gravoso de falta de perspectivas futuras para a humanidade.
Gilberto Freyre em entrevista concedida para Gilberto Velho (Museu Nacional e UFRJ), César Benjamin e Cilene Areias (Ciência Hoje) em maio/junho de 1985, já dizia:
O Brasil vem mudando muito. Nuns pontos para melhor, noutros para pior, sobretudo por causa desses últimos anos de governos militares. Não sou antimilitarista, mas devo dizer que nunca me enganei com esse surto militar iniciado em 1964, o que me levou a recusar convites do general Castello Branco para ocupar um ministério ou a embaixada em Paris. Os militares se deram aos tecnocratas, que comprometeram os valores éticos do Brasil e nada fizeram para diminuir o desprezo pelo Nordeste, que já se manifestava então no Centro-Sul… Agora, estamos diante de um teste como nunca houve no Brasil. Há uma grande crise ética, um desprezo ostensivo pelas éticas, e o povo brasileiro está escandalizado. 1
Infelizmente essa crise em relação aos valores éticos do Brasil, indicada por Paulo Freire em 1985, continua sua progressão negativa em 2012. Ela motivou o autor desse artigo para a realização de uma enquete de opinião com uma centena de pessoas durante dois anos. Muitas delas foram entrevistadas ao acaso, outras escolhidas por seus méritos intelectuais.
Para todos os entrevistados foi feita a seguinte pergunta:
Quais são os valores éticos do Brasil?
Deve ser esclarecido que essa enquete (qualitativa) não teve como objetivo a obtenção de resultados estatísticos (quantitativos), pois esses, pouco sentido teriam. Ela buscou realizar uma identificação preliminar do pensamento dos brasileiros entrevistados sobre o tema proposto.
O grupo onde a pergunta foi aplicada esteve composto por pessoas de escolaridade universitária. Foram entrevistados, advogados, arquitetos, biólogos, economistas, engenheiros, escritores, filósofos, médicos, professores, psicólogos e odontólogos, sendo a grande maioria residente nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, em dois Estados do nordeste (Paraíba e Ceará) e Brasília (DF).
Os integrantes do grupo entrevistado pertencem ao contingente populacional plenamente alfabetizado do Brasil2, visto que, segundo dados do PNAD 2010 – IBGE, no país existe um segundo contingente populacional de cerca de 140 milhões de brasileiros, identificados como sendo analfabetos, analfabetos funcionais e alfabetizados parciais.
Quando se aplicou a pergunta da enquete para pessoas integrantes desse segundo grupo, não foram obtidas respostas intelectualmente melhor elaboradas.3 Infere-se que na dinâmica cotidiana da população integrante do grupo de pessoas com escolaridade deficiente, a palavra ética é um vocábulo muito pouco presente e sem uma intelecção adequada.
Por outro lado, deve ser relembrado que a temática ética/moral, ao longo da história da humanidade, tem sido analisada pelos grandes pensadores e filósofos, sendo os livros religiosos, tais como a Bíblia e o Alcorão, sustentáculos importantes. A história nos mostra que os povos, ao longo dos tempos, sempre estiveram parcialmente alijados desse debate.
O Estado do Vaticano e a República Islâmica do Iran, atualmente as duas teocracias moralmente influentes sobre a opinião pública mundial, são exemplos de como a Bíblia e o Alcorão ainda estão ativamente presentes na constante construção dos valores morais mundiais.
Por sua vez, em relação às referências bibliográficas, é importante destacar que a pesquisa realizada na internet (Google e Google acadêmico) buscando artigos sobre os temas, “Valores Éticos do Brasil”, “Ética no Brasil” e as “Diferenças entre a Ética e a Moral” apresenta textos interessantes.
Todavia, o que se depreende dessa verificação bibliográfica é que o tema não possui expressivo e constante debate no grande público e está pouco referenciado nas redes sociais. Aquilo que existe publicado está muito vetorado nas doutrinas políticas de esquerda e de direita, em trabalhos acadêmicos, religiosos e similares.
Quando a busca é realizada usando palavras isoladas, como “ética” e “moral” milhões de citações aparecem, e diversas formas de diferenciação entre os dois vocábulos surgem.
No cotidiano da sociedade brasileira a temática ética é frequentemente usada como debate político conflitivo.Todavia, deveria ser muito mais um assunto de debate pacífico do que motor potencial de conflitos políticos, onde partidos políticos e pessoas se dizem uns mais éticos que outros.
Assim, uma primeira conclusão já é possível;
Ética é uma temática importante para a evolução da sociedade brasileira, mas desprovida de popularidade.
Por outro lado, observando o cotidiano de muitas nações neste século XXI, o mercado, a televisão e a internet são os “grandes deuses amorais” que tudo regem. Os governos e parlamentos ficam com a responsabilidade da criação de leis para regular esses entes indefinidos de seus desvios éticos e morais.
Entretanto, os conjuntos legais e os procedimentos processuais não conseguem formar condutas éticas sólidas e antecipatórias. É de notório conhecimento público que a solidez ética de uma sociedade somente é gestada, gerada e desenvolvida na base educacional composta pela educação familiar e escolar.
Por sua vez, as práticas morais, atualmente, são amplamente melhor desenvolvidas e debatidas, em função dos eficazes processos organizacionais das religiões. Certamente esses processos que atingem milhões de brasileiros são muito mais amplos e eficazes que as práticas geradas pelas administrações públicas visando o desenvolvimento ético da nação.
Fica por conta da aleatoriedade das mídias, a progressão da alteração constante dos costumes. A televisão e a internet estão planetariamente realizando decisivas influências educacionais e psíquicas nos povos, construindo, constante e preferencialmente, nas sociedades ocidentais e ocidentalizadas, novos valores éticos e morais – positivos e negativos – para a cidadania.
Por exemplo, estão sendo constantemente estimuladas a sexualização do consumo, as posturas narcisistas e a ostentação compulsiva, nas quais residem e vicejam grandes desvios éticos e morais.
Assim, o presente trabalho tem por finalidade específica cooperar para uma melhor avaliação intelectiva dos valores éticos do Brasil. Os valores morais (costumes) não serão contemplados nesse artigo, visto pertencerem a outros campos de estudo, tais como a teologia.
Deve ser destacado que a Ética e suas influências sobre a sociedade brasileira, em estando inscrita em um contexto internacional dinâmico é uma temática praticamente inesgotável.
Pelo debate civilizado e aberto (preferencialmente desprovido de preconceitos e dogmas) sobre os valores éticos das nações, as sociedades poderão evoluir na busca constante da equidade e harmonia na superfície da Terra.
Ética e Moral.
Da análise do discurso das pessoas participantes da enquete e de alguns formadores de opinião no Brasil, depreende-se que as palavras ética e moral frequentemente são usadas como sinônimos. Esse fato igualmente se comprova na revisão bibliográfica.
GOLDIM, J.R., citando Robert Veatch, diz que esse dá uma boa definição operacional da ética ao propor que ela é a “realização de uma reflexão disciplinada das intuições morais e das escolhas morais que as pessoas fazem”.
Essa realidade interpretativa também poderá ser observada na consulta aos diversos dicionários de português, tais como o HOUAISS, AURÉLIO, INFORMAL, e mesmo dois dos mais importantes dicionários do mundo; em francês, o grupo de dicionários apresentados pelo CENTRE NATIONAL DE RESSOURCES TEXTUELLES ET LEXICALLES e, em inglês, o WEBSTERS-ON LINE-DICTIONARY.Org.
Dois exemplos do cotidiano são interessantes para expressar essa situação.
No dia 21de setembro de 2012, o jornalista David Coimbra4, falou da Moral no Brasil. Em seu artigo intitulado, “A culpa do povo” diz textualmente:
O problema do brasileiro é moral.
Avançando no texto escreveu:
“…, pois o brasileiro em geral é um deficiente moral”.
O editoral do mesmo jornal também abordou o tema, Fragilidade Moral.
Em qualquer um dos dois textos é possível substituir a palavra Moral por Ética.
Em realidade, Ética e Moral são duas posturas do pensamento metafórico (LAKOFF & JONHSON) humano. Ambas são geradoras de comportamentos, os quais em determinados momentos se sobrepõem e que, em outros, atuam em campos opostos.
Tanto Slavoj ŽIŽEK, filósofo e psicanalista esloveno, como o teólogo espanhol Padre Marciano Vidal, intelectuais internacionalmente renomados, oscilam no uso das palavras Moral e Ética como sendo sinônimos regulares, quando em realidade são irregulares.
ŽIŽEK, fala de “vácuo moral”. VIDAL fala de uma “renovação da ética teológica5”.
Além disso, ŽIŽEK escreveu recentemente um livro que contextualiza a atual insegurança ética vigente na humanidade. O título é muito representativo: Living in the End Times (em português: Vivendo no fim dos tempos).
Nesse amplo contexto, existe um fator implícito que reclama e permite complementar a realização de uma diferenciação mais objetiva entre Ética e Moral, a qual, raramente, é constatada em textos sobre a temática e mesmo nos debates orais.
Trata-se da laicidade 6 da Ética.
Sem sombra de dúvida, a Ética como vetor dinâmico harmonizador psicossocial necessita ser uma escala de valores laica, ou seja, deve servir como padrão de conduta para toda e qualquer pessoa, independente de sua religião e fé.
A Ética está a serviço do pensamento metafórico (predominantemente inconsciente) e do comportamento de todos os humanos; desde o ateu ou agnóstico até o mais convicto religioso. A laicidade confere para a Ética um caráter de unicidade.
MOREIRA, Milton, R. Medrano em artigo, intitulado O Papa e o laicismo7, que analisa o discurso do Papa Bento XVI no Líbano, definiu de forma muito importante a influência da Igreja Católica sobre as questões da laicidade.
Acho que é a primeira vez que um sumo pontífice romano, nesse sermão pronunciado no Líbano (14/9/2012), agrega ao substantivo laicismo o adjetivo saudável. Mesmo deixando espaço ao entendimento de que existem outras formas de laicismo condenáveis, ou seja, aquelas que se ocupam de combater as crenças de cada um, fica expresso o reconhecimento de que laicidade não é sinônimo de imoralidade.
Por outro lado, a Moral é uma escala dinâmica de valores psicossociais (costumes) interligados e fundamentados em raízes psicológicas e religiosas. Prova desse fato está na inexistência de uma moral dos ateus ou dos agnósticos, pois esses devem se orientar por parâmetros éticos.
Por isso, existem diversas formas de moral, tais como: a moral judaica e cristã; a moral budista; a moral xintoísta; a moral calvinista; a moral islâmica, etc.
Inegavelmente a Ética é una, por ser laica.
GOLDIM, J.R., explica que:
O Juramento Hipocrático insere obrigações de Não-Maleficência e Beneficência: “Usarei meu poder para ajudar os doentes com o melhor de minha habilidade e julgamento; abster-me-ei de causar danos ou de enganar a qualquer homem com ele”.
Esse juramento é um princípio ético laico, visto servir para qualquer médico independentemente de sua fé ou religião.
Todavia, não só os médicos precisam pensar assim, mas todas as pessoas que desejam conviver harmonicamente em sociedade, tendo por base os princípios de Não Maleficência e Beneficência, independentemente de suas crenças religiosas.
Da mesma forma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um documento ético laico, visto servir para qualquer humano na superfície do planeta Terra. Essa declaração busca a Não Maleficência e a Beneficência na humanidade, independentemente de qualquer viés religioso.
Por outro lado, por exemplo, os dez mandamentos Bíblicos e as Leis do Islamismo, ambas consideradas pelos seguidores dessas religiões como leis divinas, são princípios morais8 e, assim aceitos por seus seguidores, independentemente de nacionalidade ou país.
Em algumas religiões, certos princípios morais, como o direito à vingança, estão fundados na maleficência e não beneficência, ou seja, na raiva. ŽIŽEK, a esse respeito escreveu um capítulo de seu livro, Vivendo no Fim dos Tempos9, intitulado; Raiva: a realidade do político-teológico.
Uma pessoa pode ser seguidor de uma moral determinada e não ser pessoalmente ética. Por exemplo, muitos tiranos ao longo da história da humanidade seguiam fervorosamente os dogmas morais de suas religiões; quando tratavam seus opositores esqueciam de seus conceitos morais e partiam para a crueldade e as mais variadas atitudes antiéticas.
Igualmente, em certas religiões, o sacrifício de animais é aceito moralmente (como parte da ritualística religiosa) como ato de respeito à divindade que irá receber a oferenda. Sacrificar animais para oferendas dogmáticas de qualquer tipo é uma maledicência, ou seja, um ato antiético.
Essa diferenciação é importante quando se analisa a construção Ética (laica) dos valores das nações, pois, idealmente, deveria haver uma prevalência para laicidade em relação aos temas relacionados a res pública. Por exemplo, a não prevalência de simbologia religiosa nas coisas públicas.
Em teoria, para benefício da res pública, os fatores morais deveriam ocupar um nicho reservado na construção do inconsciente coletivo das nações. As guerras religiosas (de origem moral) ainda hoje existentes no mundo são a prova do quanto é necessário construir-se condutas coletivas laicas (éticas) nacionais.
ŽIŽEK esclarece de forma bastante eficaz a importância da laicidade, quando demonstra que a ética tem mensagem inequívoca;
Certamente, para a ética, o que interessa é realidade e não as aparências10.
Quando COIMBRA escreveu sobre o povo brasileiro, como anteriormente indicado, dizendo que o problema é Moral – deficiência de: certamente deve ter considerado a interação entre a prevalência da moral religiosa brasileira frente a pouca presença e influência social de uma ética laica nacional, pois, ao final de tudo, o Brasil é um país muito religioso.
Inegavelmente, o inconsciente coletivo do Brasil é amplamente influenciado pela moral cristã e judaica. Essa moral de dupla simbologia é prevalente em relação à ética laica nacional e, por isso, as condutas morais são capazes de estabelecer comportamentos e sincretismo. Em suma, no Brasil, as pessoas são mais moralistas que éticas.
A França poucos anos atrás enfrentou11 o debate da laicidade na res pública.
Essa ação da sociedade francesa provocou um importante início de mudança da conduta moral (múltiplas religiões) e na ética daquele país. Dizer que o debate francês sobre laicidade resumiu-se a um debate sobre símbolos religiosos, como as mídias tentaram fazer crer, representa um profundo desconhecimento da importância da construção que os significantes exercem no pensamento metafórico humano.
Considerando o Brasil, Antônio RISÉRIO em A Utopia Brasileira e os movimentos negros, afirma:
O Brasil é sincrético. Foi e continua sendo. Dos primeiros tempos coloniais ao exibicionismo tecnológico dos dias que correm.
Na Ética e na Moral desse Brasil sincrético, são adicionados valores regionais advindos das diferenças culturais, educacionais e econômicas. Por exemplo, as práticas éticas e morais cotidianas de Brasília são, por vezes, diferenciadas das outras regiões do país.
As enormes desigualdades territoriais, sociais e econômicas vigentes no país também contribuem para a existência de práticas éticas e morais diferentes. No Brasil, a ética e a moral praticada pelas pessoas economicamente mais abastadas é diferente das pessoas pobres, visto esse ser, conforme a ONU – PNUD12, um dos países mais desiguais do mundo.
Da mesma forma, em muitos países onde as morais são prevalentes em relação à ética na res pública, são vivenciados conflitos internos importantes.
Os conflitos intermediados pela ONU entre católicos e protestantes; entre judeus e palestinos e os embates entre Sunitas e Xiitas dentro da cultura islâmica, são exemplos concretos de que as diferenças morais, quando promovem guerras, não são éticas.
Os interesses religiosos (morais) ou econômicos (poder) são, frequentemente, geradores de condutas produtoras de rupturas éticas. Muito frequentemente, por exemplo, por resposta psíquica, sob a forma de inveja e ódio.
Pergunta-se: Quem do povo no Brasil não foi ainda, de forma direta ou indireta, eticamente vilipendiado no contato com monopólios econômicos ou estatais? Seguramente, as ações negativas dessas instituições são antiéticas, mas nem sempre são imorais e ilegais.
Nesse contexto, para que a evolução da nação estabeleça tendência positiva para a equidade e harmonia, a res pública deverá constantemente instigar a construção e o desenvolvimento de uma escala de valores éticos nacionais, ou seja, realizar esforços constantes para o desenvolvimento da cidadania nacional.
A relatividade da ética.
Pelo resultado das respostas apresentadas pelos entrevistados na enquete foi possível observar que, no cotidiano, a prática da ética possui limites. Diferentemente, a Moral é estruturalmente forte e mobilizadora de milhões de pessoas no planeta; a Ética é sensível e frágil.
Igualmente os entrevistados sempre fizeram referências diretas ou indiretas aos “espertos nacionais”.
Muitos deles afirmaram que as pessoas no Brasil são éticas na medida de seus interesses. Em havendo perspectivas de impunidade, independentemente do grau de escolaridade, os brasileiros irão procurar agir de forma esperta (Lei de Gerson).
Seja esperto; o importante é levar vantagem em tudo!
A chamada “Lei de Gérson” surgiu em uma propaganda para os cigarros Vila Rica que o jogador de futebol Gérson fez no ano de 1976.
Naquela propaganda, Gerson – que era tabagista – falava sobre as vantagens do cigarro e pronunciava a seguinte frase:
“É gostoso, suave e não irrita a garganta”.
Deslavada mentira do produtor da propaganda; conduta humana irresponsável e antiética, pois não existe cigarro que não irrite a garganta.
Na sequência dizia a propaganda através da imagem e voz de Gerson.
Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro?
Outra mentira deslavada e antiética, pois, cientificamente já estava provado naquela época que a inalação de CO, CO2, e milhares de contaminantes é nocivo para a saúde individual e coletiva.
Não existe “um bom cigarro”; todos fazem mal.
Além disso, depois de alardear as “beneficências” desse cigarro, Gerson dava um sorriso e soltava a metáfora final da propaganda:
Gosto de levar vantagem em tudo! Certo?
Em suma, a maledicência disfarçada de beneficência.
Aqui existe uma pergunta que necessita respostas:
Existe alguma propaganda que apresente os efeitos colaterais (negativos) de um produto?
LAKOFF provou que o pensamento humano é preferencialmente metafórico. As metáforas são mobilizadoras do comportamento humano. Se a metáfora de uma propaganda encobre a maledicência sob a forma de beneficência, a tendência dos humanos e reagirem inconscientemente de forma favorável aos apelos da metáfora.
MARTINS F. nos ensina:
Da mesma forma que as metáforas podem curar a mente humana, elas podem danificar a psique13.
Sem dúvida, o inconsciente coletivo ético nacional está fortemente relativizado pelo jeitinho brasileiro, que faz o errado parecer certo e o certo parecer errado14.
Importante destacar que a prática do jeitinho brasileiro, que torna relativa a ética no cotidiano, já existe desde há muito. Remonta aos tempos do império, pois para a existência da escravidão que originou o sincretismo brasileiro (RISÉRIO) foi necessário relativizar princípios morais (religiosos). Havia a necessidade política e econômica de manter a escravaria trabalhando. Para isso, os ritos religiosos africanos deveriam e devem conviver com a moral judaico cristã e vice-versa.
Em excelente texto intitulado, “Jeitinho e Jeitão: Uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro?” 15Francisco de Oliveira conclui dizendo:
O jeitinho é a regra não escrita, sem existência legal, mas seguida ao pé da letra nas relações micro e macrossociais. Está tão estabelecido, é tão natural que estranhá-lo (hoje menos do que ontem, reconheça-se) pode ser entendido como pedantismo, arrogância ou ignorância: “Nego metido a besta”, é a sentença. A não resolução da questão do trabalho, o seu estatuto social, é no fundo a matriz do jeitinho. Simpático, ele é uma das maiores marcas do moderno atraso brasileiro.
Assim, no Brasil quando os interesses pessoais ou de grupamentos sociais se sobrepõem aos interesses coletivos e difusos, os valores éticos (laicos) são relativizados.
Inegavelmente, os Estados centralizadores, legalistas e fiscalistas como o Brasil, são pródigos em gerar leis que beneficiam economicamente agrupamentos políticos e econômicos, em detrimento dos interesses coletivos e difusos, gerando falsas necessidades e burocracias, todas com o mero intuito ganancioso de gerar despesas obrigatórias para a sociedade.
Trata-se da conhecida prática antiética da geração de mercados cativos, ou de gerar dificuldades e ou necessidades para obter facilidades, evidenciadas pelos contumazes escambos de favores políticos e financeiros. É aquilo que FREIRE, destacou em 1985 em relação aos militares como “se dando aos tecnocratas”.
Em 2012, a mídia tem demonstrado que, inegavelmente, essas práticas estão disseminadas nas estruturas de Estado e da sociedade brasileira e todo esse contexto de relatividade da ética no Brasil está transformando o inconsciente coletivo nacional, gerando um ambiente de desconfiança geral.
A influência da Internet e da televisão na ética.
Diversos entrevistados afirmaram que a internet e televisão como fenômenos de comunicação, têm se pautado por não apresentar limites éticos, morais e, mesmo legais, pois geram e funcionam em um ambiente de legalidade paralela de inimputabilidade transnacional, afetando a construção da cidadania nacional.
De forma sintética disseram que “na internet e na televisão tudo se encontra”, ou seja, desde as coisas mais esdrúxulas, agressivas, maledicentes, antiéticas, imorais e ilegais até bons exemplos éticos de não maleficência e beneficência.
No cerne desse gigantesco ambiente virtual (televisão e internet), aparece à realidade humana individual e dos grupamentos sociais, seus interesses coletivos e difusos.
No presente momento, o saldo em valores éticos dessas mídias ainda é desconhecido. Não é prudente afirmar e garantir para as gerações futuras que a televisão no Brasil e a Internet no mundo são agentes de evolução positiva da ética, visto que, os ambiente virtuais preferencialmente favorecem a relativização das realidades e, portanto da ética.
Por exemplo, as novelas televisivas, muito frequentemente, mostram pessoas sem ética como se fossem heróis e os pobres como seres de segunda classe. Por sua vez, na Internet, crimes virtuais, vírus, spywares (espionagem institucionalizada com fins comerciais e criminosos contra pessoas físicas e jurídicas) e similares são exemplos de impunidade e desconstrução ética.
Inequivocamente, os Estados não conseguem controlar esses entes institucionais em suas recorrentes práticas antiéticas. Será que em algum dia no futuro o conjunto das Nações e os Estados membros da ONU serão eficazes?
Resultados complementares da enquete.
As enquetes, vias de regra, apresentam interessantes informações complementares não mensuráveis.
No caso em tela, quando as pessoas foram perguntadas sobre “Quais são os valores éticos do Brasil?”, as expressões faciais e orais foram sempre muito interessantes de serem observadas. A grande maioria das pessoas rapidamente mudou de expressão facial para um semblante mais sério e a oralidade da resposta se tornou mais formal.
A formalidade facial demonstrava a distinção que as pessoas conferiam para a temática Ética.
Entretanto, a quase totalidade dos entrevistados demonstrou surpresa (ar de espanto) com a pergunta. Muitos, nos primeiros instantes, apresentaram sinais de embaraço social e disseram nunca ter pensado nesse tema. Todavia, todos ficaram intelectualmente estimulados a responder e iniciaram diálogo.
Merece destaque a constatação de que nenhum dos entrevistados tentou responder formalmente a pergunta, sendo o objeto das respostas remetido quase que automaticamente para o oposto da temática, ou seja, aquilo que não é ético; a corrupção.
A imensa maioria deixou migrar livremente seus pensamentos e oralidade (em muitos casos com verve oratória) para exprimir suas repulsas contra a corrupção e contra a violência e a insegurança social vigente no Brasil e no mundo.
Inegavelmente, as reclamações sobre a corrupção no Brasil foram respostas prevalentes, demonstrando que o Estado Brasileiro em suas estruturas institucionais não é gerador de posturas éticas, ao contrário, trabalha em desserviço da construção de valores éticos nacionais.
Além disso, algumas entrevistas foram realizadas por e-mail e dentre as respostas uma merece ser comentada por sua característica diferenciada. As outras seguiram o padrão das respostas orais.
A pessoa entrevistada participa de um Conselho de Ética de uma categoria profissional.
Como resposta ao e-mail com a pergunta padrão, respondeu:
-
Desculpe, essa é uma pergunta capciosa e, por isso não vou responder agora. Vou pensar melhor e depois responderei.
A resposta prometida nunca mais foi dada!
Do ponto de vista da análise das respostas que formam a enquete, essa é uma interessante interpretação para a pergunta.
Se uma pessoa pensa que o estudo de valores éticos é capcioso16, o inconsciente dela estava produzindo um significante de insegurança ou temor (relativização) frente ao vocábulo.
Interessante destacar que essa insegurança parcialmente apareceu também nos outros entrevistados. A grande maioria deles afirmou, direta ou indiretamente, que o Brasil não possui valores éticos.
Essa afirmação é uma falsa construção intelectual, pois, sem sombra de dúvida, valores como honestidade, liberdade, respeito às individualidades estão presentes no inconsciente coletivo dos brasileiros, mesmo se, o individualismo (narcisismo) estimulado pela política e pela propaganda de geração de consumo, eroda e relativize continuamente esses valores éticos.
Deve ser destacado o fato de que somente um dos entrevistados citou os dois valores éticos que estão escritos na bandeira nacional (Ordem e Progresso) e somente outros dois, exemplificaram com os valores éticos da França; Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Assim outra conclusão é possível:
O Brasil, na avaliação dos entrevistados17, é um país sem ética, tomado pela corrupção e sem capacidade de eliminar esse problema. Culpar os dirigentes políticos foi uma unanimidade.
A Ética existe para promover o bem (Não-Maleficência e Beneficência18) segurança social e não para ser capciosa ou indutora de erros.
A observação prática do pensamento humano demonstra que quando os valores éticos vigentes são ambivalentes e ou relativizados, as pessoas tendem a vivificar (discursiva e emocionalmente) por construção contínua dos significantes uma insegurança social agravada. Nesse contexto, o imaginário da corrupção e insegurança é muito maior (potencializado) do que a realidade.
Essa afirmação tem comprovação na história da humanidade. Muitas sociedades quando perderam seus valores éticos (laicos) migraram para o estado de guerra civil. Isso está acontecendo hoje na Síria19. Passaram por um período de progressão coletiva de descrença econômica e social até o momento em que a ruptura ética se tornou total. A vida nessas sociedades fica conflitiva ao extremo e as instituições não conseguem controlar a ausência de cidadania.
A cidadania (coleção de valores éticos nacionais) é quem faz uma nação ser desenvolvida ou subdesenvolvida. Políticas e leis são somente instrumentos.
Considerações finais.
Obviamente, essa enquete é ínfima dentro da amplitude da temática. Todavia, foram obtidos elementos que podem cooperar para revigorar o debate público sobre os Valores Éticos do Brasil.
O autor aprendeu muito com as inteligentes respostas ofertadas pela maioria dos entrevistados; sem elas esse texto não teria sido redigido e, por isso, é necessário agradecer para todos.
Em outro contexto, em havendo condições de base para o atendimento das necessidades fundamentais de uma enquete nacionalmente mais abrangente, seguramente seria muito interessante realizá-la nas cinco grandes regiões do Brasil (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul).
No momento atual, a enquete desenvolvida ratifica o posicionamento expressado por Gilberto Freire em 1985, demonstrando que esse continua válido e real para o Brasil de 2012. A tecnocracia adquiriu e está cada vez mais adicionando poder sobre a sociedade usando como ferramenta o exibicionismo tecnológico dos dias que correm (Risério).
A redução da importância20 da disciplina de Filosofia no currículo escolar brasileiro, na qual os estudantes tomavam contato e introjetavam a Ética, foi também lembrada por alguns entrevistados. Esses afirmaram que, por isso, a sociedade brasileira está empobrecendo em termos de valores éticos nacionais.
Atualmente, essa ausência de formação ética se manifesta de forma crucial, através do desrespeito aos valores da vida e o descaso com o meio ambiente.
No Brasil atual, não é possível negar que os comportamentos utilitaristas com desintelectualização continuada são evidentes.
Nesse contexto prevalente, os crimes de menor poder ofensivo, tais como, subtrair coisas de pequeno valor ou práticas de escroqueria e estelionato de pequena monta, ficam, vias de regra, impunes.
A impunidade de variados delitos é a mola propulsora da relativização ética e, preferencialmente, por ela muitos brasileiros clamam por um Estado vingativo com pena de morte (sem ética e com direitos humanos relativizados) onde o valor da vida dos desválidos de toda a sorte, condenados ou não, será relativizado.
Para muitos daqueles que são financeiramente pobres ou portadores de alguma forma de incapacidade física, psicológica ou limitação laboral, inegavelmente, existe uma forte redução das oportunidades de desenvolvimento da cidadania plena.
Esse fenômeno acomete a grande maioria das pessoas em desvalia (momentânea ou permanente). Nos procedimentos de atendimento dos desválidos que dependem dos hospitais que atendem o SUS21 e na superlotação dos presídios, as práticas assistencialistas nacionais mostram seu caráter antiético.
Cooperando para o agravamento do quadro geral dos dias atuais, está cada vez mais consolidada a prática do Estado Forte, Legalista, Fiscalista e Oportunista, originária no Brasil Imperial.
Inegavelmente o Estado brasileiro não é gerador de valores éticos, ao contrário, é produtor continuado de condutas antiéticas.
A ética, como fator de promoção da harmonia social contínua, em sendo substituída por desmesurado processo de geração de leis, com base nas crenças políticas de que as leis podem mudar a realidade e que todos devem ser cooptados para a idéia estruturalista (dita republicana) do Estado federal hegemônico nacional (caudilho paternalista) é certamente a fonte geradora da regressão dos ainda restantes valores éticos do Brasil.
Seguramente, o legalismo fiscalismo nacional muito pouco irá resolver em matéria ética, pois uma sociedade sem Valores Éticos introjetados no inconsciente coletivo22, pouco respeita as leis, gerando um efeito dominó negativo vetorado para uma futura ruptura social.
Assim é importante e necessário estimular a continuidade da reflexão dos brasileiros, deixando a pergunta em aberto:
Quais são os valores éticos do Brasil?
Enquanto a Nação Brasileira não tiver ampla capacidade de dialogar e responder pacificamente a essa questão, estará caminhando para um quadro de agravamento de seus problemas sociais e ambientais.
Numa época de mentiras universais, dizer a verdade é um ato revolucionário.
George Orwell.
Referências
GOLDIM, J.R. Bioética: origens e Complexidade, Revista do HCPA, 2006, Porto Alegre, Brasil.
GOLDIM, J.R. O princípio da não maleficência, encontrado em http://www.bioetica.ufrgs.br/naomalef.htm
LAKOFF, G. & JOHNSON, Methafors we live by, O’brien II, Chapter 10. 1980.
MARTINS, Francisco, M. C, Prof. Dr.; Comunicação Pessoal em 2010. Titular da Cadeira número 01 da Academia de Letras de Brasília. CV Lattes disponível para consulta na Internet.
RISÉRIO, Antônio: A utopia brasileira e os movimentos negros; São Paulo, Editora 34. 1ª ed. 2007.
ŽIŽEK, Slavoj, Vivendo no Fim dos Tempos; tradução de Maria Beatriz de Medina, São Paulo: Ed. BOITEMPO, 2012.
1 Os grifos são nossos.
2 Cerca de 50 milhões de brasileiros.
3 Uma pequena amostragem com 30 pessoas foi realizada.
4 Jornal Zero Hora de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
5 N.A. Induz uma pergunta – Se à ética teológica precisa ser renovada é porque essa está sendo parcialmente antiética?
6 HOUAISS: qualidade do que é laico ou leigo; doutrina ou sistema que preconiza a exclusão das Igrejas do exercício do poder político e/ou administrativo.
7 Jornal Zero Hora do dia 23 de setembro de 2012.
8 Dos costumes de cada grupo religioso.
9 (op.cit)
10 No Brasil de hoje, as aparências estão supervalorizadas.
11 Esse debate não tem uma data marcada para terminar.
12 Organização das Nações Unidas – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; ver internet.
13 Comunicado pessoal.
14 Frase construída por um dos entrevistados.
15 Revista Piauí n°. 73.
16 HOUAISS: adjetivo; 1. Que engana; caviloso, enganoso, manhoso; 2. Que procura confundir, para levar ao erro; ardiloso, astucioso.
17 Todos os entrevistados se consideram pessoas éticas. Ninguém admitiu cometer deslizes éticos.
18 GOLDIM, J.R.
19 O ditador da Síria é, certamente, uma pessoa antiética, pois uma grande parte da população do país deseja que ele se retire do poder, mas ele insiste em se manter no poder matando milhares de pessoas; crianças inclusive.
20 Por ordem da ditadura militar tecnocrática ocorrida no Brasil a partir de 1964.
21 Sistema Único de Saúde do Brasil.
22 Oriundos da formação educacional familiar e escolar com qualidade e ações em complementaridade.
EcoDebate, 01/02/2013
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Muito lúcido esse artigo do Dr. Millos Stringuini, nesse época de Renan Calheiros novamente presidente do Senado.