Hidrovias, ferrovias, sem um novo olhar, artigo de Washington Novaes
Mapa ferroviário do Brasil. Fonte: ANTT
[O Estado de S.Paulo] Parece difícil de acreditar, mas um diretor da Associação Brasileira de Recursos Hídricos anuncia que estão sendo preparadas licitações de obras para tornar viáveis hidrovias nas Bacias Teles Pires-Tapajós e Araguaia-Tocantins (Estado, 15/12/2012). O primeiro projeto já está debaixo de fortes ataques por englobar também a implantação de várias hidrelétricas em áreas indígenas e de preservação permanente na Amazônia. O segundo some e ressurge de tempos em tempos, apesar dos fortíssimos argumentos que têm sido invocados para mostrar seus inumeráveis e insuperáveis problemas.
São muitos os cientistas que têm mostrado ao longo dos anos a inconveniência de implantar uma hidrovia no Araguaia. Rio de região ainda em formação, o Araguaia nem sequer tem leito navegável permanente – pois este se desloca de ano para ano, com a movimentação de sedimentos. Estudo da Universidade Federal de Goiás já demonstrou que num único ano passam por Aruanã, ainda no Médio Araguaia, nada menos de 6 milhões de toneladas de sedimentos, vindas desde a região de nascentes, onde continuam a se formar e se expandir gigantescas voçorocas (agravadas pela erosão decorrente da formação de pastagens, canaviais e culturas de soja). Implantar uma hidrovia nesse rio exigiria escavar e isolar um canal permanente ao longo de centenas de quilômetros.
Quanto custaria? Onde se depositariam os sedimentos retirados e os que viessem depois? Qual o preço da manutenção? E o preço do transporte, já que as cargas exportadas do Centro-Oeste teriam de ser desembarcadas em certo ponto da margem, levadas por caminhão até o lugar em que seriam repassadas para a ferrovia de Carajás e de novo desembarcadas e reembarcadas no Maranhão?
Com tudo isso, também se anularia, pelos custos, a grande vantagem: permitir que safras brasileiras chegassem ao Atlântico – e daí à Europa e à Ásia – a preços inferiores aos dos produtos norte-americanos.
Isso ainda é possível com uma Ferrovia Norte-Sul. Mas quando se passa a esse capítulo das ferrovias, as surpresas não são menores. Depois de décadas de esquecimento, anuncia-se que elas terão agora investimentos federais de R$ 25 bilhões entre 2013 e 2016, aos quais se somarão R$ 50 bilhões de empreendimentos privados. Talvez consigamos assim nos redimir de tantos pecados desde que a Norte-Sul teve sua primeira licitação embargada (com toda a razão) em 1987, por causa de irregularidades na licitação do governo federal. Só que se confundiu o acessório – as irregularidades – com o principal – a obra em si. Mas, na melhor das hipóteses, essa ferrovia só estará pronta no final de 2014, segundo anunciou a presidente da República. Desde 2007 já consumiu R$ 6 bilhões e só tem 15% do trajeto pronto.
Não é só a Norte-Sul que sofre com percalços, desonestidades, etc. A Transnordestina, iniciada em 2006 e prevista para 2014, ao custo de R$ 4,5 bilhões, não será completada no prazo de 2014 (Estado, 31/12/2012). O consórcio que nela trabalha agora prevê custo de R$ 8,2 bilhões e quer um adicional, que o governo federal não aceita. E com isso se retardam as ligações do Porto de Suape, no Maranhão, e do município de Eliseu Martins, no Piauí, a Salgueiro e ao Porto de Pecém, no Ceará – o caminho para escoamento de safras em direção ao Hemisfério Norte, com as mesmas vantagens da Norte-Sul. Mas os técnicos dizem que, no ritmo atual das obras, elas só se concluirão em 2036, já que apenas 345 dos 1.728 quilômetros previstos estão prontos.
É quase impossível para as pessoas mais novas imaginar que no Brasil, há mais de meio século, cargas e pessoas se deslocavam quase somente em comboios ferroviários, de norte a sul. Como pensar que tínhamos até ramais ferroviários eletrificados? Em 1958 o País ainda tinha 38 mil quilômetros de ferrovias, que começaram a ser sucateadas nos governos a partir da década de 60, principalmente para favorecer a nascente indústria automobilística. Hoje tem 28.600 quilômetros, a maior parte ociosos durante quase todo o tempo, pois apenas 4 mil são modernos. É o que restou de um sistema iniciado no Império, em 1852, com uma concessão feita ao barão de Mauá, por 70 anos.
O sucateamento pós-privatizações, em governos da segunda metade do século passado e início deste, e a concorrência desleal do transporte rodoviário subsidiado levaram ao quadro de hoje, quando se anuncia uma retomada de investimentos que chegaria a R$ 75 bilhões entre 2013 e 2016 (Estado, 4/9/2012). Mas a grande atração parece continuar sendo o trem-bala Rio-Campinas, que, só ele, custaria R$ 27,6 bilhões, segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Tudo isso seria parte do investimento total de R$ 401 bilhões em infraestrutura, com destaque para os setores de energia elétrica (R$ 158 bilhões), telecomunicações (R$ 74 bilhões) e transporte rodoviário (R$ 53 bilhões).
Mais uma vez é preciso insistir que falta a definição de estratégia nacional para os novos tempos em que se vive no mundo – onde os problemas de clima, energia, ambiente, alimentação e outros estão entrelaçados e exigem posturas adequadas às novas situações. A sensação que fica, ainda hoje, é a de que continuamos a viver uma mistura dos governos jusceliniano e janista, com ênfase absoluta em “desenvolvimentismo” e “política externa independente”. Não é preciso discutir muito para concluir que os tempos são outros, como são outras as exigências prioritárias para um mundo conturbado, complexo e mutante. Nele o Brasil pode vir a ter condições excepcionais, graças aos fatores privilegiados de que dispõe – território, recursos hídricos, biodiversidade, possibilidade de matriz energética limpa e renovável. Basta olhar o recém-publicado atlas Amazonia Bajo Presión (editado pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada e coordenado por Beto Ricardo, do Instituto Socioambiental) para ver que só na Amazônia brasileira esses fatores são imensos – mas já sob ataques em muitas frentes.
Washington Novaes é jornalista
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 21/01/2013
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