Especial 2012: Balanço político e o caráter conservador do governo
O ano de 2012 na esfera política-institucional foi regressivo. Por um lado, confirmou o caráter conservador do governo Dilma Rousseff e, por outro, trouxe à tona fatos que empurraram o PT para uma crise sobre o seu devir no cenário político brasileiro.
Os excelentes índices de aprovação do governo Dilma e o bom desempenho do PT nas eleições municipais podem falsear e escamotear a natureza de fundo da crise política na esquerda, particularmente na sua parcela mais significativa. O maior partido de esquerda brasileiro e o seu governo reproduziram, com poucas exceções, o mais do mesmo que sempre se viu na política nacional desde a Velha República.
O julgamento é severo. Aliviar, porém, a análise sob o argumento que nunca se fez tanto pelos pobres não contribui para uma avaliação crítica desde a esquerda. Uma rigorosa análise dá conta, por um lado, que o governo de coalizão herdado por Dilma de Lula travou qualquer possibilidade de políticas mais ousadas e reformas estruturais e, por outro, o PT selou sua condição de refém da realpolitik que se faz nos corredores do Congresso, nos ministérios e no Palácio do Planalto.
O que se viu nesse último ano foi um governo dando prosseguimento na sua generosa política de enormes concessões para o capital produtivo-financeiro e o agronegócio e um partido envolvido em casos – mensalão e Operação Porto Seguro – que empobrece e rebaixa sua história rica e combativa. Refutar esses fatos sob o argumento de que essa “agenda” foi montada pela direita não ajuda a análise crítica e auto-crítica.
Governo de coalizão. Indispensável?
Ao longo do ano em algumas “Conjunturas da Semana” destacamos que as amarras que ligam o Brasil moderno ao Brasil atrasado prosseguiram no governo de coalizão montado por Lula e não alterado por Dilma. Logo no começo do ano, fevereiro, Dilma deu uma mostra do pacto deletério entre as elites modernas e tradicionais com a nomeação do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) para o ministério das Cidades e a manutenção do ministro Fernando Bezerra de Souza Coelho (PSB-PE) no ministério da Integração Nacional após intenso tiroteio de acusações de corrupção.
Os dois ministros, outros poderiam ser citados, são lídimos representantes das velhas oligarquias – como destaca o sociólogo Werneck Vianna, – que se mantêm no poder desde a época do coronelismo.
A porção do Brasil atrasado na coalizão do governo não se manifesta, porém, apenas através das oligarquias ligadas ao latifúndio. O Brasil atrasado está também presente nas grandes metrópoles e com ele também o pretenso Brasil moderno faz alianças. Um desses episódios foi a busca da aliança do PT com o prefeito de São Paulo Gilberto Kassab e com Paulo Maluf. No caso de Kassab, a aliança apenas não deu certo porque o mesmo optou pelo PSDB nas eleições municipais, porém o partido integra a base de sustentação do governo no plano federal. Kassab, criador do PSD, egresso do PFL e do DEM, já afirmou que não é nem de esquerda, nem de centro e nem de direita, é pragmático.
A camisa de força imposta pelo modo aliancista de governar adotado pelo PT se mostra ainda no retrocesso em outras temáticas como se viu no debate do kit anti-homofobia e do aborto.
O governo de coalizão, amplo, gelatinoso e de espectro ideológico diverso, ou sem ideologia qualquer que se encontra na base do governo Dilma é uma herança do governo Lula. A justificativa de Lula para a construção do amplo leque de partidos na base de apoio ao governo e o reavivamento de figuras que se julgavam sepultadas na política como José Sarney, Jader Barbalho, Romero Jucá, Geddel Oliveira, Collor de Mello, entre outras, é a mesma: a necessária e indispensável manutenção da governabilidade.
A governabilidade é considerada um imperativo para o exercício do poder justifica Tarso Genro, governador do Rio Grande do Sul e respeitado intelectual do PT: “Os governos de coalizão presidencialista no Brasil não são novos. O novo é governantes de esquerda – o presidente Lula e a presidenta Dilma – serem obrigados, pela conjuntura política e pelo sistema legal e partidário do país, a usar esse expediente. A coalizão presidencialista é um expediente político. O que nós temos que responder, em última análise, é se ele é legítimo ou não. Não resta a menor dúvida de que é um expediente, pois essa é a única forma de governar democraticamente – portanto, de governar em maioria”.
O sociólogo Francisco de Oliveira tem outra opinião: “Todos no Brasil que preferem manter o status quo usam o argumento da governabilidade”.
O fato é que os problemas enfrentados por Dilma em seu governo estão relacionados, sobretudo, a essa herança maldita deixada por Lula. Uma base frouxa, desideologizada, que dá apoio ao governo em troca de ministérios de “porteira fechada”, nomeações em estatais e emendas parlamentares.
O governo de coalizão que reúne e junta forças que querem mudanças com forças atrasadas é uma contradição num governo que adota o discurso da “gestão eficiente”. É possível gestão eficiente, exigir cumprimento de metas e cobrar postura republicana à frente dos cargos do primeiro escalão num governo de coalizão eivado de figuras que se formaram politicamente em ambientes onde se pratica o patrimonialismo e o clientelismo como regras do jogo?
Em um estudo já considerado clássico da formação política brasileira – Coronelismo, enxada e voto – fazendo referência ao traço do patrimonialismo na política brasileira, a que deu o nome de “coronelismo”, Victor Nunes Leal comenta: “o coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”.
O coronelismo, tal qual interpretado na transição dos séculos XIX e XX, já não existe, mas continua presente até os dias de hoje como se vê na coalizão de governo e nos rumorosos casos do ‘mensalão’ e da ‘Operação Porto Seguro’, mesmo num governo que se arvora como sendo de esquerda.
Crise na esquerda
Na origem da busca de uma ampla base de sustentação está o que se denominou de “mensalão”. Por mais que setores de esquerda afirmem que o “mensalão” é invencionice, é corrente o fato de que esse tipo de mecanismo, se dê o nome que se queira, é regra corrente na estruturação, financiamento e mobilização pela disputa do poder.
O “mensalão” passou a ser aceito por muitos como um expediente necessário para garantir governabilidade e realizar os avanços que o Brasil precisava. Nessa concepção trata-se de um mal menor em função de um bem maior – a ideia de que os fins justificam os meios.
Na mesma esteira e lógica tem-se a Operação Porto Seguro ou o “caso Rosemary” deflagrada pela Polícia Federal. O caso é mais uma manifestação da não ruptura com os vícios tributários da Velha República, ou seja, a continuidade de práticas políticas eivadas pelo autoritarismo, patrimonialismo e o clientelismo. Pior ainda, significa uma rendição a essas práticas. Pessoas que se valiam de funções públicas e da proximidade com o poder para traficar e favorecer interesses privados.
A gravidade do caso reside no fato de que Rosemary Noronha não traficava e atendia apenas a interesses privados seus – o conjunto da Operação Porto Seguro aponta para fortes indícios que a ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo servia de preposto para encaminhar outras articulações políticas provenientes de altos círculos de poder do Palácio do Planalto.
A partir da interpretação da realpolitik – na política as coisas funcionam assim, parte da esquerda atribui o destaque ao ‘mensalão’ e ao ‘caso rosemary’ a retomada de certa agenda udenista no país, ao gosto da direita, que procura obsessivamente desmontar os avanços sociais obtidos na Era Lula.
A vinda à tona dos dois casos reforçou a tese defendida por muitos de que há uma ação orquestrada e persecutória contra Lula e o PT tramada pelas elites. No caso, as elites segundo os que defendem essa tese, seriam os setores que nunca engoliram a chegada de Lula ao poder e a continuidade do PT no Palácio do Planalto. Derrotados nas urnas no último decênio, esses setores procuram minar as principais lideranças do PT, particularmente Lula, e ato contínuo desqualificar as conquistas sociais desse período.
Nessa ótica, o ‘mensalão’ e o ‘caso rosemary’ são vistos como algo menor diante de tantas conquistas e avanços sociais e econômicos. Essa posição suscita uma questão: A instauração de políticas sociais, o bolsa-família, a política de cotas, a mobilidade social dos mais pobres para cima, fornecem um “salvo conduto” aos erros de seus dirigentes? Tudo pode ser justificado ou atenuado porque o PT, no governo, passou a adotar políticas sociais antes inexistentes? Nessa linha de raciocínio, o melhor é ficar apenas com o lado bom, reconhecer e louvar os acertos e empurrar para debaixo do tapete a sujeira. Trata-se de uma postura prepotente que não aceita a autocrítica. Aceitar dialogar com as denúncias, nessa visão, revela fraqueza e abre brechas para oportunizar os ataques da direita.
É inegável que a direita procura se apropriar do discurso udenista e usa o ‘mensalão’ como um aríete para abalar a fortaleza em que se transformou o mito Lula, porém, cabe à esquerda social abordar esse tema e criticá-lo pela esquerda. Validar o discurso de que não se pode criticar os dirigentes do PT pelos equívocos que cometeram porque isso significa jogar “água no moinho da direita” é recusar a essência do que significa ser esquerda.
Com o “mensalão” e recentemente a Operação Porto Seguro, o PT – sua porção dirigente – dá claros sinais que se transformou num partido tradicional no modo de fazer política. Segundo o filósofo Thales Ab’Sáber o ‘mensalão’ “foi o cartão de visita e o atestado das práticas políticas de direita que o partido passou a utilizar para chegar e se manter no poder. Conchavos de bastidores com partidos oportunistas e mesmo politicamente inimigos, manipulação de processos eleitorais através de acordos que serão pagos posteriormente a qualquer custo, concepção do Estado como uma fonte de financiamento dos interesses particulares de grupos”.
O cientista político Fábio Wanderley Reis considera que o “mensalão” só foi possível em decorrência de uma espécie de desvio ideológico do PT: “A arrogância produzida por certa autoimagem ideologicamente condicionada, que levou à desqualificação dos outros participantes do jogo parlamentar, considerados burgueses, e à ideia de que o melhor a se fazer era comprar sua lealdade. É um cinismo autorizado, um maquiavelismo de araque, em função de objetivos considerados maiores, com a ideia de que os fins justificam os meios”.
A esquerda que não tem medo de se nomear esquerda
Os ativistas sociais que se afastaram do PT e hoje o criticam recebem a resposta padrão: “vocês não querem ver ou minimizam os enormes avanços sociais do PT no governo”. Trata-se de um argumento frágil frente às criticas de esvaziamento ideológico do PT. Esses avanços eram esperados. Sempre foi isso que se prometeu e por isso que se lutou. Para muitos, inclusive, houve um enorme rebaixamento na agenda transformada do PT que se rendeu muito mais a uma agenda de políticas compensatórias do que emancipatórias.
Faz-se necessário reafirmar e criticar, mesmo sendo acusado de “jogar água no moinho da direita” que a esquerda que não tem medo de se nomear esquerda não pode prescindir em agir pelos princípios republicanos e isso significa dizer algo muito simples, mas ao mesmo tempo forte: Dinheiro público é dinheiro público e não pode ser apropriado privadamente. O poder exige total e absoluta transparência. O Público é o espaço da luz, da luminosidade. O privado é o espaço da sombra. Isso aprendemos com Hannah Arendt que retomou o conceito de práxis política dos gregos. O que é a corrupção? É a confusão ou a ação deliberada da defesa dos interesses privados no espaço público.
A ética dos fins justifica os meios não é republicana. Para quem efetivamente se quer nomear de esquerda a justificativa de que nunca se fez tanto no país pelos pobres não pode ser aceita com atenuante dos erros e reprodução de práticas viciadas fundadas no patrimonialismo e no clientelismo.
A esquerda que não tem medo de se nomear esquerda também não deve recuar em sua concepção do que significa inclusão social. São evidentes os ganhos econômicos e a mobilidade social para cima, mas trata-se de uma inclusão efetivamente social ou de uma inclusão via mercado? De uma inclusão que se faz pelo acesso a saúde e educação de qualidade ou de uma inclusão pelo consumo?
O foco de Dilma tem sido o de dar continuidade ao crescimento da economia e dessa forma reeditar a Era Lula – a grande responsável pelo que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) denomina de “década da inclusão”, como já destacado. Porém, mesmo com mobilidade social, o grande paradoxo do Brasil persiste. Está entre as maiores economias do mundo, quando se utiliza o critério do Produto Interno Bruto (PIB) e as piores quando se utiliza o critério do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Apesar da “inclusão via mercado”, o país continua com déficits gigantescos na área social.
O Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, colaborador do IHU, ao longo de 2010 produziram análises da conjuntura semanais a partir da (re)leitura das “Notícias do Dia’ publicadas, diariamente, no sítio do IHU e da revista IHU On-Line publicada semanalmente. Como fecho do trabalho desse ano, apresentamos uma Conjuntura Especial que retoma os grandes conteúdos abordados pelas conjunturas semanais no ano de 2012.
(Ecodebate, 04/01/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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