Os inúteis caminhos para ‘derrotar a seca’, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] Com a cobertura mais frequente que a televisão vem dando nas últimas semanas à questão da seca no Semiárido nordestino, vai-se de espanto em espanto, diante da gravidade do panorama, da insuficiência – para não dizer ausência – de providências eficazes do governo federal e das informações sobre tudo o que se poderia fazer por caminhos competentes, mas não se faz. E tudo isso na mesma hora em que se vê a teimosia do foco oficial no projeto de transposição de águas, como se ele fosse o santo milagreiro – quando não é, já está custando quase o dobro do orçamento inicial (de R$ 4,6 bilhões para R$ 8,2 bilhões), com vários trechos parados, outros já necessitando de obras reparadoras e outros ainda, de novos “aditivos” nos orçamentos. Inacreditável.
Diz o Operador Nacional do Sistema Elétrico (Estado, 31/10) que o último mês de outubro foi o mais seco em toda a região nos últimos 83 anos. As opiniões de especialistas asseguram que se trata da mais forte estiagem entre 30 e 50 anos. Em depoimento na audiência pública da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, o diretor da Secretaria Nacional de Defesa Civil do Ministério da Integração Nacional (Agência Brasil) afirmou que 10 milhões de pessoas foram atingidas em 1.317 municípios.
Só em Pernambuco, segundo o engenheiro José Artur Padilha, criador do projeto Base Zero (Estado, 19/11), são 1,18 milhão de pessoas afetadas diretamente, enquanto mais 3,67 milhões sentem os efeitos em 122 dos 184 municípios do Estado. Só nas lavouras de subsistência as perdas já chegam a 370 mil hectares. Os rebanhos pernambucanos perderão15%, entre bovinos, ovinos e caprinos (remaatlantico, 7/11). Na Paraíba estão sofrendo 2,3 milhões de pessoas, ou 70% da população, em 198 dos 223 municípios, com situação de emergência decretada em 170 cidades. Na Bahia são 250 municípios em emergência. Em Caém, a 333 quilômetros de Salvador, não chove há um ano e meio (Estado, 31/10). No Piauí são 215 dias sem chuva, 200 municípios em emergência. E muitos especialistas já dizem que as chuvas só virão em 2013.
Será todo esse quadro uma fatalidade? Nada a fazer? Na mesma audiência na Câmara dos Deputados, o professor João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, especialista em recursos hídricos que há décadas se dedica ao problema, assegura que não (Agência Brasil, novembro/2012). Segundo ele, fome, seca e perdas poderiam ser evitadas se houvesse programas de abastecimento de água como o Luz para Todos. “Tem água sobrando para consumo humano e animal”, assegura. “Tem estoques de água suficientes para atender plenamente, mesmo em época como agora. São 10 bilhões de metros cúbicos armazenados na região acima do Rio São Francisco, em grandes reservatórios.” Só que não há sistemas de abastecimento ligados aos açudes, que servem apenas aos grandes proprietários rurais. E “com menos de 20% da disponibilidade hídrica dos reservatórios” se atenderia a toda a demanda local.
Mais surpreendente ainda, diz o professor Abner que “o Semiárido brasileiro é um dos sistemas ambientais mais chuvosos no mundo, mas o acesso à água não está democratizado”. Há 60 mil açudes reservados para poucos. E 95% da água se perde na evapotranspiração (!). Um programa do tipo Água para Todos custaria menos de R$ 20 por pessoa. Menos que o custo de um carro-pipa, lembra ele; um terço do custo da transposição do São Francisco.
Não é ele apenas que tem visões dessa natureza. Na mesma ocasião, o professor João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, depois de acentuar que metade da população “sofre com seca e fome”, lembrou que 80% das secas são “no miolo da região”, por má distribuição dos recursos. Esta não atende a diretrizes já definidas há décadas, inclusive pelo Ministério do Meio Ambiente, segundo as quais é preciso ter “estratégias de convivência” com o Semiárido – e não tentativas de “combater a seca”. A propósito, há alguns anos, quando fazia um documentário para a TV Cultura sobre o tema, o autor destas linhas ouviu do consagrado e experiente escritor Ariano Suassuna (que cria cabras na região) que “tentar combater a seca no Nordeste é o mesmo que tentar impedir que caia neve sobre a Sibéria”.
Também o professor João Suassuna enfatiza o problema de manter a água estocada em reservatórios (só no Ceará, 8 mil, com capacidade para 18 bilhões de metros cúbicos), sem distribuição. Para ele, mesmo depois de concluída a transposição do São Francisco persistirá o problema das populações que vivem em pequenas comunidades isoladas, aonde não chegarão adutoras – os 12 milhões de pessoas para quem “será levada uma caneca de água”, no dizer do ex-presidente da República. Por isso, em lugar de transpor água, o governo deveria pensar nos projetos contidos desde 2006 no Atlas do Nordeste de Abastecimento de Água, coordenado pela própria Agência Nacional de Águas – e que custariam, para executar, menos de metade (R$ 3,3 bilhões) do investimento na transposição e atenderia 34 milhões de pessoas.
E há mais. Desde o final da década de 90 o engenheiro José Artur Padilha vem experimentando – e viabilizando – em Afogados da Ingazeira (PE) o sistema chamado de Base Zero. São barragens construídas em leitos de rios secos, só com pedras, em cujos interstícios, sem argamassa, se depositam na época das chuvas sedimentos e materiais orgânicos que fertilizam a área no entorno. A água infiltrada e retida nos períodos chuvosos permite o plantio na seca. E cada bacia assim fertilizada pode tornar viável o desenvolvimento adequado para 40 a 50 famílias em 2 mil hectares. No Polígono das Secas, com 800 mil quilômetros quadrados, seria possível atender por esse caminho 2 milhões de famílias. Desde 1999 (6/5) este escriba comenta o projeto neste espaço. Mas os formuladores de políticas não se comovem.
Soluções há. Sem tentar, inutilmente, derrotar a seca.
Washington Novaes é jornalista.
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 03/12/2012
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Muito interessante o artigo de Washington Novaes. Comentando os efeitos desastrosos provocados pela seca no Nordeste, que neste ano está sendo a mais calamitosa desde 1958, ele cita o escritor Ariano Suassuna, que disse: “tentar combater a seca no Nordeste é o mesmo que tentar impedir que caia neve sobre a Sibéria”.
Portanto, Washington Novaes não apresenta sugestões para combater a seca, mas para combater seus efeitos e uma delas foi levada pelo Prof. João Abner à Câmara dos Deputados: a criação de sistemas de abastecimento ligados aos açudes. Trata-se de um assunto que vem há muito tempo sendo discutido, mas que esbarra em dificuldades consideráveis. A distribuição de água fora da bacia drenada por um açude implica em se fazer uma transposição, com bombeamento contínuo. Por isso, os açudes têm-se limitado a abastecer as comunidades próximas. Uma rede interligando os grandes açudes, ultrapassando os divisores de água entre as bacias, teria um custo proibitivo e, tal qual a transposição de águas do Rio São Francisco, cujo alcance é limitado a 12 milhões de habitantes em 2025, num universo atual de 30 milhões de pessoas, as redes de abastecimento utilizando água desses reservatórios não chegariam à população do semiárido distante dos centros urbanos. Surpreende, no entanto, que o jornalista condene a transposição de águas do Rio São Francisco, pois, embora seja uma obra de maior vulto, não se diferencia muito da rede de abastecimento que ele defende e que, necessariamente, envolveria sucessivas transposições entre as bacias do semiárido.
Aproveito a oportunidade para corrigir as palavras atribuídas ao Prof. João Abner. Ele não disse que o semiárido brasileiro é um dos sistemas ambientais mais chuvosos no mundo, mas que é o semiárido mais chuvoso do mundo. Suas palavras foram publicadas de forma equivocada e vêm sendo reproduzidas erradamente nos diferentes artigos que a citam.
Outra medida seria a implantação dos projetos do Atlas do Nordeste de Abastecimento de Água, que apresenta os meios de abastecimento de sedes municipais com mais de 5 mil habitantes, num total de 34 milhões de pessoas, incluindo as cidades que já possuem abastecimento público de água. Trata-se de uma solução importante, visto que é uma verdadeira vergonha para o país ter cidades com população superior a 5 mil habitantes que sequer tenham abastecimento de água. São projetos que devem ser implementados com urgência, mas, mais uma vez, ficam restritos à população urbana, não beneficiando a população do semiárido distante dos centros urbanos.
Vai mais adiante o jornalista: que dizer de barragens construídas em leitos de rios secos, só com pedras, em cujos interstícios, sem argamassa, se depositam na época das chuvas sedimentos e materiais orgânicos que fertilizam a área no entorno? Trata-se de medida importante e que vem sendo usada com sucesso em Pernambuco, onde há áreas com topografia adequada, mas, infelizmente, a maior parte do semiárido não apresenta condições propícias a sua implantação.
Existem muitas soluções para minimizar os problemas advindos das secas que assolam o semiárido brasileiro. Esse debate é altamente positivo, porque mostra que a população está atenta e ficará vigilante para denunciar obras que, desde o Império vêm sendo feitas com o objetivo de minimizar os efeitos das secas, mas muitas delas não foram concluídas.