MP 579. Quem sai ganhando?
A medida interfere na dinâmica da geração, produção e distribuição de energia. A MP 579 propõe a antecipação da renovação das concessões do setor elétrico (privadas e públicas – grande parte dela de ativos públicos estaduais) que vencem de 2015 a 2017 por mais 30 anos. De acordo com Constituição da República, todos os potenciais hidráulicos pertencem ao país e são parte do patrimônio nacional, assim como as concessões dos sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica. Uma vez vencidas as concessões e, caso não renovadas, elas devem ser integradas ao patrimônio público.
Com a MP 579, o governo pretende reduzir a tarifa da energia em 16% para os consumidores e 28% para as empresas. Em troca da renovação antecipada, as empresas retirariam do preço da tarifa o valor referente a ativos já amortizados ou depreciados, ou seja, investimentos que já se pagaram e reduziriam a tarifa desde já.
A MP 579 interfere no intricado jogo que envolve o bilionário negócio da energia em crescimento no país. Envolve capital privado, fundos de investimentos acionários e especulativos, ativos estaduais controlados por governadores, empreiteiras etc. Fazem parte desse universo, 123 geradoras de energia, que somam uma capacidade instalada de 20.000 megawatts (MW), equivalente a 20% do parque gerador brasileiro; 44 distribuidoras que dominam 35% do mercado consumidor e 9 transmissoras, proprietárias de 85 mil quilômetros de linhas, ou 67% da rede do Sistema Interligado Nacional.
O debate ficou ainda mais acalorado após os três grandes apagões ocorridos nos últimos meses (22 de setembro, 03 de outubro e 25 de outubro). Mesmo os apagões tendo acontecidos depois da publicação da MP 579 acabaram por contribuir para intensificar o debate.
O anúncio da medida desatou forte polêmica. De um lado, as empresas que operam na geração, transmissão e distribuição de energia acostumadas com altas taxas de remuneração não gostaram da ideia de reduzir ganhos a curto prazo mesmo ganhando no longo prazo; o governo irritou-se com as empresas porque considera que está propondo um bom negócio e do outro; os movimentos sociais demonstraram perplexidade com a proposta e manifestaram dubiedade na análise da MP 579.
Hipoteca do patrimônio público?
No contexto da polêmica, dúvidas e falta de conhecimento da MP 579, é oportuna a entrevista do pesquisador Ildo Sauer, um dos maiores especialistas em política energética brasileira, ao IHU On-Line.
Sauer é um contundente crítico da MP 579. Segundo ele, a medida resulta no “reconhecimento da presidência da República de que o sistema energético brasileiro vem sendo gerido de maneira deficiente e sem interesse público nas últimas décadas”.
O pesquisador diz que o governo pretende “hipotecar o patrimônio público” para reduzir a tarifa média de energia. Segundo ele, a proposta é ineficaz e responde a uma pressão da imprensa, “comandada por federações de indústrias, que fazem coro ao debate de que a energia elétrica no Brasil está muito cara”. Diz ele: “Existe uma pressão muito grande na imprensa, comandada por federações de indústrias, que faz coro ao debate de que a energia elétrica no Brasil está muito cara. Esses grupos de interesse estão pressionando o governo para que ele utilize o patrimônio público herdado depois de meio século para ajudar a favorecer grupos que já se beneficiaram na última década”.
Segundo ele, a tarifa é cara no Brasil “porque foram feitos contratos no governo FHC e no governo Lula, que dão enorme taxa de retorno sobre os investimentos em geração, em linhas de transmissão e em sistemas de distribuição”. Em sua análise, “foram escolhidos projetos fora da ordem natural de mérito, econômico, técnico, ambiental ou social, ou todos esses. Além disso, vários projetos, como o de usinas de carvão, que têm altíssimo custo, foram contratados em leilões improvisados. Em seguida, foram contratadas as usinas do rio Madeira e de Belo Monte, com controvérsias ambientais e sociais. Tudo isso aconteceu porque o governo não fez um planejamento de todo o potencial hidrelétrico brasileiro, do potencial de modernização e repotenciação de usinas antigas existentes”. Logo, diz ele, “a falta desses projetos e a opção por projetos como o do rio Madeira é o que faz a tarifa ser cara no país. Além disso, quando a construção de novas usinas atrasa, em vez de o governo multar os que venderam e não entregaram, ele faz acordos, e todos esses custos acabam sendo repassados aos consumidores”.
O capital ganha mais
Com a MP 579, Sauer diz ainda que o “governo está se escondendo atrás da pressão desses grupos de interesse, da ansiedade da classe média brasileira, que está sendo onerada com tarifas muito altas pela má gestão do sistema, pela precariedade demonstrada nos apagões recentes. O que o governo quer fazer com essa MP é anunciar um pequeno alívio tarifário para a classe média. A reivindicação da população é legítima, mas a forma como o governo quer fazer isso é absolutamente inaceitável do ponto de vista de quem considera o interesse público”, afirma.
Para o professor da Usp a medida em nome de beneficiar os consumidores vai acabar beneficiando sobretudo o capital: “(…) há muita reclamação do setor produtivo que são cerca de 1.500 consumidores, que consomem aproximadamente 28% de toda a eletricidade brasileira e que têm enorme poder de barganha, mas que continuam fazendo uma pressão enorme para continuar recebendo energia a preços muito abaixo dos custos”. Segundo ele, “no Brasil, a energia não custa menos de cem reais o megawatt-hora (MWh), mas esses consumidores pagaram cerca de 20 reais por MWh durante longos períodos”.
O pesquisador comenta que mesmo entre os consumidores ganhará proporcionalmente mais quem consome mais. Diz ele: “o governo vai anunciar publicamente que a tarifa média irá diminuir para todos, só que quem mais consome energia no Brasil são aqueles que têm mais renda. Portanto, qualquer benefício linear, como o que está sendo proposto, beneficiará só os mais ricos e deixará de fora 2,5 milhões de pessoas que ainda não têm acesso à energia”.
Sauer destaca que “o custo da energia não irá baixar; apenas irão vender a energia pelo custo de operação e manutenção, sem remunerar o seu valor. É isso o que Dilma quer fazer. Com isso ela acha que irá reduzir em 28% o custo dos grandes consumidores e em 16% o dos pequenos e médios consumidores”. E dispara: “O irônico é que provavelmente a população vai gostar da medida, porque vai ter um alívio pequeno nas tarifas. Só que vamos pagar mais caro no futuro, porque a falta de educação e saúde públicas continuará fazendo esse povo se refugiar em casamatas e contratar segurança privada. Nós vamos continuar aumentando a distância entre os segmentos sociais em vez de resolvê-la”.
Dualidade de comportamento
O pesquisador identifica também o problema energético brasileiro a partir do seu marco regulatório: “O problema está na filosofia regulatória que a Aneel tem seguido, e que precisava e deveria ter sido revista em 2003, mas não foi. Nitidamente estamos vendo que o governo tem centrado o foco nos contratos de novas linhas de transmissão, e tem abandonado substancialmente, o modelo de regulação e controle sobre o sistema elétrico. A Aneel está sediada em Brasília, e as equipes técnicas não vão a campo para verificar o estado real do sistema de geração, transmissão e distribuição de energia”.
Outro problema, diz ele, “é que os papéis dos agentes do setor estão muito diluídos, porque há um número muito grande deles, como a Agência Nacional de Energia Elétrica, o Operador Nacional do Sistema, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, a Empresa de Planejamento Energético, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico, o Conselho Nacional de Política Energética, o Ministério de Minas e Energia, além de outros atores e de empresas públicas e privadas”.
Sauer denuncia ainda o padrão tecnológico dos equipamentos. Diz ele que “muitas das distribuidoras e transmissoras de energia, quando compram equipamentos novos, o fazem com base no menor preço e isso lhe dá o maior lucro. Nem sempre esse é o melhor padrão tecnológico e de maior confiabilidade”.
Para ele, a MP 579 é um paliativo para os males brasileiros. Diz ele: “Mas há que se ressaltar que os males foram causados inicialmente no governo Fernando Henrique Cardoso, e foram aprofundados nos governos Lula e Dilma. Agora, com a renovação das concessões de geração, transmissão e distribuição de energia, pretende-se hipotecar o patrimônio público por aproximadamente 35 anos, conforme a MP prevê, para reduzir a tarifa média de energia”.
Para Sauer, “o problema é que grupos econômicos continuam ganhando muito dinheiro, os projetos para expansão da oferta de energia continuam sendo mal escolhidos e a taxa interna de retorno continua altíssima. O governo não faz nada porque os empresários fazem parte da rede de amigos do governo anterior e do governo atual”.
Segundo ele, “o governo atende às pressões que estão à mesa, que estão na imprensa, no parlamento, na base de apoio, nos círculos empresariais, e vai entregar o patrimônio público ao setor privado com aura de quem está resolvendo um problema histórico da população”.
Conclui Sauer: “De maneira que nessa dualidade de comportamento – ou seja, entre aquilo que acontece nas entranhas do governo, dentro das relações econômicas, políticas e sociais e o que é anunciado publicamente – parece haver uma ‘Carminha Rousseff’. Ou seja, alguém que tem, de um lado, uma imagem pública altamente generosa, benevolente e, nas entranhas, comete toda e qualquer ação em benefício das artimanhas que atendem às pressões dos grupos dominantes”.
A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
(Ecodebate, 19/11/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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