Cacique Guarani-Kaiowá na IV Aldeia Multiétnica na Chapada dos Veadeiros (Anne Vilela/Agência de Notícias Cavaleiro de Jorge)
É muito positiva e surpreendente a comoção que uma carta manifesto escrita pela comunidade Guarani Kaiowá da aldeia Pyelito Kue, localizada no complexo de Iguatemi Pegua, provocou na opinião pública em relação ao genocídio que há décadas se instalou contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul. Diversas pessoas que agora tomam conhecimento da situação inaceitável que enfretam os Guarani e Kaiowá no cone sul do Estado têm se manifestado nas redes sociais repudiando o genocídio e a conivência de diversos setores dos governos estadual, federal e do Poder Judiciário. Personalidades públicas e entidades têm feito o mesmo. A repercussão do tema, embora não ganhe o espaço que deveria nos grandes meios de comunicação (também coniventes), traz a esperança de que uma ampla divulgação desta tragédia possa trazer a força que falta para a regularização das terras tradicionais reinvindicadas pelos Guarani e Kaiowá no MS, única forma de resolução do conflito.
O que é surpreendente é que ações judiciais contra os indígenas no MS, despejos, assassinatos, violência e racismo são há muito o dia-a-dia dessas comunidades e nunca tanta gente se deu conta disso. Por isso, é importante que essa comoção seja acompanhada de um conhecimento efetivo dos nós que emperram os processos de regularização de suas terras, para que a vontade de ajudar não se esgote rapidamente, como costuma ser o caso, numa sensação de que o problema é insolúvel e numa descrença generalizada em relação à capacidade e disposição do poder público em quitar a dívida monstruosa que tem com os Guarani e Kaiowá.
É evidente que a regularização das terras indígenas no Mato Grosso do Sul, assim como ocorre em outros Estados, esbarra nos interesses e numa postura intransigente de parte dos ruralistas, que hoje têm peso enorme na correlação de forças dos governos federal e estadual, e, sobretudo, têm meios financeiros para exercer uma pressão esmagadora para que o Poder Judiciário emperre ao máximo os processos.
Esses são os dois nós que emperram os processos e que precisam ser desatados ao mesmo tempo para que os índios de fato tenham posse plena das terras: 1) a falta de prioridade orçamentária e política do Governo Federal para finalizar os estudos de identificação e delimitação das terras indígenas no MS; 2) a conivência do Poder Judiciário, muitas vezes curvado à pressão e aos interesses dos ruralistas no sentido de paralisar os processos, nas suas mais diversas fases.
Nesse contexto, o CTI acredita que seria preciso um mecanismo que permitisse “convencer” os proprietários de boa-fé a retirar as ações contra os processos de regularização das TIs e que ao mesmo tempo permitisse ao Governo Federal levar a cabo esses processos dentro dos marcos do artigo 231 da Constituição Federal de 1988 (ver box abaixo). Ocorre que esse mecanismo já existe no Mato Grosso do Sul, e nenhum dos setores majoritários do Governo Federal que alegam ter interesse em resolver a questão se empenhou em utilizá-lo.
Fica evidente, portanto, que falta muita vontade política do Governo Federal e é preciso que a pressão da opinião pública se direcione no sentido de provocá-lo a usar dos mecanismos que já tem em mãos para resolver a questão.
Explicando melhor: o Governo do Mato Grosso do Sul aprovou a Lei Estadual nº 4.164/2012, que “autoriza o Poder Executivo a Criar o Fundo Estadual de Terras Indígenas”, o FEPATI. Esse mecanismo permite, sem qualquer alteração da Constituição de 1988, a criação de um fundo financeiro para indenizar proprietários de boa-fé cujos imóveis incidam sobre as terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Pela Constituição de 1988, Artigo 231, § 6º, os títulos emitidos sobre terras tradicionalmente ocupadas são nulos e, portanto, os imóveis a que se referem não podem ser indenizados. Através dessa Lei o Estado do Mato Grosso do Sul implicitamente reconhece que emitiu títulos inválidos e pretende indenizar os proprietários de boa fé pagando-lhes pelo valor da chamada “terra nua” (posto que as “benfeitorias de boa fé” erigidas nos imóveis são indenizáveis pelo parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição).
Esse nó da indenização da chamada “terra nua” tem motivado o Governo Federal, sobretudo o Ministério da Justiça, e os próprios ruralistas a justificar uma suposta necessidade de alterar a Constituição Federal de 1988 para resolver os conflitos mais acirrados envolvendo terras indígenas, como os do Mato Grosso do Sul. Com isso eles jogam uma cortina de fumaça no problema, fingindo buscar uma solução conciliatória, mas pretendendo na verdade restringir ainda mais os direitos dos povos indígenas no Brasil inteiro.
Mas uma possível solução já está nas mãos do Governo, por meio da recém aprovada Lei Estadual 4.164, e o Ministério da Justiça nada faz para tentar buscar recursos para o FEPATI e negociar com os proprietários de boa fé a retirada das ações judiciais. Ao contrário, é conivente com medidas de flagrante desrespeito aos índios, que só fazem aumentar o problema, como a polêmica e inconstitucional Portaria 303, da AGU.
Conclamamos todos a pressionar o Ministério da Justiça, a Casa Civil e a Presidenta para reunir seus esforços no sentido de buscar recursos para o FEPATI, e negociar a retirada das ações judiciais contra os índios! Se o problema é indenizar proprietários de boa-fé (que não são tantos assim, se forem julgados aqueles que realizam ou realizaram ações violentas contra os índios), a saída já está nas mãos do Governo. Qualquer alegação ao contrário, ou propostas irresponsáveis de alteração do artigo 231, são meras desculpas e devem ser combatidas.
Se houver interesse efetivo do Governo, uma campanha internacional para emponderar e angariar recursos para o FEPATI, negociando a retirada das ações judiciais, poderia contribuir decisivamente para garantir aos Guarani e Kaiowá a regularização e usufruto efetivo de suas terras tradicionais, resgatando a dignidade desses povos.
MAPA GUARANI RETÃ – POVOS GUARANI NA FRONTEIRA ARGENTINA, BRASIL E PARAGUAI
Em 2008, um levantamento da situação fundiária realizado pelo CTI em parceria com a Universidade Católica Dom Bosco e apoio do CIMI e diversas instituições do Paraguai e da Argentina resultou no mapa Guarani Retã, que exibe todos os assentamentos dos povos Guarani (Kaiowá, Ñandeva-Avá, Mbyá e Aché) na região de fronteira Brasil-Paraguai-Argentina, fornecendo um apanhado demográfico sobre eles.
O levantamento apurou uma população guarani de cerca de 100 mil pessoas em 2008 (hoje é maior), vivendo em mais de 500 assentamentos nos três países. O mapa, acompanhado de encarte homônimo permite visualizar a grande concentração demográfica e o pequeno número dos assentamentos guarani no Estado do Mato Grosso do Sul, demonstrando o processo histórico de esbulho sistemático de seus territórios.
UMA POSSÍVEL SOLUÇÃO PARA A QUESTÃO FUNDIÁRIA INDÍGENA NO MS
Proposta do CTI de 2003 previa mecanismo semelhante ao recém criado FEPATI
Tendo acompanhado a questão fundiária dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul desde a década de 1980, e já à época antevendo o processo de judicialização da questão fundiária indígena, o CTI propôs em 2003 uma saída jurídica para a resolução das pendências judiciais que paralisavam os processos administrativos de reconhecimento das terras indígenas, sobretudo no MS (ver documento). O historiador e indigenista Antonio Brand, hoje já falecido e então professor da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), encampou a idéia de uma lei estadual que ao mesmo tempo reconhecesse a falsidade dos títulos que o Estado do MS deu a proprietários em terras de ocupação tradicional indígena e permitisse a indenização da terra nua sem ferir o artigo 231 da Constituição Federal.
Brand, destacado defensor dos direitos dos povos Guarani e Kaiowá e na época coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas da UCDB, levou a ideia à Assembléia Legislativa do MS, na tentativa de angariar apoio de deputados para uma proposta que contribuísse para a resolução do conflito. Finalmente, em 2012, a Assembléia Legislativa resolveu por em Lei (a de nº 4.164, publicada no Diário Oficial do Estado do Mato Grosso do Sul em 08/02/2012) uma proposta deste teor. O recém criado Fundo Estadual de Terras Indígenas (FEPATI) permite o Estado do Mato Grosso do Sul indenizar a terra nua de proprietários de boa fé cujas propriedades incidam sobre terras tradicionais indígenas.
Essa é a questão principal por trás das demandas judiciais de proprietários rurais: o pagamento da terra nua – proibida pelo artigo 231 da Constituição Federal. A proposta do CTI de 2003, em parte atendida pela Lei 4.164, é que o Estado do MS pague ao proprietário de boa fé a terra nua reconhecendo que concedeu um título falso ao proprietário, já que incide sobre terra de ocupação tradicional indígena. Este era o espírito da proposta. A aquisição de terras para os indígenas, tal como formulada na citada Lei 4.164, deve ser utilizada como último recurso.
Há questões ainda por resolver na aplicabilidade da Lei 4.164 (como por exemplo, sobre a obrigação do proprietário indenizado de retirar ações que porventura interpôs contra a União e FUNAI ou ainda sobre outras formas de abastecimento financeiro do FEPATI), mas é uma solução que já está com meio caminho andado para o reconhecimento das terras tradicionais dos Kaiowá e Ñandeva.
O CTI conclama seus parceiros, entidades ou indivíduos sensibilizados com os problemas destes povos a pressionarem a Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, o Congresso Nacional e o Governo Federal a por em prática o FEPATI, sugerindo normas (por Decretos ou Portarias) que o regulamentem, e a cobrarem do Governo Federal que disponibilize os recursos financeiros (do FAT, do orçamento da União…) adequados para seu funcionamento.
Nota do CTI, encaminhada por Helena Azanha para o EcoDebate, 30/10/2012
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