O pesado custo ambiental da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós
A determinação do governo em levar adiante o plano de construir a última grande hidrelétrica do Brasil poderá impor um custo ambiental sem precedentes na história do país. A usina de São Luiz do Tapajós, que teria potência inferior apenas a Itaipu, Belo Monte e Tucuruí, produziria 6.133 megawatts (MW) de energia a partir da construção de uma muralha de 3.483 metros de comprimento atravessada no coração da Amazônia.
A reportagem é de André Borges e publicada pelo jornal Valor, 25-07-2012.
Essa barragem, que teria 39 metros de altura, o equivalente a um prédio de 13 andares, seria erguida em uma das áreas mais protegidas da região: o Parque Nacional da Amazônia, a primeira unidade de conservação demarcada na chamada Amazônia Legal. Com outras 11 unidades, essa área forma o imenso complexo da bacia do Tapajós, o maior mosaico de biodiversidade do planeta.
O que está em jogo é a inundação total de 1.368 quilômetros quadrados de floresta virgem, uma área quase do tamanho da cidade de São Paulo, equivalente a duas vezes e meia a inundação que será causada pela hidrelétrica de Belo Monte, em construção no rio Xingu, também no Pará. Com a usina de São Luiz – e também Jatobá, segunda hidrelétrica planejada para o rio – o Brasil adicionaria 8.471 megawatts (MW) à sua matriz energética. Em Belo Monte, onde o lago é de 516 km quadrados, a potência é de 11 mil MW.
Durante uma semana, o Valor percorreu toda a região por estrada, floresta e pelo rio Tapajós, ouvindo especialistas ambientais, técnicos em energia, lideranças do governo, ribeirinhos, índios, garimpeiros e a população dos municípios que serão diretamente atingidos pelo empreendimento. A construção de São Luiz e Jatobá ainda não é fato consumado. Os projetos estão em fase de levantamento para elaboração do relatório de impacto ambiental, trabalho que está sendo executado por cerca de cem pesquisadores de empresas contratadas pela Eletrobras, um grupo de técnicos que sobe e desce o rio o dia inteiro.
Embora os estudos estejam em fase preliminar, as polêmicas em torno dos empreendimentos já atingem um estágio crítico e dão uma ideia da dificuldade que o governo enfrentará para levar adiante o plano de erguer hidrelétricas numa Amazônia onde estão as terras e rios mais preservados do país.
“O Tapajós apresenta uma situação inédita para o governo. Nunca atuamos em uma área preservada como essa região”, afirma o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Mauricio Tolmasquim. De fato. Em empreendimentos como Jirau e Santo Antônio, que estão em conclusão nas proximidades de Porto Velho (RO), as hidrelétricas funcionaram – ao menos teoricamente – como vetor de desenvolvimento social da região. Esse mesmo tipo de argumento também sustentou o licenciamento de Belo Monte, que prevê, por exemplo, a realocação de aproximadamente 7 mil famílias.
No Tapajós é diferente. Itaituba, o maior município da região, com 110 mil habitantes, está a quase 70 quilômetros abaixo do local previsto para a barragem de São Luiz e deverá ser pouco atingida. No geral, o impacto social chega às comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas. É no ambiente, no entanto, que o impacto é profundo.
“Temos o total interesse em preservar o ambiente o máximo possível. A questão que se coloca é saber se a construção das usinas é incompatível com a preservação. Nós acreditamos que os projetos são viáveis”, diz Tolmasquim.
Para viabilizar os estudos de São Luiz e de Jatobá, a presidente Dilma Rousseff publicou em janeiro uma medida provisória (convertida em lei em junho), reduzindo as unidades de conservação nas áreas que serão atingidas pelas obras. A MP foi contestada pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, e foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que avalia a constitucionalidade da medida.
Apesar de o governo argumentar que a “desafetação” das áreas tem apenas o propósito de liberar a etapa de estudos das usinas, o Valor verificou que a redução das florestas já incluiu toda a área planejada para construção das hidrelétricas, incluindo seus canteiros de obra e a área que será inundada. A grande diferença desses empreendimentos para uma hidrelétrica como Belo Monte, por exemplo, é que mais da metade da floresta da usina do rio Xingu já estava ocupada por algum tipo de atividade antes da liberação do empreendimento. No caso do Tapajós, praticamente tudo está preservado.
O governo sustenta que não reduziu as áreas de conservação. Pelo contrário, as florestas foram ampliadas em 20.939 hectares. Ocorre que, das oito reservas que sofreram com os cortes, apenas duas tiveram reposição em algum outro ponto. “As áreas que foram ampliadas não têm, nem de longe, a relevância ambiental das regiões que serão inundadas. É lamentável. Esse argumento de que houve ampliação é um insulto à inteligência das pessoas”, diz Brent Millikan, diretor da organização Amazonia International Rivers.
A redução das florestas afetou, principalmente, o Parque Nacional da Amazônia, decisão que causou indignação para técnicos e analistas ambientais da região. “Estávamos trabalhando a mil por hora no plano de manejo do parque. De repente, fomos avisados que parte do parque simplesmente iria ser desafetada”, diz Maria Lucia Carvalho, chefe do Parque Nacional da Amazônia, ligada ao Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio). “Foram quatro anos de trabalho para nada. Recebemos esse banho de água gelada, o trabalho todo foi perdido.”
No parque já foram catalogadas mais de 390 espécies de aves e outras 400 de peixes. A riqueza entre os mamíferos inclui animais em extinção como onça-pintada, onça-vermelha, tamanduá-bandeira e jaguatirica. Na área da barragem de São Luiz, há uma das tantas formações de pedras que, durante o período da seca – que atinge o auge em setembro -, transformam-se em imensos corredores ecológicos para a travessia dos animais de uma margem à outra do Tapajós.
A preocupação com os peixes também é grande, devido à mudança no fluxo do rio. A região é cheia de corredeiras. As espécies que conseguirem subir a escada de peixe da usina, por exemplo, chegarão ao lago da barragem precisando de mais oxigênio devido ao esforço, mas encontrarão água represada, com quantidade menor de oxigênio que o necessário.
“A expectativa é que 90% das espécies de peixes sumam. Para mim, como técnica ambiental, é inegável a sensação de constrangimento ao ver o que querem fazer com o rio mais bonito da Amazônia”, desabafa Maria Lucia. “Não há nada igual ao Tapajós. Se essas barragens saírem, será a morte do rio como ele existe hoje.”
O inventário da bacia foi realizado pela Eletrobras, em parceria com a Camargo Corrêa. A construtora não quis se pronunciar sobre o assunto. A Eletrobras não se manifestou até o fechamento desta edição. O governo quer concluir os estudos ambientais de São Luiz e Jatobá até início do ano que vem. A previsão era leiloar as usinas até julho de 2013, mas o prazo mais atualizado é o fim do ano que vem.
Estradas ficariam sob as águas
Não são apenas as unidades de conservação da Amazônia que teriam parte das reservas inundada pelas águas das barragens de São Luiz do Tapajós e de Jatobá. Com o enchimento dos lagos dessas usinas, pelo menos 60 km da rodovia Transamazônica (BR-230), que circunda boa parte das reservas florestais da região, ficariam completamente debaixo d’água.
Esse trecho da rodovia está localizado dentro do Parque Nacional da Amazônia, que é cortado por 112 km da estrada de terra. Com a inundação, o governo seria obrigado a desviar a rodovia para outra área do parque, ampliando ainda mais a faixa de desmatamento.
A construção de hidrelétricas no coração da Amazônia ameaça ainda outras estradas que, ao contrário da Transamazônica, estão recebendo asfalto. É o caso da BR-163, rodovia à margem direita do Tapajós, que liga Cuiabá (MT) a Santarém, no Pará. A BR-163. A estrada, que está com vários trechos em obras, corta ao meio a Floresta Nacional do Jamanxin, área de extrema relevância ambiental, porque é o único elo protegido entre o complexo de biodiversidade do rios Tapajós e Xingu, onde está sendo construída Belo Monte.
Os técnicos do instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) avaliam que, se saírem do papel as três usinas previstas para o rio Jamanxin, principal afluente do Tapajós, quase toda a BR-163 ficaria embaixo d’água no trecho que corta a reserva.
“A BR-163 chegou a ter plano de desenvolvimento sustentável, que ainda não foi executado. Hoje, está sendo asfaltada, mas, ao mesmo tempo, o governo pretende instalar usinas no Jamanxin. É mais um exemplo da falta de planejamento sobre o tipo de desenvolvimento que se quer para a Amazônia”, diz Brent Millikan, da organização Amazonia International Rivers.
Embora ainda não haja números precisos sobre esse tipo de impacto que seria causado pelas usinas do Tapajós, a tendência é que a inundação da Transamazônica seja ainda maior, à medida que as barragens avancem em unidades de conservação cortadas pela rodovia. “O governo tem sido incapaz de realizar esse conjunto de empreendimentos de maneira correta e estruturada”, diz Alessandra Cardoso, coordenadora do Observatório de Investimentos na Amazônia, ligado ao Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Parte das dificuldades do governo apontadas pelos especialistas está atrelada à baixa qualidade de informações técnicas sobre a região. Órgãos ambientais e ministérios ligados ao setor de infraestrutura possuem tipos diferentes de mapeamento. Há sobreposição de dados relacionados às terras indígenas e às unidades de conservação. Além disso, faltam informações para suportar avaliações técnicas mais aprofundadas.
Vila teme impacto da obra e expulsa pesquisadores
A vila de Pimental, comunidade de ribeirinhos onde vivem 760 pessoas, tornou-se símbolo de resistência local ao projeto de erguer usinas no Tapajós. Os primeiros a sentir na pele a contrariedade da população foram os pesquisadores de empresas de licenciamento ambiental contratadas pela Eletronorte, braço do grupo Eletrobras.
Numa recente visita à região, um grupo de pesquisadores tentou entrar na vila. Sem ter feito nenhum tipo de contato prévio, passaram a fazer perguntas aos moradores e a circular pela comunidade. Em pouco tempo, um grupo de ribeirinhos se organizou e impediu a passagem dos pesquisadores. Não chegou a haver confusão, mas todos acabaram expulsos do local.
Com o apoio de representantes do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) e da Fundação Nacional do Índio (Funai), o Valor conseguiu entrar em Pimental conversar com alguns moradores, entre eles José Odair Pereira, liderança da vila. “Essas pessoas chegam na comunidade e só fazem perguntas. Queremos saber o que pode acontecer com a nossa vida e nossas casas, mas eles não explicam nada pra ninguém. Então a gente decidiu proibir”, diz Pereira. “A Eletronorte veio aqui e disse que tinha autorização do presidente para entrar. Não é assim. Aqui não tem prefeito, vereador, governador ou presidente. Aqui é nossa casa, quem manda somos nós.”
Para controlar o acesso, Pimental passou a determinar que a entrada de pessoas estranhas só pode ocorrer com autorização. “Estamos preocupados com nosso povo, com o rio e com o peixe”, diz Pereira. “De janeiro para cá, isso aqui virou um inferno, com gente de fora chegando e querendo entrar.”
Há pouco mais de um ano, conta o chefe da comunidade, dois helicópteros pousaram no campinho de futebol da vila. “Tinha estrangeiro no meio deles, acho que eram chineses. Alguns falavam português. Disseram que vinham por causa da usina. Fizeram demarcações nas ruas e foram embora. O povo arrancou tudo.”
Numa das casas de taipa de Pimental, vive a matriarca da vila, Maria Bibiana da Silva, conhecida como “vó Gabriela”, de 104 anos de idade. Crescida nas margens do Tapajós, vó Gabriela chegou ao local em 1917. Lúcida, apenas com dificuldade para caminhar, ela diz que não quer a barragem. “Tenho vontade de morrer é aqui. Se me tirarem daqui, vão me colocar onde? Querem tirar o sossego da gente”, diz ela. “Cheguei nesse lugar com nove anos e me criei aqui. Fico triste com essa história da barragem, mas tenho fé que não vão fazer. Se eu ainda fosse boa das minhas pernas, aguentava um bocado e ia brigar com eles para não fazer.”
Na semana em que o Valor esteve na vila, corria a notícia de que os pesquisadores voltariam em breve à comunidade. O líder de Pimental, José Odair Pereira, disse que tinha ouvido algo sobre assunto, mas não confirmou a liberação para a entrada dos técnicos. “Quem está no escritório, tranquilo, com ar-condicionado, não sabe o que estamos passando aqui, quando falam que vão erguer essa barragem e inundar as nossas casas.”
A tensão verificada em Pimental se espalha por outras comunidades ribeirinhas e chega até Itaituba. O governo garante que os projetos serão realizados da maneira mais técnica e cuidadosa possível. Não é o que pensa a comunidade de São Luiz do Tapajós, onde vivem cerca de 1,5 mil pessoas, numa área muito próxima do local onde se prevê a construção da barragem de São Luiz.
Para levantar as informações sobre o impacto ambiental da hidrelétrica, empresas contratadas pela Eletrobras têm recorrido à experiência da população da vila para entrar na floresta e percorrer os rios. O Valor conversou com alguns “mateiros”, como são chamados esses guias. Cada um recebe R$ 35 para ficar rodando o dia inteiro pela mata com os pesquisadores. Não há qualquer tipo de formalização ou contrato de serviço. Também não existe nenhum tipo de seguro, assistência médica ou mesmo roupa e sapatos adequados. O pagamento é feito no dia, em dinheiro.
“É um contrato de boca, sem nenhum recibo. O trabalhador não sabe nem o nome da empresa que ele está levando por aí”, diz Zideci Bezerra, dono de um pequeno comércio na vila São Luiz e morador há 30 anos na região. Segundo os mateiros, cerca de 40 moradores já foram chamados para ajudar nos serviços, que incluem a coleta de animais e plantas.
De maneira geral, a principal queixa é a falta de informação. A população vê os pesquisadores cruzarem o rio por todo lado, com mapas nas mãos, fazendo perguntas e anotações, mas ainda não compreende o que será feito. Relatório preliminar concluído em janeiro pelo Ibama na região do Tapajós recomenda aos empreendedores que iniciem, ainda na fase de formulação dos estudos ambientais, “ações de comunicação social com a finalidade de informar à população e evitar a propagação de boatos”.
“Somos um povo contra a hidrelétrica. Só o povo é que pode parar essa barragem e vamos lutar para isso. Não é só por nossa sobrevivência, mas a nossa tranquilidade” diz Pereira, da vila Pimental. “Isso aqui não é o céu, mas olha que está pertinho do paraíso.”
(Ecodebate, 26/07/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Para nós amazôniDas é muito importante nesta hora o máximo de informação principalmente a respeito das consequências desses projetos que vão nos trazer prejuízos. A conta maior será paga pela população com o aumento dasTARIFAS e a DEVASTAÇÃO DA FLORESTA.