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Artigo

A Água no Semiárido Brasileiro: potencialidades e limitações, artigo de João Suassuna

 

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Apresentação

O presente relato, sobre as potencialidades e limitações de acesso das águas do Nordeste seco, não tem a pretensão de ser conclusivo. Ao contrário, ele tem caráter evolutivo e dinâmico e, portanto, necessita de atualizações periódicas. Essas características são imperiosas, pois o torna importante mecanismo esclarecedor, junto à sociedade, sobre o uso mais coerente das águas interiores da região. Ele alerta, também, para a forma inadequada de como as autoridades vêm abordando o assunto, principalmente pelo uso indiscriminado dos recursos hídricos, em benefício do grande capital. A sociedade nordestina precisa estar atenta a essas questões e, também, para as alternativas atualmente existentes de uso da água cidadã, cabendo às autoridades a realização de propostas mais realistas e convincentes, visando o bem da coletividade. No caso em questão, a água precisa ser tratada de forma planejada e o seu uso, efetuado pelo cidadão, com a indispensável parcimônia.

– Água no planeta: origem, quantidades globais e consumo potencial.

A origem da água na terra se deu em dois momentos distintos: 1) através da dissipação, numa primeira fase, do vapor de água existente na atmosfera primitiva, devido às altas temperaturas ambientes, reduzindo-as, significativamente e 2) através de um expressivo aporte de volume proveniente do interior do planeta que ocupou os vales existentes na sua crosta, numa profundidade média de 3 a 4 quilômetros. Essa massa de água não foi dissipada para o espaço sideral em forma de vapor, como ocorreu na maioria dos planetas muito quentes, em virtude de a água ter encontrado uma crosta terrestre menos aquecida.

A água inicialmente era pobre em minerais. Seu enriquecimento – principalmente em sais – se fez gradualmente, através de sua movimentação sobre os leitos dos mares, em movimentos sísmicos, com temperaturas elevadas e através de um constante carreamento proveniente dos continentes, motivado pelas precipitações pluviais ocasionais (SUASSUNA, Marcos Vilar, 1960).

O Planeta Terra, com o resultadodessa gênese hídrica, ficou constituído por 2/3 de água. Essa fração, estimada em um volume aproximado de 1.370.000.000 km³, poderia elevá-lo à categoria de Planeta Água. Mas, ao contrário do que se imagina, o reduzido potencial de água utilizável pelo homem vem preocupando governantes do mundo inteiro e se constituindo em um dos principais problemas a serem enfrentados pela humanidade no limiar do terceiro milênio.

O quadro abaixo mostra, com detalhes, os volumes existentes, com os respectivos percentuais, nas reservas mundiais de água.

RESERVAS TOTAIS VOLUME (km³) %
Água existente no planeta 1.370.000.000 100,000
Água salgada 1.332.206.170 97,240
Água doce

. Calotas polares e geleiras

. Lençóis subterrâneos

. Umidade do solo

. Lagos de água doce

. Quantidade anual escoada

37.780.830

29.200.000

8.350.000

67.000

125.000

38.830

2,750

2,125

0,608

0,005

0,009

0,003

Água existente na atmosfera 13.000 0,010

Fonte: New World /Água Valiosa, Revista da Siemens, n° 1, fev/1998

Numa análise rápida do quadro acima, percebe-se que o maior percentual de água disponível no mundo constitui os oceanos (97,24% do total). Essa água, porém, é bastante mineralizada (contém cerca de 36 gramas de sais por litro) e a perspectiva de seu uso ainda carece de maiores estudos técnico-econômicos, devido ao elevado custo imputado ao processo de dessalinização, uma tecnologia cara que ainda apresenta o inconveniente de não produzir quantidades expressivas de água potável. Em países árabes, como a Jordânia e o Kuwait, que não possuem problemas financeiros face ao comércio do petróleo, já é comum a utilização do processo de dessalinização para o abastecimento de suas populações.

No tocante à água doce, constata-se que o total existente, com volume estimado de 37.780.830 km³, corresponde a apenas 2,75 % da água global do planeta. Excluídas desse total, aquelas presentes nas calotas polares e nas geleiras, que correspondem a um volume aproximado de 29.200.000 km³ (atualmente não há tecnologia disponível para retirar do mar o que sobra dos gigantescos blocos de gelo e nem para armazenar o que for coletado), esse volume cai para cerca de 0,625% do total de água doce existente no mundo, ou seja, 8.580.830 km³. Essa massa, por sua vez, é oriunda do somatório dos totais existentes nos lençóis subterrâneos (de volume mais expressivo, apesar das restrições de uso no Nordeste brasileiro em face da sua característica geológica), na umidade natural do solo, na acumulação dos lagos e nas quantidades normalmente escoadas durante o ano sobre a superfície da terra. É esse o potencial hídrico de que a população terrestre, estimada em cerca de 7 bilhões de habitantes, dispõe na atualidade.

Nesse contexto de pobreza hídrica, é digna de nota a estimativa de evolução do consumo anual de água doce pelas populações no mundo. No ano de 1990 houve um consumo aproximado de 4.130 km³. Em 2000 o consumo passou para 18.700 km³, ou seja, um incremento percentual de 352%, em 10 anos. Este adicional foi devido, em grande parte, ao aumento do consumo diário de água do contingente populacional em suas atividades domésticas, industriais e agrícolas.

Relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU) repetem o diagnóstico cada vez mais alarmante: mais de 1 bilhão de pessoas – o equivalente a 18% da população mundial – não têm acesso a uma quantidade mínima aceitável de água potável, ou seja, aquela segura para uso humano. Se nada mudar no padrão de consumo, dois terços da população do planeta em 2025 – 5,5 bilhões de pessoas – poderão não ter acesso à água limpa. E, em 2050, apenas um quarto da humanidade vai dispor desse líquido para satisfazer suas necessidades básicas. Portanto, caso os atuais meios de exploração dos recursos hídricos não forem revistos, 2/3 da população mundial vão passar sede até o ano 2025, ainda com o agravante de existirem, no planeta, 70 regiões em confronto pelo controle de fontes de água potável (ONU, 2012).

Os quadros a seguir dão uma ideia do consumo médio de água por pessoa/dia em atividades domésticas normais, bem como do consumo médio por animal/dia em atividades agrícolas.

ATIVIDADE LITROS/PESSOA/DIA
Beber/cozinhar 3 – 6
Lavar louça 4 – 7
Limpeza da casa 2 – 10
Asseio pessoal sem banho de chuveiro 10 – 20
Lavar roupa 20 – 30
Banho de chuveiro 20 – 40
Descarga sanitária 30 – 50

Fonte: New World / Revista da Siemens, n° 1, fev/1998

ATIVIDADE AGRÍCOLA LITROS/ANIMAL/DIA
Vacas leiteiras * 81
Porcas em lactação * 94
Porcas em gestação * 50
Aves de corte e postura 1,1
Eqüinos e muares 45 a 60
Ovinos e caprinos 10 a 20
Bezerros 40 a 60
* Inclui a água necessária para lavagem das instalações

Fonte: Revista Globo Rural, Ano 14, n° 162, abr/99.

Refletindo sobre os dados apresentados acima, chega-se à conclusão que uma pessoa consome diariamente entre 89 e 163 litros de água, o equivalente a 32 e 59 m³/ano. Fazendo-se a projeção desses dados para o que foi consumido pela população mundial (6 bilhões de pessoas), no ano de 2000, em suas atividades domésticas, iremos obter volumes consumidos da ordem de 192 e 354 km³/ano, respectivamente.

Evidentemente, essa análise é realizada levando-se em consideração unicamente os aspectos médios globais. A questão, no entanto, começa a se complicar quando a análise é feita levando-se em consideração o potencial disponível por região, isoladamente.

O quadro a seguir mostra o volume de água doce disponível, em km³, nos rios de diversos continentes.

CONTINENTE VOLUME (km³)
Oceania 24
Europa 74
África 184
América do Norte 236
Ásia 533
América do Sul 946

Fonte: Revista Globo Ciência, n° 85, ano 8, ago/98.

Notem que a água doce superficial disponível nos vários continentes do mundo tem distribuição extremamente variada. Enquanto ela é abundante em algumas regiões, como no Sul e no Norte do Brasil (justificando o volume disponível de 946 km³ da América do Sul), onde as bacias dos rios Amazonas e Paraná proporcionam, durante todo o ano, energia, alimento e vida, em outras, sua ausência é sinônimo de pobreza e morte. Nos solos áridos e rachados de certas áreas da África ou do Nordeste brasileiro, por exemplo, a luta pelo acesso à água e, portanto, à vida, se torna, a cada dia, um problema crônico.

Na cidade do Recife (localizada na Zona da Mata de Pernambuco, com pluviosidade média de 2000 mm/ano), que já passou por severos problemas de abastecimento, as águas chegavam às torneiras a cada nove dias, durante um intervalo de apenas dezessete horas. Considerada uma das maiores capitais do Nordeste, com aproximadamente 3.000.000 pessoas em sua região metropolitana, Recife chegou a fornecer, apenas, preocupantes 50 litros diários de água para cada um de seus habitantes. Mas o abastecimento do município voltou à normalidade, graças à operacionalização da adutora de Pirapama.

Em alguns países, como Tunísia, Israel, Jordânia, Líbia, Malta e territórios palestinos, a escassez hídrica já atingiu níveis alarmantes: existe apenas um limite de 500 m³ de água por habitante/ano, enquanto o desejável seria um potencial de 2000 m³/ano.

É nesse contexto de desigualdades nos acessos aos recursos hídricos que passamos a tecer, neste documento, alguns comentários sobre o uso das águas no Nordeste semiárido brasileiro, procurando, sempre que possível, enfocar as ações de usos na irrigação, na geração de energia e no abastecimento das populações.

– A distribuição da água no Brasil

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu alguns parâmetros de disponibilidades hídricas per capita para as diversas regiões do planeta, baseando-se nas ofertas volumétricas existentes nas mesmas para o atendimento às suas populações. Assim, considerou como abundante a região que apresentasse condições de disponibilizar, em termos volumétricos, mais de 20 mil m³/habitante/ano. Em uma escala decrescente de valores, estabeleceu como muito rica a região que possibilitasse o fornecimento de mais de 10 mil m³/habitante/ano; como rica, mais de 5 mil m³/habitante/ano; como situação limite, mais de 2,5 m³/habitante/ano; como pobre, menos de 2,5 m³/habitante/ano e, por último, como situação crítica a região capaz de fornecer menos de 1,5 m³/habitante/ano. O quadro 1 trata da disponibilidade per capita de água em diversas regiões do planeta, inclusive no território nacional.

Quadro 1 – DISPONIBILIDADE DE ÁGUA

 

Disponibilidade

hídrica

per capita

m³/hab./ano

País Disponibilidade

hídrica

per capita

m³/hab./ano

Estado

brasileiro

Disponibilidade

hídrica

per capita

m³/hab./ano

Abundante

> 20.000 Finlândia 22.600 Roraima 1.747.010

Suécia 21.800 Amazonas 878.929

Amapá 678.929

Acre 369.305

Mato Grosso 258.242

Pará 217.058

Tocantins 137.666

Rondônia 132.818

Goiás 70.753

Mato G. do Sul 39.185

Rio G. do Sul 20.798

Muito rico Maranhão 17.184

> 10.000 Irlanda 14.000 Sta. Catarina 13.662

Luxemburgo 12.500 Paraná 13.431

Áustria 12.000 Minas Gerais 12.325

Rico

> 5.000 Portugal 6.100 Piauí 9.608

Grécia 5.900 Espírito Santo 7.235

Situação limite

> 2.500 França 3.600 Bahia 3.028

Itália 3.300 São Paulo 2.913

Espanha 2.900

Pobre Reino Unido 2.200 Ceará 2.436

<2.500 Alemanha 2.000 Rio de Janeiro 2.315

Bélgica 1.900 Rio G. do Norte 1.781

Distrito Federal 1.751

Alagoas 1.752

Sergipe 1.743

Situação crítica Paraíba 1.437

<1.500 Pernambuco 1.320

Fonte: Secretaria de Recursos Hídricos de São Paulo – 2000

O Brasil, segundo a OMS, é um país privilegiado em termos de recursos hídricos, pois possui cerca de 12% de toda a água que escoa na superfície do planeta. Porém, a distribuição dessa água no território nacional é muito irregular: 72% desses 12% localizam-se na região Norte do país, cujo potencial médio de água doce nos rios é de cerca de 3.845 km³/ano e onde vivem, apenas, cerca de 7% de sua população. Muita água numa região com poucos habitantes. Enquanto isso, o Nordeste brasileiro (28% da população do país e potencial médio de água doce nos rios de 186,2 km³/ano) possui míseros 3%, 2/3 dos quais localizados na bacia do rio São Francisco. A indagação a ser feita é se o 1/3 restante representa volumes suficientes para o atendimento das demandas hídricas da população do Semiárido, estimada, atualmente, em 28 milhões de pessoas. Na avaliação subsequente, chega-se à conclusão de que esse volume é mais do que suficiente para esse atendimento.

Na primeira classe de disponibilidade (> do que 20.000 m³/habitante/ano), estão considerados todos os estados da região Norte do Brasil, sendo Roraima o estado campeão em oferta de água do país. Dos estados nordestinos, pertencentes ao Semiárido, apenas o Piauí está em situação confortável (considerado um estado rico em ofertas hídricas, pelo fato de fornecer volumes superiores a 5.000 m³/habitante/ano), fato este advindo de riqueza significativa de água em seu subsolo e da existência de um grande rio perene – o Parnaíba – que faz fronteira com o estado do Maranhão; o estado da Bahia (em situação limite em termos de oferta hídrica, com fornecimentos volumétricos superiores a 2.500 m³/habitante/ano), chega a ter mais água do que o estado de São Paulo, por ser beneficiado por aquelas do Rio São Francisco e possuir áreas sedimentares esparsas, mas significativas, em seu território. A situação dos demais estados é preocupante (pobres em água, pelo fato de fornecerem volumes inferiores a 2.500 m³/habitante/ano), destacando-se, entre eles, Paraíba e Pernambuco como estados campeoníssimos em baixa oferta hídrica para seus habitantes, cabendo, a este último, o fornecimento de apenas 1.320 m³/habitante/ano). Apesar da pobreza hídrica reinante, vale destaque nessa classe de disponibilidade, o fato de o estado do Ceará, com 2.436 m³/habitante/ano, ter mais água do que a Alemanha, que só consegue disponibilizar 2.000 m³/habitante/ano.

Características geoambientais somam-se e definem um cenário de pouca abundância de água na região Nordeste, onde as chuvas são extremamente mal distribuídas, tornando-se uma verdadeira loteria a sua ocorrência em pequenos intervalos: a influência direta de várias massas de ar como a Equatorial Atlântica, a Equatorial Continental, a Polar e as Tépidas Atlântica e a Caalariana que, de certa forma, interferem na formação do seu clima, mas que adentram o interior do Nordeste com pouca energia, influenciando não apenas nos volumes das precipitações caídas (no Semiárido as precipitações estão entre 500 e 800 mm ao ano) como, e principalmente, no intervalo entre as chuvas; o fenômeno El Niño, que interfere principalmente no bloqueio das frentes frias vindas do Sul do país, impedindo a instabilidade condicional na região (chuvas); e ainda, a formação do dipolo térmico atlântico, caracterizado pelas variações de temperaturas do Oceano Atlântico, nas suas partes norte e sul dos hemisférios, variações estas favoráveis às chuvas no Nordeste, quando a temperatura do Atlântico Sul está mais elevada do que aquela na sua parte Norte.

A proximidade da linha do Equador é outro fator natural que vai de encontro às possibilidades de abundância de água no Nordeste: as baixas latitudes condicionam a região a temperaturas elevadas (média de 26°C), número elevado de horas de sol por ano (estimado em cerca de 3.000) e índices acentuados de evapotranspiração, devido à incidência perpendicular dos raios solares sobre a superfície do solo (algumas regiões do Nordeste semiárido chegam a evapotranspirar cerca de 7 mm/dia).

Em termos geológicos, a região é constituída por duas estruturas básicas: o embasamento cristalino, que representa 70% da região semiárida, e as bacias sedimentares. Essas estruturas têm importância fundamental na disponibilidade de água subterrânea. No embasamento cristalino, só há duas possibilidades de existência de água no subsolo: nas fraturas das rochas e nos aluviões próximos de rios e riachos. Em geral, essas águas são poucas, de volumes finitos (os poços secam aos constantes bombeamentos) e, como se isso não bastasse, são de má qualidade (as águas que têm contato com esse tipo de estrutura se mineralizam com muita facilidade, tornando-se salinizadas) (SUASSUNA & AUDRY, 1995). Porém, devido à facilidade de escoamentos superficiais e à baixa capacidade de infiltração da água no solo, essas características possibilitaram, na região cristalina, a construção de um número expressivo de barramentos, estimado em cerca de 70 mil, que represam cerca de 37 bilhões de m³ de água. Isto significa a maior reserva de água artificialmente acumulada em regiões semiáridas do mundo. Com relação às bacias sedimentares, essas são possuidoras de um significativo volume de água no subsolo, mas estão localizadas de forma esparsa no Nordeste (verdadeiras ilhas espalhadas desordenadamente no litoral e no interior da região), com seus volumes distribuídos de forma desigual.

– A distribuição da água no Nordeste brasileiro

Principais domínios hidrológicos, reservas de água doce subterrânea e intervalo de vazão de poços no Brasil

 

Domínio Aqüífero Área

(km²)

Sistema Aqüífero

Principal

Volume

d’água (km³)

Intervalo Vazão de Poço

(m³/h)

Substrato Aflorante 600.000 Zonas fraturadas 80 < 1 – 5
Substrato Alterado 4.000.000 Manto rochas alteradas

e/ou fraturas

10.000 5 – 10
Bacia Sedimentar Amazonas 1.300.000 Ar. Barreiras

Ar. Alter do Chão

32.500 10 – 400
Bacia Sedimentar

São Luís/Barreirinhas

50.000 Ar. São Luís

Ar. Itapecuru

250 10 – 150
Bacia Sedimentar

Maranhão

700.000 Ar. Itapecuru

Ar. Cordas-Grajaú

Ar. Motuca

Ar. Poti-Piauí

Ar. Cabeças

Ar. Serra Grande

17.500 10 – 1000
Bacia Sedimentar

Potiguar – Recife

23.000 Ar. Barreiras

Calcário Jandaíra

Ar. Açu-Beberibe

230 5 – 550
Bacia Sedimentar

Alagoas – Sergipe

10.000 Ar. Barreiras

Ar. Marituba

100 10 – 350
Bacia Sedimentar

Jatobá-Tucano-Recôncavo

56.000 Ar. Marizal; Ar. Tacaratu;

Ar. São Sebastião

840 10 – 500
Bacia Sedimentar

Paraná (Brasil)

1.000.000 Ar. Baurú-Caiuá Basaltos

S.Geral; Ar. Furnas/Aquidauana

Ar. Botucatu-Piramboia-R.Branco

50.400 10 – 1700
Depósitos Diversos 773.000 Aluviões, dunas 411 2 – 40
Totais 8.512.000 112.000

Fonte: Rebouças, 1997

Os problemas hídricos do Nordeste não se caracterizam pela falta total de água de superfície. Na realidade, o que existe é um desequilíbrio marcante na sua distribuição volumétrica, principalmente na região semiárida, conforme abaixo discriminado:

Maranhão e Piauí

O Estado do Maranhão possui clima pré-amazônico, estando, portanto, localizado fora do polígono das secas. Além de possuir uma bacia sedimentária riquíssima em água de subsolo – junto com a bacia sedimentária São Luís/Barreirinhas, a região maranhense possui cerca de 17.750 km³/ano – está numa classe considerada muito rica, pois tem condições de ofertar cerca de 17,2 mil m³ para cada um de seus habitantes por ano. Por sua vez, o Estado do Piauí possui um potencial acumulatório em suas represas de 2 bilhões de m³, apresenta boa parte de seu território com geologia sedimentária (junto com o Estado do Maranhão, o Piauí detém cerca de 70% das águas de subsolo de todo o Nordeste, portanto com enorme riqueza de água subterrânea) e possui o segundo maior rio nordestino em importância, o Parnaíba (o primeiro é o Rio São Francisco). O Estado está numa classe considerada rica, pois oferta cerca de 9,6 mil m³/habitante/ano (SERH-MA e SERH-PI, 2012).

Bahia

O Estado da Bahia tem pouca água acumulada em superfície. Estima-se em apenas 1 bilhão de m³ em todo o território baiano (volume correspondente à capacidade do açude Araras, no Ceará). A Bahia está numa situação limite, chegando a ofertar cerca de 3 mil m³/habitante/ano. Mas possui áreas sedimentárias importantes, distribuídas de forma esparsa no Estado, além de ter o Rio São Francisco como seu maior aliado, cortando o território baiano de sul a norte (RIBEIRO, 2012).

Ceará

Caso sejam consideradas as características de cada um dos estados integrantes das duas classes mais críticas, observa-se que o Ceará, onde o Semiárido chega ao litoral, vem tratando os seus recursos hídricos de forma mais consistente do que a habitualmente realizada nos demais estados nordestinos. Após a construção da represa do Castanhão, com cerca de 6,7 bilhões de m³ (a maior represa do Nordeste na atualidade, depois de Sobradinho, no rio São Francisco, cuja capacidade de armazenamento é de cerca de 34 bilhões de m³), o Estado passou a ter, em cerca de 8 mil açudes, um potencial acumulatório de água da ordem de 18 bilhões de m³.

Esse volume é cerca da metade de todo aquele potencialmente acumulável nas represas nordestinas, resultado que o credencia a atender, de forma satisfatória, as demandas hídricas de sua população, pelo menos nos próximos 15 anos. Além do mais, o Ceará vem trabalhando no sentido de interligar suas bacias hidrográficas, para fazer com que as áreas do Estado que apresentem dificuldades de fornecimento de água às populações, sejam supridas por outras regiões de seu território, possuidoras de melhores condições de oferta hídrica (SERH-CE, 2012).

Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte, com potencial acumulatório de 4,3 bilhões de m³, distribuídos em cerca de 44 represas, dispõe de áreas sedimentares importantes (formação barreira e dunas, além do arenito Açu), de volume de água estimado em cerca de 230 km³/ano, que vêm abastecendo, inclusive, a região de Mossoró nas necessidades humanas e agrícolas. Possui a segunda maior represa do Nordeste – Armando Ribeiro Gonçalves, com cerca de 2,4 bilhões de m³ – a qual, sozinha, segundo informações contidas no I Plano Estadual de Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte, poderia suprir, com 200 litros/habitante/dia, toda população norte-rio-grandense pelos próximos 20 anos (SERH-RN, 2012).

Alagoas e Sergipe

Apesar de terem áreas territoriais reduzidas, estes Estados possuem uma significativa faixa de sedimentário em suas regiões litorâneas, cujas reservas hídricas se dão em proporções relevantes. Estima-se nas bacias sedimentares de Alagoas/Sergipe um volume aproximado de 100 km³/ano. Além do mais, as autoridades sergipanas, através da construção de adutoras, possibilitaram o abastecimento de parte da cidade de Aracaju com as águas do Rio São Francisco (água de transposição). Porém, o problema maior desses dois Estados localiza-se nas suas regiões Semiáridas, daí os baixos índices de oferta hídrica apresentados pela OMS. Neste caso, ações de governo e de instituições não governamentais, principalmente nas questões relativas ao setor de abastecimento humano, poderiam ser concretizadas através da implementação de programas de construção de represas, do uso (adução) das águas do Rio São Francisco e, principalmente, da instalação de cisternas rurais para o aproveitamento da água de chuva.

Paraíba

O Estado da Paraíba, com um potencial de acumulação de 3,9 bilhões de m³ distribuídos em cerca de 132 represas, afora uma estreita faixa litorânea sedimentária (faixa localizada ao longo dos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, com a existência de um volume aproximado de água de subsolo de 230 km³/ano), possui geologia cristalina em praticamente todo o restante do Estado. Esse fato resulta na acumulação de baixos volumes de água no subsolo de tal região que, na maioria das vezes, é de péssima qualidade devido à presença de grandes concentrações de sais. Contudo, o Estado possui, no seu semiárido, duas grandes represas (Coremas e Mãe D´água), unidas por um pequeno canal, cujo potencial de acumulação soma 1,3 bilhão de m³ de água. Apesar de apresentar problemas de abastecimento seriíssimos, o Estado poderá vir a suprir, com água de ótima qualidade, proveniente dessas represas, boa parte da população do sertão, bastando, para tanto, investir em sistemas de adução. É oportuno lembrar que a Paraíba possui, no maciço entre os municípios de Matureia e Teixeira, o ponto mais elevado do Nordeste (o Pico do Jabre, com altitude superior a 1.000 m). Recalques de água daquelas represas para a parte superior desse maciço possibilitariam a distribuição de água, por gravidade, para solucionar os problemas de abastecimento de boa parte das regiões mais necessitadas do sertão paraibano (SERH-PB, 2012).

O Estado possui ainda, na sua região agreste, os reservatórios de Boqueirão e Acauã (com capacidades de 411 milhões de m³ e 253 milhões de m³, respectivamente), os quais regularizam, com cerca de 3,130 m³/s e 100% de garantia, a vazão do Rio Paraíba. A população de Campina Grande e de 8 pequenas cidades vizinhas a ela, demandam dessas represas, um volume estimado da ordem de 1,976 m³/s. Considerando-se a regularização do Rio Paraíba e o que é demandado dessas represas, chega-se, portanto, à conclusão que o abastecimento humano de Campina Grande (urbano e industrial) e de seu entorno, está garantido, resultando, nesse processo, um saldo de 1,154 m³/s. Sabe-se que a região metropolitana de Campina Grande passou por sérios problemas de abastecimento, após o período de seca entre os anos de 1997 e 1999 (naquele período a represa de Acauã ainda não havia sido concluída), agravados, sobretudo, pela falta de gestão do reservatório de Boqueirão e da bacia hidrográfica do Alto Paraíba, com a implantação de sistemas de irrigação mal conduzidos (eram consumidos nesse processo cerca de 1.000 litros/s), além de uma descarga de fundo descontrolada, na represa de Boqueirão, de cerca de 200 litros/s (ALBUQUERQUE, 2009). Esses problemas de abastecimento de Campina Grande justificavam, na época, o projeto de transposição de águas do Rio São Francisco para o interior do reservatório de Boqueirão, através do eixo leste do projeto, proporcionando-lhe a sinergia hídrica necessária à garantia volumétrica para o abastecimento de sua região metropolitana. Entretanto, resolvidos os problemas dos desperdícios d´água, através de um gerenciamento coerente em toda sua bacia hidrográfica, a represa de Boqueirão, juntamente com a de Acauã, se encontram, atualmente, com volumes suficientes ao abastecimento das populações por elas assistidas. Nesse sentido, tanto Campina Grande como os demais municípios circunvizinhos, atendidos pelo sistema Boqueirão/Acauã, têm água para o abastecimento, e até com certa folga, não se justificando a realização do projeto de transposição para aquela região.

Pernambuco

Ao lado da Paraíba, o Estado de Pernambuco é campeoníssimo em termos de precariedade de fornecimento de água ao seu povo. De características geológicas semelhantes ao do Estado da Paraíba (cerca de 80% do Estado possui geologia cristalina), Pernambuco encontra-se em uma situação mais complicada, por não possuir represamentos significativos de água em seu território. Tem um potencial acumulatório de 3,1 bilhões de m³ distribuídos em cerca de 132 represas. Para se ter ideia desse problema, o volume acumulado superficialmente no Estado representa, aproximadamente, uma vez e meia o acumulável na represa de Orós, o segundo maior açude do Ceará (o primeiro é o Castanhão, na atualidade o maior do Nordeste). Por outro lado, o maior açude de Pernambuco, localizado no município de Ibimirim (Açude Poço da Cruz, com volume acumulável de 500 milhões de m³), vem sofrendo problemas de abandono por parte das autoridades. Atualmente, encontra-se com 70% de sua capacidade, havendo a necessidade de reparos constantes em sua estrutura, principalmente em vazamentos existentes nas válvulas de descarga de fundo. Em 2004, após período de intensas chuvas, essa falha resultou em liberações indesejadas de água da ordem de 20 milhões de m³, em curto espaço de tempo e, o que é pior, houve continuidade desses vazamentos em anos posteriores de extrema escassez hídrica. Além do mais, a sua bacia hidrográfica está servindo de depósito de efluentes oriundos de cidades localizadas à montante da represa, o que tem ocasionado forte odor de esgotos em suas águas. Contudo, é importante se levar em consideração a enorme área de fronteira que o Estado possui com o Rio São Francisco – estimada em cerca de 450 km –, a qual se configura como uma das mais importantes alternativas de abastecimento das populações do sertão pernambucano, já havendo, inclusive, exemplos exitosos de abastecimentos através de adutoras, como aqueles realizados em Araripina (adutora do Oeste) e em Salgueiro (adutora de Salgueiro) (SECTMA, 1998).

Como foi visto, à exceção do Maranhão, Piauí e Bahia, a situação dos demais estados nordestinos preocupa, pois os mesmos se encontram localizados entre as classes pobre – a exemplo do Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas e Sergipe, os quais fornecem cerca de 2.440, 1.780, 1.750 e 1.740 m³/habitante/ano, respectivamente – e em situação crítica, a exemplo da Paraíba e Pernambuco, campeões nacionais em termos de pobreza na oferta hídrica, por disponibilizarem cerca de 1.440 e 1.320 m³ a cada um de seus habitantes por ano, respectivamente.

– Iniciativas de acesso às águas interiores do Nordeste

E o que fazer para enfrentar a questão do desabastecimento do Nordeste? Mesmo levando-se em consideração essas duas últimas classes distributivas de recursos hídricos (pobre e em situação crítica), e também os riscos iminentes de desabastecimento, os estados nordestinos, localizados nas referidas classes, poderão vir a suprir a demanda de água de suas populações, de forma coerente e satisfatória. Para tanto, é necessário proceder ao gerenciamento adequado de suas águas. Essa assertiva prende-se ao fato de o Nordeste, hoje, possuir o maior volume de água represado em regiões semiáridas do mundo, e as descargas de seus rios proporcionarem infiltrações de água nos aquíferos da ordem de 58 bilhões de m³/ano. A esse respeito, o geólogo nordestino Aldo Rebouças afirma, em seus trabalhos, que bastaria o aproveitamento de 1/3 dos volumes infiltrados nos aquíferos para o efetivo abastecimento de toda a população nordestina (hoje estimada em 47 milhões de pessoas), com uma taxa de 200 litros por pessoa/dia e para a irrigação de cerca de 2 milhões de hectares, com uma taxa de 7.000 m³ por hectare/ano. Na lógica de Rebouças, a água no Nordeste existe, faltando apenas o seu indispensável gerenciamento para o atendimento das necessidades do povo.

Inicialmente, se poderia fazer cumprir o que determina o artigo 21 da Constituição de 1988, no seu inciso XIX, que estabelece a competência da União em instituir um sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso. Alguns estados vêm trabalhando muito nos últimos anos para incorporar esses princípios em suas legislações e políticas públicas, criando conselhos estaduais, comitês de bacias, grupos de usuários de água etc., mas, infelizmente, a grande maioria dos estados nordestinos tem sido relapsa com relação a esse assunto. Embora tenhamos uma lei federal que fixa os fundamentos da Política Nacional dos Recursos Hídricos (Lei 9433, de 08/01/1997), pouco avançamos na incorporação dos princípios que definem esse novo quadro institucional no país.

Existindo esses dois instrumentos (a instituição de um sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e a definição de critérios de outorga de direitos de seu uso), cuja implementação, infelizmente, até hoje engatinha, é necessário um verdadeiro orçamento das águas, anualmente revisado em função de sua maior ou menor disponibilidade, que varia a cada ciclo hidrológico (o Conselho Nacional de Recursos Hídricos ou a própria Agência Nacional de Águas – ANA poderão ter um papel fundamental nessas ações). Esse orçamento iria definir: X m³/s para uso humano e animal. Y m³/s para irrigação na bacia; Z m³/s para geração de energia elétrica; T m³/s para transposição para outras bacias; W m³/s para usos industriais.

Em agosto de 2004, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) promoveu uma reunião internacional, no Recife, para tratar de transposição de águas entre grandes bacias hidrográficas. Nessa reunião, a SBPC conseguiu reunir, além de alguns técnicos estrangeiros, cerca de quarenta, dos principais expoentes da hidrologia nacional, os quais trataram as questões do rio São Francisco em suas minúcias. Nela, os participantes identificaram limitações hidrológicas e ambientais importantes no rio (consta em relatório), as quais comprometiam as possibilidades de fornecimentos volumétricos futuros, a serem demandados pelo projeto da transposição de suas águas. Resultou dessa reunião, uma proposta de construção de uma infraestrutura hídrica no Semiárido, baseada na busca das águas interiores localmente existentes, para solução definitiva do abastecimento das populações do Setentrional. A proposta visava, sobretudo, a realização de ações partindo-se de jusante (do Setentrional), para montante (para a bacia exportadora, no caso a bacia do Velho Chico), indo-se atrás das águas existentes na região, para serem fornecidas as populações. Os técnicos da SBPC avaliaram que, diante das atuais limitações verificadas no rio, suas águas deveriam ser utilizadas, no futuro, como alternativa complementar ao abastecimento, sem implicar no abandono ou subutilização de fontes locais de água existentes (SBPC, 2004).

Em dezembro de 2006, a Agência Nacional de Águas (ANA), lançou um abrangente programa de abastecimento do Nordeste (Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano), baseado nas propostas da SBPC de 2004, visando levar água para cerca de 34 milhões de pessoas residentes em município de até 5.000 habitantes, a um custo estimado em menos da metade (R$ 3,3 bilhões) daquilo que havia sido previsto no projeto da Transposição do São Francisco. No entanto, o que se viu foi que, diante da escolha entre um projeto significativamente mais caro (atualmente a Transposição está orçada em cerca de R$ 8,3 bilhões), e o Atlas Nordeste (embora socialmente mais abrangente e custando menos da metade do orçado na transposição), a decisão, no PAC, recaiu sobre o projeto mais caro. A Transposição do rio São Francisco foi o projeto escolhido (MMA, 2006).

Por outro lado, a Lei Federal 9433/97 (Lei da Águas) fixou os fundamentos da política nacional dos recursos hídricos e, em seu artigo 38, estabeleceu a competência do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, dando-lhe, entre outros poderes, o de aprovar e acompanhar o plano de recursos hídricos da bacia do rio. Nesse sentido, coube ao referido Comitê, a elaboração do plano decenal de abastecimento, o qual autorizou o uso de suas águas, em áreas fora da sua bacia hidrográfica (águas de transposição), apenas para o abastecimento humano e dessedentação animal, isso em caso de comprovada escassez. Se existem bolsões no Nordeste setentrional com problemas extremos de abastecimento, e se existe a possibilidade desses problemas serem resolvidos usando as águas do rio São Francisco, valendo-se da força da legislação em vigor e com os cuidados devidos, porque não fazê-lo por intermédio de adutoras?

– Ações e cuidados necessários ao acesso às águas interiores do Nordeste

A bacia do Rio São Francisco está completamente degradada (ALVES, 2012). Ademais, o rio se encontra limitado volumetricamente, não havendo a mínima condição de atendimento às novas demandas, por ser um rio de múltiplos usos. Para se ter ideia dessa problemática, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) já não consegue mais gerar, em suas hidrelétricas, a energia necessária ao atendimento das necessidades do Nordeste. Em 2010, por exemplo, a Chesf gerou 6.000 Mw médios, e a região necessitou de 8.000 Mw. Dois mil Mw médios já tiveram que vir de outras regiões geradoras do país. E, apesar desse cenário preocupante de pobreza hídrica no São Francisco, não deixaram de ocorrer propostas insensatas de retiradas volumétricas do rio. Recentemente, o governo da Bahia noticiou que irá construir o eixo SUL da Transposição, para o abastecimento do entorno de Salvador (BOEHME, 2012). Como se isso não bastasse, existe proposta para a retirada de volumes significativos da represa de Sobradinho (represa localizada no São Francisco), através do Canal do Sertão, para a irrigação de cerca de 160 mil ha no extremo-oeste pernambucano. Desse total, 80 mil hectares só com cana de açúcar irrigada.

Necessário se faz dar continuidade ao programa de construção de grandes represas na região, devendo haver sempre a preocupação simultânea de interligar suas bacias hidrográficas e utilizar racionalmente suas águas. Atualmente, as 28 maiores represas do Nordeste, que têm capacidade para acumular 18 bilhões de m³ de água, utilizam apenas 30% desse volume em sistemas de abastecimento ou em irrigação. Projetos de adução de águas de grandes represas, como, por exemplo, a de Pirapama (localizada na região metropolitana do grande Recife), têm solucionado problemas de racionamento d`água, como aqueles verificados, por longo período, na capital pernambucana.

Fala-se muito em água do subsolo como solução para os problemas de abastecimento da região semiárida nordestina. É, sem dúvida, uma alternativa importante, mas que não resolve de todo o problema. Devido às características geológicas da região, anteriormente comentadas, o acesso a essas águas e, principalmente, a sua utilização, têm que ser encarados de forma mais criteriosa e realista.

A título de exemplo, estima-se que 35% dos 60.000 poços perfurados no embasamento cristalino nordestino estejam secos, obstruídos ou com teores salinos inadequados ao consumo humano. Com essa estatística, é de se esperar que todo e qualquer programa de perfuração de poços que venha a ser realizado na região trate, em primeiro lugar, da recuperação daqueles que apresentem problemas. Já, se a área for rica em água, é importante explorá-la com eficácia e usá-la com parcimônia, evitando-se extrapolar, os resultados positivos obtidos nas regiões sedimentárias, para o Nordeste seco como um todo. Em tais regiões, as águas devem ser racionalmente exploradas evitando-se, sempre que possível, os desperdícios, a exemplo daqueles existentes no Estado do Piauí, que não aproveita, de forma coerente, as águas dos poços jorrantes perfurados na região sedimentária do Vale do Gurguéia, no município de Cristino Castro (o poço Violeto, neste município, tem uma vazão de cerca de 800.000 litros/hora). Os poços jorram 24 horas por dia e não existe um projeto de uso adequado de suas águas que justifique o programa de perfuração ali realizado. Portanto, conhecer os aspectos geológicos e climáticos é um fator fundamental para se avaliar melhor as disponibilidades hídricas da região. Sem este conhecimento, a gestão dos recursos hídricos torna-se falha e, a outorga, mero procedimento burocrático.

Em relação à qualidade química das águas de subsolo, é sabido que no embasamento cristalino do Semiárido, estas apresentam teores elevados de sais (SUASSUNA & AUDRY, 1995), cujo tratamento, através de dessalinizadores, necessita a observância de algumas questões. Primeiramente é preciso levar em consideração o custo operacional desse processo pois, o uso do dessalinizador, ainda é muito caro. Dependendo do teor salino da água, o m³ de água dessalinizada pode vir a custar o equivalente a US$ 0,90 (noventa centavos de dólar). Em segundo lugar, o percentual de dessalinização da água, devido à eficiência do processo, onde a retirada de sais é feita por intermédio de membranas (osmose reversa), o que dá ao equipamento índices espantosos de eficiência: uma água extremamente salinizada, ao ser tratada, passa a conter apenas traços de sais na sua composição. Torna-se, praticamente, uma água destilada. Este aspecto é muito importante, pois poderá influenciar, sobremaneira, no balanceamento de sais no organismo das pessoas, que, por sua vez, sofre influência direta da temperatura ambiente.

Uma das características da região semiárida nordestina é a de ser quente, com a média da temperatura anual atingindo a casa dos 26° C. Isto significa dizer que a população rural transpira em demasia nas atividades normais de campo e, ao transpirar, perde sais. A reposição desses, no organismo, normalmente é feita através da alimentação diária (sabe-se que a região apresenta índices elevados de desnutrição) e da ingestão de líquidos (ressalte-se que a população do Semiárido é acostumada a ingerir águas com teores de sais muito acima dos recomendados pela Organização Mundial de Saúde). Passando a ingerir, de uma hora para outra, água com baixos teores de sais, essa população começará a entrar em um processo de desmineralização, tendo em vista as fontes de reposição desses elementos não apresentarem mais os mesmos teores. O resultado é que um programa de fornecimento de “água de primeiro mundo” à população, com o uso de dessalinizadores (slogan amplamente divulgado pelas autoridades) poderá vir a ser acusado, futuramente, de contribuir para a desmineralização da população.

É necessário, então, um aporte, devidamente calculado, de pequenas quantidades de sais nas águas dessalinizadas, a fim de corrigir esse problema. Uma verdadeira (re)salinização da água. Sobre esse aspecto, informações obtidas de pesquisadores da Orstom (entidade de pesquisa do governo francês), participantes de missão científica no Chade – país de clima desértico no norte da África – demonstraram a preocupação de seus técnicos em balancear os teores de sais das águas consumidas no local e oriundas de dessalinizadores, através da dissolução, nessas águas, de comprimidos de sais trazidos da França.

Ainda com relação à questão dos dessalinizadores, outro aspecto importante a ser mencionado é o destino que deverá ser dado ao rejeito do material resultante do processo de dessalinização das águas. Esse material, extremamente rico em sais, anteriormente depositado em lagoas de decantação ou mesmo colocado ao ar livre sem maiores preocupações, constituindo-se em grave problema ambiental, passou a ser utilizado: na mineralização de ruminantes, visto ser a região semiárida muito carente nesse aspecto; na piscicultura, principalmente nas criações de camarão e tilápia (espécies extremamente resistentes a ambientes salinos); e no cultivo de plantas halófitas (vegetais que vivem em ambientes salinos), a exemplo da atriplex, que necessitam de água com teores de sais elevados para se desenvolverem.

A construção de cisternas rurais de placas para captação da água da chuva com fins de potabilidade é outra ação importante (SOUZA SILVA et al., 1984). Para tanto, as organizações não governamentais e os governos federal, estadual e municipal têm um papel fundamental, tanto na construção das cisternas, como no manejo de uso de suas águas junto ao homem do campo. Cada milímetro de chuva caída em um metro quadrado de área de telhado resulta em aproximadamente um litro de água armazenável. Num telhado de 300 m², por exemplo, caindo um milímetro de chuva, obtém-se 300 litros de água. Na região Semiárida chove, em média, 800 milímetros por ano, isso significa que, uma cisterna de 16.000 litros (quando bem manejadas, as águas das cisternas ficam livres da contaminação por microorganismos) abastece de água potável (uso restrito para beber e cozinhar) uma família de 5 pessoas durante os 8 meses sem chuvas na região. Com isso conclui-se que a água potável no Semiárido é um bem natural escasso e o seu uso deverá ser feito com muita parcimônia.

Outra ação que já começa a despertar estudos no meio científico é a utilização das águas servidas pelas populações das grandes cidades. Pesquisas têm demonstrado a possibilidade de reuso de tais águas, bastando para tanto um tratamento adequado, limitando-se a sua utilização posterior para fins menos nobres, como, regas de jardins, descargas em sanitários, lavagens de calçadas e de automóveis, algumas utilizações industriais etc. Procedendo-se dessa forma, tornam-se mínimas as chances de se causar problemas à saúde das pessoas.

– Alternativas atuais de abastecimento no Nordeste.

Atualmente são em número de três as alternativas vigentes, que estão sendo consideradas pelo Governo Federal, para a solução dos problemas de abastecimento da população do Semiárido nordestino. 1) a Transposição do rio São Francisco (do Ministério da Integração Nacional), 2) o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água (da Agência Nacional de Águas – ANA) e 3) o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (do Ministério do Desenvolvimento Social – MDS e da Articulação do Semiárido-ASA Brasil) (SUASSUNA, 2012).

  1. Dimensionado para o atendimento do agronegócio, atualmente o Projeto da Transposição encontra-se com suas atividades em ritmo lento, devido a problemas operacionais existentes e que estão sendo solucionados pelo Governo Federal (SIQUEIRA, 2012). É importante mencionar que, a dimensão mais perversa desse projeto, é a promessa de solução dos problemas de abastecimento da população difusa do Semiárido. Isso gera insatisfações e agrava os problemas oriundos da tão falada Indústria da Seca (GUIMARÃES. Jr, 2008), que não existe por acaso, já que grupos restritos ganham com tudo isso. Ganham ao fazer grandes obras, ganham ao desviar recursos públicos, ganham ao promover as chamadas inseguranças hídrica e alimentar. Vencer esses entraves, não é apenas vencer uma questão cultural, não é vencer apenas uma questão social, é vencer uma questão política (MALVEZZI, 2007).

É importante esclarecer que a distribuição das águas do São Francisco, para os municípios e para o abastecimento das populações difusas, não foi planejada adequadamente. Não há nenhuma adutora prevista, como também não há serviço de distribuição dessas águas. As águas do São Francisco simplesmente serão canalizadas para locais onde elas já são abundantes no Setentrional nordestino. Elas irão abastecer as principais represas da região, o que denota uma enorme insensatez, tendo em vista a existência de expressivos volumes nessas represas, em quantidades suficientes ao atendimento das demandas de toda população. Na realidade, os problemas de abastecimento do Nordeste recaem na qualidade dos recursos hídricos ou então na democratização do uso de suas águas interiores (LISBOA, 2008).

Isso posto, pergunta-se, então, qual é a sinceridade da generosidade do projeto da transposição? Até onde essa generosidade é verdadeira? Ou é apenas um jogo de marketing perverso, para o convencimento das pessoas, justificando-se uma obra que, na verdade atende, primordialmente, ao uso do grande capital, que tem interesse nessas águas? (DUARTE & COSTA, 2009).

  1. O Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano não saiu das gavetas governamentais, em razão da prioridade, no Plano de Aceleração do Crescimento do País (PAC), que foi dada ao projeto da Transposição. A ANA havia elaborado um diagnóstico em 1.300 municípios, nos 9 estados nordestinos, com proposta de 530 obras, para que as populações tivessem segurança hídrica até 2025. Embora esse projeto tenha sido perfeito do ponto de vista do abastecimento humano (porque é uma obra focada no abastecimento, e não nos interesses econômicos, como é o caso do projeto da transposição), não despertou atenção das autoridades, pois as adutoras do Atlas não aparecem aos olhos das pessoas. Se o governo quisesse, realmente, resolver o problema da sede das populações do Semiárido, teria se empenhado mais na proposta do Atlas, e levaria a sério a construção das pequenas obras no meio rural, principalmente fazendo uso das cisternas (MALVEZZI, 2007). Neste caso, o Atlas se propõe a resolver o problema da sede, não de 12 milhões de pessoas, mas de 34 milhões de nordestinos. É um número três vezes maior do que aquele previsto no projeto da transposição. E no meio rural, com as pequenas obras, se espera alcançar mais 10 milhões de pessoas.
  2. O Programa Um Milhão de Cisternas é o único que vem cumprindo, satisfatoriamente, tudo aquilo que havia sido estabelecido em seu cronograma inicial de operação, ou seja, a instalação de cerca de 350 mil cisternas (em universo previsto para construção de cerca de 1 milhão de unidades), visando o abastecimento da população residente de forma esparsa na região, com água de boa qualidade, para beber e cozinhar.

Até poucos anos atrás, 90% da população rural nordestina não tinha acesso à água potável. Utilizava-se da água do barreiro (pequeno reservatório para acúmulo da água de chuva, a qual se tornava turva e imprópria para consumo), para dessedentação do porco, do jumento, do boi e do bode, como também para lavar roupas, pratos, para tomar banho, beber e cozinhar (MALVEZZI, 2007). Esse era, até pouco tempo, o manancial que grande parte da população do Semiárido dispunha. Esse quadro começa a mudar, atualmente, com o uso das cisternas rurais, cuja proposta de captação de água de chuva tem uma vantagem importante: por serem fechadas, as águas ali acumuladas não evaporam, não se perdem durante o ano, como se perdem aquelas estocadas a céu aberto nas represas. Entretanto, não basta água apenas para beber.

Há necessidade de água para outros usos, principalmente nos sistemas produtivos. Dessa forma, está sendo conduzido um segundo programa denominado de uma terra e duas águas, programa este desenvolvido na China, em sua região semiárida. Aquele país fez uma reforma agrária, entregando uma área para cada família, fornecendo duas aguadas baseadas na captação de água de chuva: uma, com reservatório de 16 mil litros (cisterna convencional), cuja água é utilizada para beber e cozinhar; a outra, com reservatório de 52 mil litros, com a água captada na roça (cisterna calçadão), para uso na pequena irrigação, minuciosamente aproveitada, para garantir a segurança alimentar das pessoas (DUARTE, Brenda; COSTA, Évillin, 2009).

Essas questões são importantes de serem aqui tratadas, pois se estima que o Semiárido nordestino tenha mais de 20 milhões de pessoas. Desse contingente populacional, cerca de 10 milhões são residentes de forma difusa na região, que, no exacerbar de uma seca, passam dificuldades com a falta de água e, em consequência, fome avassaladora, pois lhes faltam os meios necessários para produzir os alimentos de subsistência. Para esse tipo de público, as cisternas rurais poderão se constituir como elementos fundamentais de auxilio à solução definitiva desses problemas.

– A evolução do projeto da Transposição do São Francisco

Há cerca de 25 anos, no governo do então presidente José Sarney, o projeto da Transposição do rio São Francisco voltou à baila, dessa feita com a proposta do abastecimento de 8 milhões de pessoas no Semiárido nordestino. Na ocasião, havia sido estabelecida, no projeto, a construção de um único eixo, com origem no município de Cabrobó (PE), para o abastecimento dos estados do Rio Grande do Norte e Ceará. Previa-se para esse trecho, uma retirada volumétrica, no rio, de cerca de 260 m³/s, a um custo estimado em cerca de R$ 2,5 bilhões.

Em 1995, na gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o projeto da Transposição ganhou mais um eixo, o Leste (o eixo previsto na época do presidente Sarney recebeu a denominação de Norte), para possibilitar a chegada das águas do Velho Chico à Paraíba e abastecer cerca de 12 milhões de pessoas em toda a região Setentrional nordestina. Mesmo havendo previsão de redução volumétrica de retirada nos dois eixos (passou-se a adotar uma média de retirada de cerca de 70 m³/s), o orçamento do projeto saltou para cerca de R$ 4,5 bilhões.

No governo Lula, o projeto continuou com os dois eixos previstos anteriormente (Norte e Leste), mas com uma proposta de variante no eixo Leste (a Adutora do Agreste) para o atendimento de algumas regiões da bacia do rio Ipojuca, no Agreste pernambucano, com problemas de escassez hídrica. O orçamento do projeto pulou para R$ 6,6 bilhões (DUARTE & COSTA, 2009).

Sob a responsabilidade da presidente Dilma, ações para a solução de problemas operacionais da Transposição, aliadas à construção do novo traçado do eixo Leste, no Estado de Pernambuco, fizeram o orçamento geral do projeto da Transposição subir para cerca de R$ 8,3 bilhões, podendo esta cifra atingir, nos próximos 25 anos, a casa dos R$ 20 bilhões (ALVES, 2012). A oportunidade de acesso a essa enorme cifra (os R$ 8,3 bilhões) para investimentos numa região carente, como é o caso do Nordeste brasileiro, nunca havia ocorrido na história desse país. Essa talvez tenha sido a principal razão que levou as autoridades a decidirem pela inclusão da Transposição nos planos orçamentários do PAC. É lamentável, no entanto, que decisões dessa magnitude recaiam na escolha de projetos de maior orçamento e não daqueles de maior importância social.

Outra observação importante a se fazer é que, mesmo que o eixo Leste seja voltado para fins de abastecimento das populações, entende-se que a forma como as águas do São Francisco irão chegar às torneiras das populações do Agreste pernambucano e da Paraíba, é equivocada. Elas deveriam ser aduzidas (fazendo-se uso de tubulações), conforme referendado anteriormente nesse relato, embasado nos exemplos exitosos de abastecimento em Pernambuco (adutora do Oeste e adutora de Salgueiro), e não transportadas em canais a céu aberto, cuja evaporação e utilização inadequada na irrigação, ficarão marcadas, para sempre, nos anais da hidrologia nordestina, como ações desnecessárias e insensatas.

A chance perdida na solução do abastecimento das populações do Setentrional nordestino, não se priorizando as ações do Atlas Nordeste, só vem a entristecer o país e, em particular, ao povo do Semiárido, que passa, agora, a não vislumbrar mais nenhuma perspectiva, pelo menos de curto prazo, para solução de seus problemas de abastecimento.

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Recife, 25 de Julho de 2012

AUTOR

João Suassuna

João Suassuna é Engenheiro Agrônomo (UFPB), especialista em Planejamento Florestal (FGV-RJ) e mestre em Botânica (UFRPE). Pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco, é um dos maiores especialistas do país em questões de hidrologia do Semiárido. Autor de diversos livros e artigos sobre a questão, João destaca-se por apresentar propostas concretas para mudar a relação do homem nordestino com seu ambiente. Defensor da ideia de que não é necessário transformar o Semiárido, mas sim se adaptar a ele, João propõe inovações para a prática da agricultura, pecuária e, sobretudo, uso da água na região. João Suassuna destaca-se também por seu conhecimento sobre o rio São Francisco, posicionando-se contrário à transposição.

Pesquisador com diversos trabalhos publicados na área agrícola e de meio ambiente, dentre os quais se destacam “A salinidade das águas disponíveis para a pequena irrigação no sertão nordestino“, “Transposição do rio São Francisco na perspectiva do Brasil real“, “As águas da política: Recursos hídricos no Nordeste, o problema não é falta de água, é distribuição” e “Contribuição ao estudo hidrológico do semiárido nordestino“.

Todos os seus trabalhos encontram-se disponíveis em sítio próprio na internet, no seguinte endereço: (http://www.remaatlantico.org/sul/author/suassuna)

Telefone: 81 3073-6526 / 81 9970-9240

Fax: 81 3073-6522

E-mail:josu@fundaj.gov.br

EcoDebate, 26/07/2012

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