O ‘espírito da lei’, artigo de Montserrat Martins
[EcoDebate] Fofocas e chavões são mais divertidos que análises de conteúdo. Por exemplo, comentários na internet sobre a impugnação da candidatura da Luciana Genro, com manifestações contra ou a favor a pessoa dela ou o seu partido (tipo “a letra fria da lei também é para os esquerdistas” ou “ela é uma das poucas políticas honestas”), sem entrar no mérito da questão legal. A situação inusitada – o pedido de impugnação por ser filha do governador, ao qual politicamente se opõe – traz à tona uma questão de fundo para o Direito, que mereceria um debate bem mais profundo: qual o papel do “espírito da lei” na nossa Justiça ?
A disciplina na qual se interpreta e discute as finalidades das leis, a Hermenêutica Jurídica, não está entre as mais valorizadas no curso de Direito, não tem nem parte do “charme” para os alunos de matérias como o Processo Civil. Isso reflete a nossa tradição jurídica formalista e o questionamento dessa característica é um dos cernes dos debates sobre a Justiça do século XXI. Como preservar a imparcialidade do julgador sem cair num subjetivismo ideológico, mas ao mesmo tempo não fugir ao debate teleológico – o estudo das finalidades – para não ficar restrito ao burocratismo da “letra fria da lei”?
Um sistema legal bem diferente do nosso, o “Common Law”, valoriza mais a jurisprudência, os usos e os costumes, o contexto portanto, em contraste ao nosso apego às leis escritas. Nos filmes é interessante, mas na teoria parece confuso e confesso que eu não compreendia bem como ingleses, canadenses, americanos e australianos podiam se entender nesse sistema, quando estudei Direito nos anos 90. Mas observando no dia a dia tantos casos em que a “letra fria da lei” se torna burocrática e até injusta, faz mais sentido pensar em outras formas de conceber a aplicação da Justiça.
Se formos analisar o “caso didático” da Luciana teríamos de distinguir sua situação – a título de exemplo, meramente ilustrativo – com a da Jaqueline Roriz que disputou sua primeira eleição em 2006, quando seu pai Joaquim Roriz era governador do Distrito Federal. Análise jurídica que, ao invés de discutir as pessoas da Luciana e da Jaqueline ou os seus partidos, examina a intenção da lei. A intenção é vedar qualquer filho de governador simplesmente por seu DNA, ou impedir o favorecimento do governo (e da máquina pública, portanto) a uma candidatura que foi “inventada” justamente para se beneficiar disso?
Trata-se de uma lei boa, necessária, que não tinha como prever casos tão inusuais como o da Luciana. O que esse caso tem de mais interessante é uma lição sobre todas as leis: qualquer legislação, por melhor que seja, traz em si “efeitos colaterais” se for aplicada de forma burocrática, sem consideração dos motivos pelos quais existe. Essa é uma questão de fundo que merece um grande debate, mas que está sendo esquecida enquanto se discute apenas o viés político-partidário do caso. Podemos demonizar ou idealizar os partidos, mas são os que temos e sua depuração é lenta, um processo cultural que depende de várias gerações. Enquanto isso estamos todos sujeitos às interpretações das leis que, no dia a dia, definem nossos direitos e deveres. Seria sábio não desperdiçarmos a oportunidade de reconhecer que a questão do “espírito da lei” tem de ser incluída entre os bons debates, não tão divertidos quanto as fofocas, mas mais proveitosos para nossas vidas.
Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
EcoDebate, 23/07/2012
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