Cisterna sai do sertão nordestino e vai para a favela
Modelo da cisterna de placa
A sertaneja Lindinalva Martins e o pedreiro Eduardo Cavalcanti: oito dias para cavar o buraco e mais cinco para construir artesanalmente a cisterna
A sertaneja Lindinalva Martins, 27 anos, aprendeu a conviver com a seca que neste ano mais uma vez castiga a zona rural de Mossoró (RN). Em junho, viajou 277 km até a capital potiguar e de lá voou para o Rio de Janeiro, quando percebeu que a resiliência da vida severina tem valor inclusive para quem mora no frescor da Mata Atlântica bem longe do semiárido. No alto de um dos morros próximos ao Complexo do Alemão, no bairro Engenho da Rainha, ela encontrou o pedreiro Eduardo Cavalcanti, 28 anos. A missão: ensiná-lo a construir cisternas que acumulam água da chuva, transferindo para as favelas cariocas a tecnologia de adaptação às adversidades do clima que está dando certo no sertão. Matéria no Valor Econômico, socializada pelo ClippingMP.
A diferença é que, nas encostas densamente povoadas do Rio de Janeiro, a nova água servirá para irrigar hortas comunitárias e projetos de reflorestamento para conter deslizamentos – e não para matar a sede, como no assentamento Barreira Vermelha, onde mora Lindinalva. “Antes das cisternas, caminhávamos horas diariamente para encher tonéis nos açudes e trazê-los no lombo do jumento”, recorda. Hoje cada família tem nos quintais uma reserva de 16 mil litros, provenientes das chuvas irregulares na região. Não se sabe até quando os estoques durarão na estiagem atual, que só tem previsão de amainar a partir de outubro. “A solução é ir cada vez mais longe para conseguir abastecimento no chafariz de adutoras”, diz.
No Rio de Janeiro, foram oito dias para cavar o buraco e mais cinco para construir artesanalmente a cisterna, na comunidade Sérgio Silva, onde há um projeto agroflorestal de 1,5 mil metros quadrados para produção de alimento e ervas medicinais, além do plantio de mudas nativas. “É uma dificuldade para a água encanada da companhia de abastecimento chegar no alto da favela, principalmente nas épocas de calor, quando o consumo na cidade é maior”, justifica Eduardo. Ele conta que muitas vezes a saída é a ligação clandestina para a distribuição através de bombeamento feito pelos moradores, sem vazão suficiente para irrigar plantios – apenas abastecer torneiras.
Uma segunda cisterna começou a ser construída na vizinhança, também na Serra da Misericórdia, onde existem mais de cem comunidades. “A região é a última área verde da Zona Norte da capital e apresenta quadro avançado de degradação, sendo necessário um processo de resiliência para a adaptação mais rápida às mudanças no clima”, adverte Edson Gomes, diretor da ONG Verdejar. “A ideia é fazer a comunidade se apropriar e replicar a tecnologia das cisternas”, diz Claiton Mello, diretor da Fundação Banco do Brasil, que apoia o projeto. No Nordeste, a entidade auxiliou a construção de 60 mil cisternas, ao custo de R$ 2.080 cada.
“Mais que a obra propriamente dita, o importante é o modelo que envolve qualificação, participação social e mobilização das comunidades”, ressalva Naidson Baptista, da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). Desde 2004, a organização construiu 410 mil cisternas com apoio do Ministério do Desenvolvimento Social e patrocínio de entidades privadas, como a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e a Fundação Pepsico. No total, foram investidos até o momento R$ 750 milhões, com meta de atingir 750 mil cisternas até 2014, reduzindo a dependência da população em relação aos carros-pipa e à manipulação política da chamada “indústria da seca”. O desafio, segundo Baptista, não é combater a seca, mas “permitir a convivência com ela”.
“A estratégia é desenvolver sistema produtivo de referência que torna o agricultor familiar mais resiliente às mudanças climáticas”, acrescenta Daniele Cesano, da Rede de Desenvolvimento Humano. “O modelo não pode ser paliativo, mas estruturante, capaz de inspirar planos de contingência para o enfrentamento de secas”, ressalta. No projeto Adapta Sertão, a entidade mobilizou 60 produtores no município de Pintadas (BA), no vale do rio Jacuípe, para a produção de ração animal armazenada em silos como reserva, cultivos de subsistência em sistemas agroflorestais e organização em cooperativas para garantia de assistência técnica e microcrédito. Foi instalada uma fábrica de polpa de frutas nativas da caatinga e estão em testes sistemas para dessalinização de água subterrânea, que é salobra em grande parte do semiárido. “O projeto piloto, previsto para terminar neste ano, está se transformando em política pública e será replicado na região na forma de planos de contingência”, revela Cesano.
Estudo da Coppe/UFRJ indica que as chuvas no Nordeste tendem a diminuir entre 2 e 2,5 mm/dia até 2100, causando perdas agrícolas em todos os Estados da região. O déficit hídrico reduziria em 25% a capacidade de pastoreio de bovinos de corte, o que poderá forçar o retrocesso à pecuária de baixo rendimento. A vazão dos rios, diz a pesquisa, diminuiria em média até 90% entre 2070 e 2100. “É preciso correr, ir mais rápido que os impactos do clima”, conclui Cesano.
EcoDebate, 28/06/2012
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