Impactos dos grandes empreendimentos hidrelétricos em populações ribeirinhas
Hidrelétrica. Foto de Jorge Gerônimo Hipólito
Impactos do desenvolvimento em populações ribeirinhas – Professora da UFMG problematiza concepção hegemônica de meio ambiente que emerge de estudos de impacto ambiental
Quando se fala nos grandes empreendimentos hidrelétricos, por mais que se seja favorável à sua construção, é difícil negar o fato de que eles em geral produzem impactos profundos no regime de vazão de rios e afetam de maneira significativa as populações que dependem deles para exercer seus modos de vida de maneira autônoma. No entanto, a avaliação e a interpretação desses impactos estão sujeitas a diferentes formas de se pensar o meio ambiente. A partir de um exemplo concreto, obtido através de uma pesquisa realizada junto a populações ribeirinhas do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, afetados pela construção de uma barragem, Andréa Zhouri, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), problematizou o discurso ambientalista hegemônico, que concebe o meio ambiente como um elemento isolado das populações que habitam os territórios e dele dependem para sua sobrevivência, concepção essa que inclusive contamina a produção científica acerca dos impactos dos grandes empreendimentos. A palestra integrou o seminário ‘Desigualdade Ambiental e Regulação Capitalista: da acumulação por espoliação ao ambientalismo-espetáculo’, promovido nos dias 31 de maio e 1º de junho no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ).
Segundo Andréa, o discurso ambientalista hegemônico, que orienta as discussões sobre o chamado desenvolvimento sustentável, tende a associar meio ambiente com a imagem do planeta Terra, vista do espaço. “Essa associação é equivocada porque é produzida por uma mente que se vê fora do meio ambiente, de fora e olhando o objeto de longe, à distância. Ele é fruto de um pensamento colonizador, que fala de um planeta como algo a ser conquistado ou cuidado”, afirmou. Essa maneira de pensar, diz ela, alimentou uma controvérsia técnica que se instaurou acerca dos impactos da barragem de Irapé, no rio Jequitinhonha em Minas Gerais, às populações ribeirinhas. Segundo Andrea, as transformações no fluxo do rio causadas pela edificação da barragem, inaugurada em 2005, atingiram cerca de cinco mil pessoas, em sete municípios da região.
A pesquisadora contou que, durante um trabalho de campo realizado na região à jusante da barragem de Irapé, em 2006, pesquisadores vinculados ao Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta), núcleo da UFMG coordenado por Andréa, ouviu dos moradores ribeirinhos uma série de denúncias. “Eles relataram que a inauguração da barragem acarretou uma grande mortandade de peixes, a água do rio Jequitinhonha passou a apresentar odores fétidos e as pessoas reclamavam de alergias na pele e nos olhos. As mulheres que lavavam roupa no rio relataram que a água deixava manchas de ferrugem na roupa, e que mesmo o gado se recusava a beber daquela água”, enumerou Andrea.
Segundo ela, a equipe de pesquisadores relatou a situação ao Ministério Público, que por sua vez instaurou um inquérito e designou um engenheiro sanitarista para investigar a pertinência das críticas feitas pelos ribeirinhos. “Inspirado na resolução 357/75 do Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente], esse perito argumentou que as águas do rio Jequitinhonha seriam classificadas como classe 2, ou seja, de boa qualidade. Segundo ele, as queixas ou questões levantadas pela comunidades locais não seriam de responsabilidade ou de competência da empresa concessionária posto que ‘as águas do rio Jequitinhonha já eram impróprias ao consumo humano sem tratamento antes da implantação da UHE Irapé’”, disse Andrea. Em seu relatório, o perito ainda chamou de “estéticas” as alterações causadas no fluxo do Jequitinhonha a partir da construção da barragem.
Segundo ela, o caso serve para ilustrar como as diferentes posições dos atores sociais fazem emergir significados diferentes de meio ambiente. “Diferentes pessoas e organismos tecem engajamentos distintos com o chamado meio ambiente. Por um lado, os ribeirinhos, que nunca tiveram a água tratada e usam a água do rio de forma direta, sentindo na pele literalmente as transformações daquela água. De outro lado, o perito técnico, que com sua análise objetiva, muito provavelmente vindo de uma experiência urbana e de classe social que tem acesso a água tratada e ao saneamento, atribui o uso da água do rio à ignorância da população local”, observou Andréa, em seguida complementando: “Para esse perito, as reclamações desses ribeirinhos não corresponderiam ao estatuto de evidência legitimada pelas instituições competentes e não deveriam portanto serem consideradas pelos agentes ambientais”.
Segundo Andréa, os argumentos apresentados pelos dois lados não convenceram o Ministério Público, que solicitou que cada grupo perito fizesse um novo estudo. Em seu trabalho, o grupo coordenado pela antropóloga avaliou que muitos dos impactos produzidos pela barragem não foram levados em conta pelo perito técnico. Andréa então explicou porque o grupo chegou à essa conclusão: segundo ela, os ribeirinhos desenvolveram um sistema de produção agrícola altamente dependente das alternâncias sazonais da vazão do rio. Esse sistema é dividido entre: a agricultura de vazante, que é a área às margens do rio, sujeitas a enchentes sazonais, onde são cultivados vegetais e diferentes tipos de legumes, como alface, cebola, repolho, tomate e cenoura, entre outros; um pouco acima das vazantes, nos chamados tabuleiros, são cultivadas as roças de milho, feijão e, eventualmente, arroz; finalmente, nas chapadas, que são as áreas mais altas e planas, que no passado eram usadas para criação de gado e extrativismo, mas que hoje foram tomadas pela monocultura do eucalipto. “O cultivo nos tabuleiros exige tempo chuvoso e as hortas dependem das vazantes e somente podem ser produzidas na seca, quando o rio tem seu volume reduzido”, assinalou a pesquisadoraa. Por conta disso, o ritmo de trabalho e de produção é ditado pelo regime do rio, o que exige habilidades que, segundo Andreia, foram desenvolvidas pelos ribeirinhos a partir de um aprendizado prático obtido “através de um engajamento perceptivo direto dos ribeirinhos com seu ambiente”.
“Por outro lado, o estranhamento atual para com a dinâmica do rio revela a gravidade do desordenamento, da insegurança impostos aos moradores. No ultimo trabalho de campo em 2011 foi possível observar mudanças no regime natural do rio que representaram a perda das áreas mais importantes da agricultura de vazante”, apontou Andréa. Segundo a pesquisadora, isso trouxe inúmeras consequências. “Em termos econômicos, uma das consequências tem sido o aumento da despesa com alimentos, com o comprometimento do orçamento das famílias, o que também traz impactos para a dieta nutricional das famílias. Essas transformações afetam a lógica da autonomia cara as famílias, expressa na maneira com que elas gerenciam e controlam suas condições de produção no âmbito doméstico. Eles falam com vergonha da necessidade de comprar comida”, revelou. Além disso, ressaltou Andréa, com a perda da capacidade familiar de manter a força de trabalho em casa, muitos habitantes não tem outra alternativa a não ser migrar. “Por fim, as alterações no regime natural de vazão do rio significam a supressão de boa parte das referências que lhes forneciam orientação espacial e temporal para a condução das atividades produtivas”, concluiu a pesquisadora.
Matéria de André Antunes, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), publicada pelo EcoDebate, 14/06/2012
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