Publicidade para o público infantil e má educação alimentar colocam em risco a saúde de crianças e adolescentes
Um cardápio gordo em casa e na TV –
Isabela Morais
Publicidade para o público infantil, aliada à má educação alimentar da família, coloca em risco a saúde de crianças e adolescentes
A mãe relata que o filho, que tem por volta de cinco anos de idade, não gosta de palmito. Na mesa, ela tenta alimentá-lo, mas ao estender o talher, a criança diz, ainda com o vocabulário engraçado de quem está aprendendo a falar: “Eu não gosto de palito”. Depois, a mãe afirma que o menino dá muito trabalho para comer couve. “Come só um pouquinho”, insiste. Ele, dengoso, fala: “Eu não gosto de combi”. Ela, então, abre o armário e pega um achocolatado em pó. Prepara a bebida e afirma que aquele produto, tomado diariamente, é capaz de complementar a alimentação do filho. Ao final, o menino animado, segurando um grande copo na mão, depois de tomar um gole, diz: “Eu gosti”.
Essas cenas são de um comercial televisivo retirado do ar, em 2010, por meio de denúncias feitas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Isso porque a mensagem de que o produto é capaz de complementar a alimentação das crianças é falsa. O nutricionista Alexander Marcellus Carregosa da Silva Pitas, em seu site nutritodos.com.br, denunciou as irregularidades do comercial. “Divulgo produtos que apresentam propagandas irregulares e dou dicas de alimentação saudável. Já consegui retirar do ar sete publicidades irregulares”, conta.
A alimentação das crianças, tema que desperta o interesse do nutricionista, já foi seu objeto de pesquisa. Pitas é mestre pela Faculdade de Saúde Pública (FSP), onde realizou estudo sobre a percepção de mães e crianças com relação às propagandas de alimentos e bebidas na televisão. Ele relata: “Muitas empresas querem vender seu produto, o que é aceitável, mas por meio de informações que não são reais”.
Oito milhões de crianças do Brasil estão acima do peso, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em 2010. Isso equivale a 33,5% dos indivíduos de cinco a nove anos do País. Nos últimos 20 anos, os casos de obesidade infantil mais do que quadruplicaram. Para Pitas, os dados revelam que a educação alimentar, desde cedo, é deficiente. “Pais que não se alimentam direito não ensinam corretamente seus filhos. Do outro lado, a mídia vende alimentos não saudáveis e muitas vezes com informações falsas”, relata.
Responsável pelo site nutritodos.com.br, Alexander Marcellus Carregosa da Silva Pitas divulga informações de saúde e nutrição
E a TV exerce sua influência: quatro horas e 51 minutos foi o tempo médio que as crianças assistiram à televisão, em 2005, de acordo com o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope). Pitas monitorou as propagandas durante a programação infantil das duas maiores emissoras do País, por uma semana. “Todas as propagandas alimentícias eram de alimentos não saudáveis”, conta. Do total de peças publicitárias de alimentos na TV, em todos os horários, 96,7% são de produtos gordurosos e com alto teor de açúcar ou sal, segundo pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), de 2009.
A falta de esclarecimentos sobre nutrição, aliada a um mercado publicitário de grande impacto, com o uso de cores, movimentos, músicas e mascotes, influencia a alimentação de crianças e adolescentes. “As mães sentem dificuldades em controlar o tempo das crianças em frente à TV. A maioria delas, cerca de 80%, acabou comprando em algum momento os alimentos que as crianças sugeriam, sobretudo fast-foods e refrigerantes.”
Responsabilidade dos pais
No almoço da creche da Faculdade de Saúde Pública (FSP), a alimentação das crianças fica por conta de Isa Maria de Gouveia Jorge
“Criança de barriga cheia é bem diferente de criança bem alimentada.” Isso é o que diz Isa Maria de Gouveia Jorge, doutora em Saúde Pública pela USP e nutricionista da Divisão de Creches da Coordenadoria de Assistência Social (Coseas). De acordo com Isa, os pais se apoiam na ideia comum de que quanto mais uma criança come, mais saudável ela é. “Quando a mãe vem buscar seu filho na creche, a primeira pergunta é: ‘Ele comeu?’. Ela não quer saber se ele brincou, por exemplo. Há sempre a ideia de que se ele comeu, está tudo bem”.
Mas a realidade não é essa: alimentar-se de modo saudável não é comer em excesso e essa é uma regra de deve ser aprendida em casa. “Os adultos são os modelos para as crianças. Não adianta mandar a criança comer legumes se os adultos da família não comem. Sem um exemplo em casa, e sabendo de sua persuasão sobre os pais, os filhos acabam comendo aquilo que querem, geralmente os alimentos gordurosos e açucarados que as propagandas mostram”, conta. Isa lembra que a obesidade entre as crianças tem crescido na mesma proporção entre adultos, o que ajuda a reforçar a visão de que bons ou maus hábitos alimentarem vêm dos pais.
Quanto à famosa frase dos filhos pequenos, “mas eu não gosto disso”, Isa revela: “Quando a criança diz que não gosta de determinado alimento, na maioria das vezes o que ela quer dizer é que não conhece aquele alimento. É sabido que ela só come o que lhe é familiar, o que faz parte do seu dia a dia”. Por isso, para reverter a situação é preciso que haja uma mudança de hábitos, além de uma boa dose de paciência, para que a familiaridade aconteça com os alimentos consumidos em casa, e não com os da propaganda na televisão.
A primeira dica é aumentar o repertório de alimentos da família. Evite comidas prontas e insira diversos legumes, verduras e frutas no cotidiano alimentar da casa. Na hora das refeições, não force a criança a comer aquela cenoura que ela odeia, por exemplo. “A fome é instintiva. Seu filho irá comer quando sentir fome”, ela lembra. Não substitua refeições nem promova a alimentação fora de hora. “Na hora do almoço, quando estiverem à mesa e o que tiver para comer for aquilo, é aquilo e pronto. Não tente dar outras coisas”, aconselha. Importante também é não usar a alimentação como um prêmio. Comer deve ser prazeroso e não um ato que aconteça sob chantagem. “Não fale que se seu filho não comer os legumes, ele não terá a sobremesa ou alguma outra refeição”, diz a nutricionista.
É claro que colocar essas ações em prática não é tarefa fácil. Para isso, Isa dá mais conselhos: dê uma pausa na correria do dia e leve seu filho para a cozinha. Faça com que ele lave as frutas, as verduras e os legumes; escolha junto com ele qual o tempero é melhor para cada alimento que será preparado; faça receitas saudáveis e lhe dê tarefas fáceis de cumprir. Ela encerra: “Alimentação e afeto estão muito ligados. Alimente seu filho pensando no futuro e não apenas no agora, ou no quão saciado ele está”.
Legislação da publicidade
O questionamento do nutricionista Pitas fica por conta da veracidade do que é divulgado pelas propagandas. “A publicidade dá uma ideia errada sobre a qualidade nutricional e vende alimentos ricos em açúcares e gorduras como se fossem saudáveis”, diz. Ao coletar relatos de crianças, ele notou que era comum, por exemplo, a ideia de que sucos artificiais em pó são saudáveis, pois nas peças publicitárias tais produtos costumam estar associados a imagens de frutas.
Para Gino Giacomini Filho, há uma luta desigual entre o marketing que reforça maus hábitos alimentares e o acesso a informações sobre alimentação saudável
As mensagens irregulares estão previstas na resolução nº 24/2010, da Anvisa. Essa norma proíbe que peças publicitárias informem que o alimento vendido seja completo (que possua todos nutrientes de que os consumidores precisam), ou seja capaz de substituir outro alimento natural, ou garanta saúde ou desestimule o aleitamento. Essa resolução, porém, foi questionada pela Associação Nacional das Indústrias de Biscoito (Anib) que conseguiu barrar sua aplicação.
Gino Giacomini Filho, professor de publicidade e propaganda da Escola de Comunicações e Artes (ECA), enumera outras normas de regulamentação. “O mais abrangente é o Código de Defesa do Consumidor que proíbe anúncios que induzam o consumidor a erro sobre propriedades ou características dos produtos, ou então que ofereçam riscos à saúde do consumidor”, relata. Há também o Código de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que proíbe que o anunciante apresente qualquer produto como substituto das refeições básicas.
A efetividade dessas regulamentações, porém, é questionável. Giacomini destaca que as normas dependem de uma aplicação rigorosa. Mas a limitação de fiscalização e os recursos jurídicos dos anunciantes permitem que apenas alguns casos de propagandas irregulares sejam revertidos. Ele alerta: “A mudança do quadro de indiferença da publicidade com a saúde pública parece depender mais da pressão da opinião pública, da imprensa e, ultimamente, das mídias sociais”.
Já a norma da Anvisa apresenta uma contribuição significativa para dar objetividade aos critérios de avaliação desse tipo de propaganda – o que falta nas demais normas. Ele opina: “As entidades que são contra essa norma parecem não entender ainda os graves problemas de saúde pública envolvendo obesidade, pressão alta, diabetes e outras doenças que afetam a população brasileira e o grande peso que a propaganda representa para esta situação”.
Para Pitas, a proibição da propaganda voltada ao público infantil é uma boa solução para barrar o crescimento dos casos de obesidade e sobrepeso entre crianças e adolescentes. “Nos últimos anos, o número de fumantes caiu no Brasil. Parte disso se deve à proibição da propaganda de cigarros na TV. Se reduzimos esse tipo de publicidade, reduzimos os estímulos para fumar”, exemplifica. Um projeto de lei que proíbe a propaganda para crianças está em tramitação no Congresso Nacional desde março de 2011.
O professor Giacomini se utiliza do mesmo exemplo de Pitas. “Assim como na questão do tabagismo, as ações firmes do governo, a criação de uma legislação específica e a contribuição dos meios de comunicação poderão trazer um cenário melhor para a questão da publicidade infantil”, revela. Mas ele adverte: “Nada substitui a articulação da sociedade, em que a conscientização, a educação, o combate ao consumismo desencorajarão esse marketing antissocial”.
Matéria da revista Espaço Aberto/USP, publicada pelo EcoDebate, 31/05/2012
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