‘Comissão da Verdade’: Uma Comissão da verdade e da memória, mas ainda não da justiça
A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Sumário:
Comissão da Verdade
Uma vitória pessoal de Dilma
Um caminho sinuoso: a Comissão é uma sobrevivente
Uma Comissão da verdade e da memória, mas não da justiça
Avanços e limites
Investigar os dois lados?
Levante Popular dá visibilidade à Comissão
O passado não pode ser apagado
O significado das lágrimas de Dilma
O jovem Ismael. Caso emblemático da cultura da violência pós-ditadura
Eis a análise.
A Comissão da Verdade é um avanço ou já nasce limitada? Jogará luzes sobre o sombrio período autoritário ou pouco acrescentará ao que já se sabe? Possibilitará romper a impunidade que se impôs sobre os anos de chumbo com a Lei da Anistia? São questões suscitadas com a instalação da Comissão da Verdade abordadas nessa Conjuntura da Semana.
Uma vitória pessoal de Dilma
“Creio que o maior aprendizado oferecido por estas experiências [instalação de Comissões da Verdade em outros países] a qualquer país que queira aprender, e ao Brasil em particular, é perceber que a verdade não deve ser temida, que expor publicamente as atrocidades cometidas por agentes do Estado não significará um retrocesso democrático ou uma instabilidade política. Muito pelo contrário”. A afirmação é do advogado José Carlos Moreira Filho, em entrevista concedida por e-mail à Revista IHU On-Line.
A criação da Comissão da Verdade vem para suprir – embora de forma limitada, como veremos mais abaixo – essa deficiência da democracia brasileira. Mesmo chegando atrasada, ela tem o potencial de abrir uma nova página no trabalho de resgate da memória e da busca da verdade sobre um período recente da história brasileira.
A criação da Comissão Nacional da Verdade está contemplada no Decreto presidencial 7037 de 21 de dezembro de 2009, que aprovou o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3. A Diretriz 23 (Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado) estabeleceu como Objetivo Estratégico I, a promoção da apuração e do esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticados durante a ditadura militar. Uma das ações programáticas ali previstas era a elaboração de um projeto de lei que institua a Comissão Nacional da Verdade. O prazo estabelecido para isso era abril de 2010.
Depois disso o projeto de lei n. 7.376 foi analisado pela presidente Dilma e, na sequência, enviado ao Congresso Nacional para aprovação. E nisso já estamos em fevereiro de 2011, quando, por determinação da própria presidente, houve uma mobilização dos ministros com vistas à aprovação, no Congresso, do projeto de lei.
A proposta foi frontalmente combatida – especialmente pelos militares, como se verá mais abaixo –, mas contou com o decidido apoio da Presidente Dilma Rousseff desde o começo do seu governo. Segundo fontes do governo, a criação da comissão estava entre as prioridades do governo.
Entre idas e vindas, em novembro de 2011, a Comissão Nacional da Verdade foi aprovada com o apoio de todas as bancadas, após intensa negociação do governo, que colocou quatro de seus ministros – Justiça, Defesa, Direitos Humanos e Relações Institucionais – para conversar com a base e a oposição e convencê-los da importância da matéria. No dia 18 de novembro de 2011, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criou a Comissão da Verdade.
O colegiado, que terá a missão de investigar os crimes cometidos durante a ditadura, só foi instalado no dia 16 deste mês de maio. Duas mulheres e cinco homens compõem a Comissão: Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada com especialização na defesa de crimes políticos; Maria Rita Khel, psicanalista e escritora; José Paulo Cavalcanti Filho, jurista, consultor da Unesco e do Banco Mundial; Cláudio Fonteles, ex-procurador-geral da República; Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça; José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça; Paulo Sérgio Pinheiro, cientista político.
A cerimônia de instalação da Comissão contou com as presenças dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. No seu discurso, a presidente Dilma afirmou que a Comissão da Verdade consolida o processo democrático e salientou que “o silêncio e o esquecimento são sempre uma grande ameaça”. “Não podemos deixar que no Brasil a verdade se corrompa com o silêncio”, disse Dilma. “A verdade interessa muito, às novas gerações, que tiveram a oportunidade de nascer e viver sob regime democrático. Interessa, sobretudo, aos jovens que hoje têm o direito à liberdade e devem saber que essa liberdade é preciosa e que muitos por ela lutaram e pereceram.”
O colegiado terá prazo de dois anos para apurar as violações ocorridas num arco temporal de 1946 a 1988. Terá como objetivo “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos”, como torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres. A comissão terá ainda de tornar públicos locais, instituições e circunstâncias relacionados às violações de direitos humanos e suas eventuais ramificações no Estado e na sociedade, assim como auxiliar na identificação de corpos de desaparecidos. A comissão poderá convocar testemunhas e requisitar informações e documentos de órgãos e entidades do poder público, mesmo que sigilosos. Terá também poderes para fazer diligências para a coleta ou a recuperação de documentos.
Embora a criação da Comissão da Verdade represente um passo à frente, ela apresenta sérios limites, que transparecem na sua composição e formato. Dizem respeito, entre outras razões, ao número de peritos (apenas 14), ao prazo (dois anos) e ao tempo abrangido (1946 a 1988). Por isso, há quem diga que a Comissão já nasce “como um instrumento limitado”.
Um caminho sinuoso: a Comissão é uma sobrevivente
Para chegar aonde está, a Comissão da Verdade teve que percorrer um longo e sinuoso caminho, e em cada etapa, superar inúmeras barreiras. A resistência mais forte e sistemática veio dos militares. Eles foram contrários à aprovação da elaboração do projeto de lei criando a Comissão Nacional da Verdade, depois foram contrários à aprovação do projeto de lei no Congresso nacional e, finalmente, à constituição da Comissão em si. Mobilizaram-se em todos os momentos para inviabilizar ou limitar a abrangência da Comissão da Verdade.
O maior temor dos militares é que a comissão leve a condenações de agentes estatais envolvidos com as mortes e torturas cometidas durante a ditadura militar. O governo teve que garantir a cada momento que isso não irá acontecer.
Após cada derrota, atacavam com novas táticas: contra a revogação da Lei da Anistia, depois pela apuração dos “crimes” cometidos pelos dois lados, por espaço para influenciar na composição do colegiado.
Por fim, já aprovada a Comissão, e como última cartada, ameaçaram com a criação de uma comissão paralela, com a finalidade de rebater as eventuais acusações do grupo oficial. Eles veem na Comissão a possibilidade de um “revanchismo” e no seu trabalho uma tática para rever a Lei da Anistia, aprovada em 1979.
O agora ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, fez-se porta-voz das reivindicações dos militares e comprou suas brigas, trazendo para dentro do próprio governo as divergências em relação à Comissão da Verdade. No final de 2009, ele e os comandantes das Forças Armadas colocaram seus cargos à disposição por serem contrários à criação da chamada Comissão da Verdade. Em outro momento, uma vez aprovada a Comissão, defendeu publicamente que a mesma deveria apurar abusos ocorridos nos dois lados.
A própria negociação para a provação da Comissão no Congresso teve que ser travada em duas frentes: na oposição e na base aliada do Governo.
Não bastasse, as divergências quanto ao caráter da Comissão da Verdade se instalam entre os próprios integrantes como veremos à frente. Porém, como se pode ver, a própria existência dessa Comissão já é uma prova de que ela é uma sobrevivente. E o seu trabalho está apenas começando.
Comissão da Verdade. Avanços e limites
Em setembro de 2011, quando da aprovação da Comissão, a presidente Dilma Rousseff comemorou discretamente sua instalação – uma vitória pessoal – afirmando: “Acredito que é importante para o Brasil e para a posição do Brasil diante do mundo”.
A Comissão, como já vimos, foi pautada ainda no governo Lula no bojo do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), mas sob a pressão dos militares Lula recuou em vários pontos e a deixou a Comissão da Verdade cozinhando em fogo brando. A insistência em colocar para funcionar a Comissão veio no governo Dilma e por decisão pessoal da presidente.
Uma Comissão da verdade e da memória, mas não da justiça
A Comissão para muitos abre novos horizontes na luta contra os desmandos, atrocidades e impunidade cometidos durante a ditadura militar, para outros, entretanto, já nasce natimorta, uma vez que subordinada à Lei da Anistia, está esvaziada, impedida e impossibilitada de utilizar o mecanismo da punição. O governo brasileiro reconheceu em 1995 que o Estado foi o responsável por assassinatos, desaparecimentos e tortura durante o regime militar, mas a Lei de Anistia de 1979 proíbe punições.
A própria ministra Maria do Rosário, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, nesses dias efusiva com a instalação da Comissão, quando da aprovação da proposta no ano passado reconhecia: “É um instrumento limitado”.
A principal crítica à Comissão da Verdade reside no fato de que a mesma não tem poder para responsabilizar e punir ninguém. Essa possibilidade está afastada do horizonte da Comissão. Nesses dias vários integrantes nomeados pela presidente Dilma para a Comissão fizeram questão de deixar claro essa limitação. “Buscamos a reconstituição da história, sem nenhum tipo de revanchismo ou perseguição”, afirmou Claudio Fonteles, ex-procurador-geral da República, um dos escolhidos para a comissão por Dilma.
Outro nomeado, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, disse que “a comissão não acusa, não pronuncia nem julga, o que seria um despautério. A comissão seguirá o que está na lei e apresentará um relatório, ao fim de dois anos”.
Os limites da Comissão são dados pela Lei da Anistia que colocou um ponto final sobre a possibilidade de punir os responsáveis pelos excessos cometidos pelo regime militar. Ponto final esse que foi reafirmado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao considerar legítima a Lei. “A Lei da Anistia está mencionada na lei que cria a comissão. Ela é um fato concreto, existente na legislação brasileira, e a comissão não vai criar nenhuma polêmica em torno disso. Não está no nosso mandato”, disse Paulo Sérgio Pinheiro, reconhecendo que a Comissão da Verdade não tem poderes para questionar a Lei da Anistia.
A Lei da Anistia e sua interpretação tal qual feita pelo STF é questionada pelo Movimento de Direitos Humanos. O ativista dos Direitos Humanos, Jair Krischke em entrevista para o IHU, pergunta: “Por que a Corte Interamericana não aceita essa Anistia”? E responde: “Porque é uma autoanistia, que anistia aqueles que cometeram crimes políticos ou conexos. Conexos a quê? A crime político”. Segundo ele, “no parágrafo segundo da lei diz assim: Não estão anistiados os crimes de terrorismo e os crimes de lesões pessoais. Onde se encontra o crime de terrorismo no Código Penal brasileiro? Não existe crime de terrorismo no Código Penal. Mas lá na Lei de Anistia está escrito. Mas o que é crime de terrorismo? Se alguém praticou crime de terrorismo no Brasil, foram os agentes do Estado”.
Krischke lembra que “a Lei de Anistia é de agosto de 1979 e, em fevereiro de 1980, presos políticos, que continuavam em prisão, fizeram greve de fome, como a imprensa registrou fartamente à época. Então, como pode se tratar tudo de forma igual? Até hoje não foram anistiados os crimes de terrorismo, porque não existe no Código Penal brasileiro, e não foram anistiados os crimes de assalto a bancos, os crimes de lesões pessoais. Crimes que estes agentes do Estado cometeram. Não quero que mude o texto da lei, mas que se aplique tal qual está escrito. Como foi aplicado para os que estavam enfrentando a ditadura”, diz ele.
O fato é que a Comissão da Verdade não entrará nesse debate. Os limites da Comissão são dados por Paulo Sérgio Pinheiro que resume como a principal tarefa da Comissão: “Nosso mandato é para escrever um relatório, mas não seremos nós que definiremos o destino desse documento”, disse o comissário da ONU.
Comentando o projeto que institui a Comissão, Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin afirmam que na medida em que a Comissão não ficou habilitada pelo menos em termos técnico-jurídicos claros de tomar qualquer providência capaz de punir algum indiciado, “corre o risco de consagrar a mentira e o país continuará devendo a população, especialmente às vítimas da ditadura e seus familiares, nesse caso, o atestado histórico de uma fase que o envergonha sobremaneira”. Cechin e Jacques Távora chamam atenção para outro aspecto limitador da Comissão: “Trocar, por exemplo, o poder de a Comissão ‘convocar’ pessoas para depor pela palavra ‘convidar’, como pleiteiam alguns, equivale frustrar antecipadamente qualquer resultado eficaz do seu trabalho. Convite, como se sabe ou se aceita ou se rejeita”.
A mesma opinião tem Cecília Coimbra, ex-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, para quem os limites da Comissão não a levarão a nada. Segundo ela, as entidades de direitos humanos queriam “uma comissão da ‘verdade, memória e justiça’, como ocorreu em outros países latino-americanos que passaram por recentes ditaduras”.
A ativista diz que “o Brasil está sendo o último a discutir essa questão (…) entre países latinoamericanos que passaram por recente ditadura, o Brasil é o mais atrasado no processo de reparação”. Cecília Coimbra destaca que o conceito de reparação é mais amplo do que se vem discutindo: “Refiro-me a reparação não simplesmente como uma questão financeira. Para nós, reparação segue o conceito dado pela Organização das Nações Unidas (ONU), é um processo de investigar, esclarecer, tornar público e responsabilizar os responsáveis cometidos pelos agentes do estado num regime de opressão e que produziram crimes de lesa humanidade”. O problema da Comissão diz ela é que “em momento nenhum vai responsalizar alguém”.
“Nós queríamos uma ‘Comissão da Verdade, Memória e Justiça’. Com os recursos e poderes dados à comissão eu duvido que eles descubram algo inovador”, diz Victoria Grabois, atual presidente da organização Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. “Essa comissão deveria pelo menos sair com relatórios dizendo exatamente que militares ou policiais mataram ou torturaram e quais foram as vítimas de cada um. Mas, infelizmente, duvido que esse tipo de responsabilização vá acontecer”, acrescenta a filha de Maurício Grabois, que pertencia à cúpula do PC do B e está desaparecido desde 1973, quando as Forças Armadas atacaram seu acampamento no Araguaia.
Mais limites
A Comissão para os seus críticos tem, entretanto, outros problemas. A deputada Luiza Erundina (PSB-SP) vê problemas em três pontos. A primeira é que a comissão não terá autonomia orçamentária: ficará dependente de verbas da Casa Civil da Presidência. Em segundo lugar, disporá de prazo de apenas dois anos para concluir seu trabalho e a terceira e última questão é que contará com poucos integrantes – serão sete – para uma missão muito ampla. Segundo Erundina, “em países da América Latina que realizaram investigações semelhantes, as comissões chegaram a ter 200 integrantes”, diz a deputada. “Aqui serão sete, sem orçamento próprio e com pouco prazo. Tudo leva a crer que não acrescentarão nada àquilo que os que os familiares já sabem sobre os crimes’, destaca ela.
Na entrevista para o IHU, Jair Krischke alerta para outro fato. Diz ele que a “Comissão terá 14 assessores, e não se sabe quem serão os assessores, nem a qualificação que eles terão. A experiência do mundo tem nos mostrado algumas coisas como, por exemplo, que a Comissão da África do Sul funcionou com mais de 400 assessores. Na Guatemala, tiveram mais de 200 assessores, além de assessorias que vieram da ONU e da OEA. Então, 14 é um número muito limitado”. Segundo ele, “esses sete comissários são pessoas notáveis na sociedade brasileira, mas não são eles que irão a campo e, sim, os 14 assessores. Os comissários são exímios concertistas, mas alguém tem de carregar o piano para que eles possam nos assegurar o concerto”.
Krischke também concorda que dois anos é muito pouco para tanto trabalho: “Dois anos, como ficou instituído, é pouco tempo, e com tão poucas pessoas trabalhando é impossível alcançar os resultados. As organizações de direitos humanos já estão pensando em, organizadamente, pleitear junto à presidente Dilma uma avaliação da Comissão e, quem sabe, a possibilidade de enviar um novo Projeto de Lei, ampliando o tempo de atuação da Comissão para quatro anos”.
Outro problema é o dilatado período –1946 a 1985 – sugerido à Comissão para análise. De acordo com Cecília Coimbra, “serão investigadas violações de direitos humanos no período de 1946 a 1985, ou seja, violações de direitos humanos todos estão cometendo, inclusive governos dito democráticos, do pós-ditadura. É como se o período da ditadura desaparecesse da história do país. Para nós, manter a restrição ao período é muito importante em relação à memória, pois as próximas gerações não saberão que existiu nesse país uma ditadura que implantou o terrorismo de Estado”.
O período dilatado sugerido para a Comissão foi resultado da pressão de setores da direita que contou com a conivência do governo, inclusive com o aval da ministra Maria do Rosário. Jair Krischke destaca que “desde o primeiro momento nós trabalhávamos para que o período a ser examinado fosse de 1964 a 1985. Nós lutamos lealmente pela modificação do texto, o que não foi permitido. O senador Paulo Paim (PT/RS), quando a matéria estava no Congresso para ser apreciada, convocou uma audiência pública para que a sociedade civil discutisse as inconformidades com o texto. Essa audiência pública foi esvaziada pelo Executivo, inclusive pela ministra Maria do Rosário. Nenhum representante do Executivo esteve presente, e pressionaram o senador Paim para que não realizasse a audiência pública”.
Investigar os dois lados?
Em que pese todas as críticas às limitações da Comissão, a sua simples instalação gerou uma gritaria dos militares. O ex-ministro do Exército do governo José Sarney, o general da reserva Leônidas Pires Gonçalves atacou a presidente Dilma Rousseff e a Comissão da Verdade classificando-a de “uma moeda falsa, que só tem um lado” e de “completamente extemporânea”. Leônidas disse que a presidente Dilma deveria ter “a modéstia” de deixar de olhar o passado e olhar para frente, “para o futuro do País”.
Os militares dizem que a Comissão da Verdade é parcial. “Claro que coisas terríveis aconteceram nesse período, mas vítimas foram feitas dos dois lados e eles só querem contar um lado da história”, disse o vice-almirante Ricardo Antônio da Veiga Cabral, presidente do Clube Naval do Rio de Janeiro. A tese dos militares de que a Comissão da Verdade deve “ver os dois lados” encontra acolhida em ao menos alguns nomes Comissão da Verdade.
“Toda violação dos direitos humanos será investigada”, disse Gilson Dipp, integrante da Comissão da Verdade. Para o advogado José Carlos Dias, outro membro da Comissão, a mesma deverá apurar fatos perpetrados pelo que chamou de dois lados. Ou seja, do Estado, pelos militares, e da esquerda que optou pela luta armada.
Comentando essa tese, o jurista Wálter Fanganiello Maierovitch afirmou que “a levar adiante essa estultice, Dias talvez imagine em convocar a presidente Dilma a prestar declarações à Comissão da Verdade e ao tempo que integrava um movimento de resistência. Dilma que não pegou em armas foi presa e torturada”. Segundo o jurista, “Dias, na verdade, elabora a sua tese a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal que, por 7 x 2 votos e com o voto condutor e canhestro do ministro Eros Grau, de triste memória, entendeu pela constitucionalidade da lei de Anistia, dada como bilateral, ampla e geral, ou seja, a impedir punições na esfera da Justiça criminal”.
Quem também se surpreendeu com a postura de José Carlos Dias foi Jair Krischke: “Estou surpreendido com esta postura. Deve haver algum equívoco aí. Não posso acreditar que ele tenha dito isso, ou seja, apurar os fatos dos dois lados, porque não existem dois lados. Existe um lado: o das vítimas”. Segundo ele, o Estado brasileiro se caracterizou na ditadura como um Estado violador dos Direitos Humanos. Diz Krischke: “Na Alemanha e na Itália também existiram grupos que pegaram em armas. Na Itália, por exemplo, havia as brigadas vermelhas. Os Estados alemão e italiano não foram terroristas. Eles usaram a lei para reprimir esses grupos, mas ninguém foi torturado, desaparecido, ou assassinado. Quer dizer, o Estado Democrático de Direito funcionou, respeitando as leis e os direitos humanos. No Brasil, não se pode aceitar essa justificativa de analisar os dois lados, porque ela é improcedente”.
Vladimir Safatle, professor de Filosofia, é outro que afirma que não há dois lados nessa história. Segundo ele, na tese dos dois lados preconizada pelos militares “trata-se de pressupor que tanto o aparato estatal da ditadura militar quanto os membros da luta armada foram responsáveis por violações dos direitos humanos. É como se a verdadeira função da Comissão da Verdade fosse referendar a versão oficial de que todos os lados cometeram excessos equivalentes, por isso o melhor é não punir nada”. Diz o filósofo: “Digamos de maneira clara: simplesmente não houve violação dos direitos humanos por parte da luta armada contra a ditadura. Pois ações violentas contra membros do aparato repressivo de um Estado ditatorial e ilegal não são violações dos direitos humanos. São expressões do direito inalienável de resistência”.
Reagindo as afirmações de membros da Comissão sobre a tese dos dois lados, outro membro da Comissão da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, disse que “nenhuma comissão tem essa bobagem de dois lados”. Segundo ele, “o único lado é o das vítimas, as pessoas que sofreram violações de direitos humanos. Onde houver registro de vítimas de violações praticadas por agentes do Estado a comissão irá atuar. Nenhuma comissão da verdade teve ou tem essa bobagem de dois lados, de representantes dos perpetradores dos crimes e das vítimas. Isso não existe”.
Levante Popular dá visibilidade à Comissão
Surpreendentemente e paralelamente à instalação da Comissão da Verdade vem de um coletivo de jovens de todo o Brasil a luta para que o Brasil dos anos de chumbo seja passado a limpo. Nas últimas semanas o Brasil tomou conhecimento das manifestações do Levante Popular da Juventude.
O Levante nos últimos dois meses realizou em várias capitais do país ações simultâneas de denúncia de diversos torturadores, que continuam impunes. Os manifestantes apoiam a Comissão da Verdade e exigem a apuração e a punição sobre os crimes cometidos pela ditadura militar.
O Levante é composto por jovens que nasceram sobretudo na década de 1980 e 1990 e articulam-se em sua maioria em torno da Via Campesina, da Consulta Popular e do jornal Brasil de Fato. O fato surpreende porque esses jovens passaram ao largo da experiência da ditadura e apenas a conheceram através de testemunhos, da literatura e do cinema. O protagonismo dos jovens surpreende porque era de se esperar que essa luta fosse, sobretudo, uma iniciativa da geração dos anos 50 e 60, gerações que experimentaram e conheceram de perto o regime autoritário.
As manifestações se dão em duas modalidades. De um lado, realizam-se atos diante da residência ou local de trabalho de agentes de Estado que participaram de atos de sequestro, tortura e ocultação de cadáveres de prisioneiros políticos. O objetivo é denunciá-los e expô-los publicamente perante a comunidade. De outro, organizam-se ‘rebatismos’, situação em que nomes de ruas, praças e prédios públicos que levam o nome de torturadores ou ditadores são substituídos pelo nome de militantes vitimados pela ditadura militar.
Os atos são realizados com criatividade e irreverência. É um tipo de protesto que se inspira nos atos pós-ditadura na Argentina, onde ganharam o nome de escracho. No Brasil tem sido chamado de esculacho.
Em relação à Comissão da Verdade, o Levante Popular da Juventude reivindica:
– Conhecer a verdade sobre os processos de tortura, estupro, morte e desaparecimento forçado dos homens e mulheres que resistiram à Ditadura Militar;
– Levar ao conhecimento da sociedade as lutas e a resistência daqueles que enfrentaram a ditadura e os nomes dos agentes do aparelho repressivo e os crimes por eles cometidos;
– Fornecer os elementos necessários para que os torturadores, estupradores, homicidas e sequestradores que agiram em nome da ditadura com crime e covardia – e se escondem até hoje – possam ser responsabilizados e punidos, como determinou a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O passado não pode ser apagado. O significado das lágrimas de Dilma
No dia em que deu posse aos sete membros da Comissão da Verdade, a presidente Dilma Roussef, emocionada, ressaltou a primazia da verdade sobre o esquecimento. Segundo a presidente, a verdade “é algo tão surpreendentemente forte que não abriga nem o ressentimento, nem o ódio, nem tampouco o perdão. Ela é só e, sobretudo, o contrário do esquecimento. É memória e é história. É a capacidade humana de contar o que aconteceu”.
O discurso e as lágrimas de Dilma, durante esta cerimônia, representam as muitas histórias de vida repletas de dores, traumas e aniquilamentos provocados pelo autoritarismo e violência da ditadura militar brasileira. A história, imprevisível e aberta para o novo, fez de uma vítima da ditadura, a primeira mulher a assumir a presidência da República Federativa do Brasil. Apesar do debate existente sobre as limitações e dificuldades encontradas no percurso para a criação desta Comissão da Verdade, é importante reconhecer que há um explícito desejo, da parte de alguns membros do governo, de que sejam focadas luzes sobre o passado recente do país.
Neste momento, em que o país vive num sistema de governo democrático, apesar de todas as contradições inerentes à sociedade brasileira, persiste o desafio de se livrar de uma herança maldita deixada pelo regime da ditadura: a violência institucionalizada no Estado. Diferente de outros países como Argentina, Bolívia, Peru, Grécia e Portugal, que fizeram uma “transição com ruptura” para a democracia, no Brasil houve uma “transição pactuada”. Aqueles que usurparam o poder da República fizeram amarrações políticas que limitaram as novas forças sociais, da redemocratização, a acertarem as contas com as barbáries cometidas durante o regime militar. Acrescendo-se a isto, a continuidade de muitos torturadores e de políticos apoiadores da ditadura no cenário público do país.
Portanto, embora o país tenha feito uma transição para o regime democrático, não houve uma grande mudança de mentalidade e nem uma renovação de propósito dos representantes do pensamento conservador e autoritário. E não havendo uma rigorosa punição para os violentos crimes da ditadura, a verdade e a justiça ficaram no esquecimento, permanecendo junto ao processo de redemocratização do país, o ranço do autoritarismo.
Na opinião do filósofo Castor Ruiz, “é muito mais fácil fazer a transição de um regime autoritário para outro democrático, do que a recuperação dos efeitos humanos e sociais da sua violência”, que ainda não está abolida das instituições de segurança pública do país. Além das vítimas, a violência “também produz vitimários, responsáveis por essa barbárie e que continuam agindo nas instituições sociais”. “A vítima sofre os efeitos mais perversos da violência, mas o vitimário também fica contaminado pela violência; sua condição humana fica degradada pela insensibilidade; torna-se uma permanente ameaça de violência para o conjunto da sociedade”.
É por isso que para Ruiz “a condição necessária para que a justiça de transição (democrática) seja, de fato, justa é fazer memória das vítimas. A justiça não se faz pelo esquecimento, mas pela memória”. Dentro de uma cultura do esquecimento da violência, as vítimas também são condenadas “ao desaparecimento definitivo da história”. Esta preocupação, com a recuperação da memória, fundamenta todo o trabalho dos mais diversos organismos de defesa dos direitos humanos e dos cidadãos comprometidos com a promoção da justiça e da dignidade humana. Todos têm exigido o acesso aos documentos secretos do regime militar e ao esclarecimento dos crimes contra a humanidade, algo fundamental para o amadurecimento do regime democrático e para a superação da sociedade do medo.
Valorizando essa potencialidade da memória, a filósofa Cecília Pires entende que “não se recorre à memória e à história para alimentar ressentimentos, mas para entender os fatos no modo como ocorreram e produzir ações que signifiquem além do entendimento uma recusa à violência. Nessa garantia, não se deve confundir o perdão com o esquecimento, pois seria uma nova forma de violência à memória e à história das vítimas”.
É a partir deste mesmo entendimento que a ex-prisioneira política do regime militar, Cecília Coimbra, lamenta que no Brasil haja uma lógica de produção do esquecimento e do silenciamento. No seu ponto de vista “a sociedade brasileira não sabe, em absoluto, dos arbítrios e das perversidades que foram cometidos durante aquele período. Isso é desconhecido pela maioria da população”.
Esse apagão, sobre as perversidades dos anos de ditadura, é visto pela professora de Direito, Deisy Ventura, como uma das maiores lacunas da democracia brasileira, contribuindo para a naturalização do emprego da violência e do abuso de poder dos agentes do Estado. Segundo Ventura “a existência de políticas de extermínio – que, malgrado sua ilegalidade, são implementadas pelo próprio Poder Público ou beneficiadas por sua indulgência – deve-se, entre outros fatores, à impunidade dos torturadores e assassinos que forjaram uma nefasta cultura de segurança pública em nosso país”.
O jovem Ismael. Caso emblemático da cultura da violência pós-ditadura
Na mesma linha do que assinala Deisy Ventura, no último mês de março, tornou-se caso público, em Curitiba, um vivo exemplo do que significa a perpetuação da institucionalização de uma cultura da violência. O jovem trabalhador Ismael Ferreira da Conceição, de 19 anos, negro e pobre, morador do bairro Uberaba, que é estigmatizado como perigoso, devido aos índices de violência, foi vítima da truculência policial. Sem nenhum direito de defesa ou de esclarecimento, Ismael foi torturado por homens da polícia militar (chutes, espancamento e choques). Os policiais confundiram o jovem com um possível assaltante, tentando justificar o injustificável, pois mesmo que ele tivesse cometido alguma ilegalidade, o que não foi o caso, jamais num Estado de direito pode ser permitido o uso do autoritarismo e da tortura.
Em razão deste fato, a jornalista Teresa Urban, também moradora de Curitiba, escreveu uma carta pública, endereçada ao jovem Ismael. Nesta carta, Urban, que foi vítima de tortura durante a ditadura militar, além de se solidarizar com o drama de Ismael, lamentou o fato de que apesar de viver num regime democrático, as torturas continuam e, em grande medida, devido à ausência de uma rigorosa investigação sobre os crimes cometidos durante a ditadura e pela falta de punição dos culpados.
A jornalista aproveitou para denunciar o espírito do “liberou geral”, presente no cotidiano das forças policiais, finalizando sua carta com uma incômoda provocação, que serve não somente para as autoridades políticas, mas para toda a sociedade: “É preciso localizar os quartos dos horrores, onde é possível espancar uma pessoa, dar choques, sufocar com um saco plástico e ninguém mais, além dos algozes, ficar sabendo. São estúdios especiais à prova de som, onde o terror reina? Existem máquinas de choque (talvez herdadas dos quartéis) ou usa-se a instalação elétrica comum, com fios descascados? Ninguém mais sabe ou ninguém se importa?”
Esse laço entre a violência institucional dos anos da ditadura militar, com os dias atuais, pode ser visto cotidianamente na maneira como a força policial encara os movimentos sociais, principalmente aqueles que são organizados pelas camadas mais pobres da sociedade. Para Cecília Coimbra, que não se isentou de lutar contra a ditadura, se “antes éramos chamados de terroristas, de inimigos da pátria, aqueles que colocavam em risco a segurança nacional. Hoje, o alvo é a pobreza, que cada vez mais, sobretudo em função desse período autoritário, é apontada como perigosa”.
Portanto, uma das condições essenciais para que o país avance rumo a uma democratização social mais profunda, está na superação da cultura do medo e do silêncio frente à institucionalização da violência. Neste sentido, uma das etapas importantes para que sejam garantidos os direitos da cidadania, presentes na Constituição de 1988, está em favorecer uma cultura da participação e da justiça, que rompa com a sombra deixada pelo regime militar. Espera-se que a Comissão da Verdade tenha fôlego e vontade política para intermediar esse acerto de conta com o regime militar.
Para o ativista dos direitos humanos, Jair Krischke, pouco adiantou o esforço dos militares em querer abafar os crimes da ditadura militar, por meio da lei da anistia. Se os militares queriam promover o esquecimento, “equivocaram-se redondamente! A toda hora saltam dos mais variados “armários” esqueletos que os interrogam com toda a veemência. Não haverá trégua até que se conheça toda a verdade sobre o terrorismo de Estado que foi promovido no Brasil”.
De fato, não pode haver descanso enquanto a justiça e a verdade estiverem ofuscadas pelas tramas políticas. A tortura, crime contra a humanidade, caracterizada pela “perseguição sistemática de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo”, não perdeu a sua gravidade pela mudança de regime político. A dor de Dilma Roussef, quando foi torturada pelo regime militar, é a mesma dor do jovem Ismael, torturado por um bando de policiais embrutecidos.
(Ecodebate, 30/05/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
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