Manifesto do Trópico de Capricórnio: visão crítica do processo civilizacional e Rio+20
MANIFESTO DO TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO
“Sob a linha do Trópico de Capricórnio, que corta a Metrópole de São Paulo, nos reunimos para avaliar a crise civilizacional em que estamos mergulhados.”
I – São Paulo de Piratininga, biosfera no Trópico de Capricórnio.
Sobre a biosfera, ao Sul do Equador, o homem criou a linha imaginária do Trópico de Capricórnio, que corta a Metrópole de São Paulo. Aqui nos reunimos para avaliar, a partir dessa linha, a crise civilizacional em que estamos mergulhados. Linha criada para orientar conquistas para divisão do mundo, com zonas de influência e dominação. Conquistas que só fazem sentido para os que se arvoram descobridores. Mas quem descobriu o quê? A civilização humana descobre a biosfera? Conquistas motivadas por um modelo econômico que, como parte de um modelo civilizatório sem peias, ignora o valor de nossa biodiversidade e nossas comunidades. Como podemos dar preço à Reserva da Biofera de São Paulo e ao Curupira, Guardião das Matas? Quanto pode custar, em qualquer moeda, nossa Onça-Pintada, a floresta submersa sob Belo Monte e a destruição de saberes tradicionais?
Ouçam-nos: este universo tropical cingido pelo marco do Trópico de Capricórnio é também esquina do mundo, ao abrigar um caleidoscópio de raças, culturas, religiões, crenças e credos. Todo este universo está vivo, vivo como o planeta Terra! Então, como pode nosso solo virar apenas commodity? Aqui estão plantadas também as raízes vivas do Modernismo, que há quase um século já percebia a necessidade de bradar contra a apropriação cultural e material forjada em outro hemisfério! Ouçam-nos, povos do Norte, a felicidade não é maquinaria e a vida não é a mentira muitas vezes repetida, de materialidade impingida! O marco geográfico do Trópico de Capricórnio está no pie monte da Floresta da Cantareira, coração da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo, patrimônio planetário ao abrigo da UNESCO. Sob este sagrado solo capricorniano, ethos de tantas raças e credos, o poder público deseja construir o rodoanel metropolitano, tal como um monumento à maquinaria rodoviarista, obsoleta neste início de Terceiro Milênio. Como podem desventrar a Serra da Cantareira, desenraizar de seus milhares de lares brasileiros, violar a Biosfera do Cinturão, último resíduo da Mata Atlântica na cidade? Outras vítimas dessa crise civilizacional são os atingidos pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte e pela desfiguração do Código Florestal Brasileiro!
Ouçam-nos ambientalistas: o Relatório Blundtland, bíblia ambientalista esgarçada pela pasteurização da sustentabilidade, tinha aguda percepção social quando denunciou a espoliação a que são submetidos os países abaixo da linha do Equador : …as raízes da crise estendem-se também a um sistema econômico mundial que retira de um Continente pobre, mais do que lhe dá. Não podendo pagar suas dívidas, as nações africanas veem-se obrigadas a superexplorar seus solos frágeis, transformando assim terras férteis em desertos… Devido à crise da dívida da América Latina, os recursos naturais dessa região estão sendo usados, não para o desenvolvimento, mas para cumprir obrigações financeiras com os credores estrangeiros… Pretender que países relativamente pobres ao mesmo tempo baixem seus padrões de vida, aceitem o aumento da pobreza e exportem quantidades cada vez maiores de recursos escassos, permitindo apropriação predatória, a fim de manter a capacidade creditícia, reflete prioridades que poucos governos eleitos democraticamente conseguiriam tolerar por muito tempo.
Ironicamente, essas denúncias foram engavetadas e o relatório Brundtland ficou famoso por introduzir o termo “sustentabilidade”. Quem não se intitula sustentável hoje? Sem greenwashing, será sustentável o desenvolvimento sustentável? Este desacreditado jargão “sustentabilidade” precisa cingir-se de melhor tradução no momento crítico que vivemos. Então adotemos: “sobrevivência”!
Para nós, sobrevivência significa: desenvolvimento sem comprometer a matriz energética do planeta, sem ações de elevada entropia, desenvolvimento econômico com responsabilidade ética e política, equidade e justiça ambiental e intergeracional; respeito e manutenção da diversidade cultural.
II – Guerra e Paz: dominação da natureza
Dominação e subserviência estão presentes em nossos tempos: durante quatro anos, Cândido Portinari produziu a obra-prima Guerra e Paz no Brasil. Consagrou sua vida a ele e morreu, envenenado pela matéria-prima de sua criação, a tinta a óleo. Na inauguração da obra magistral, na sede das Nações Unidas, o artista foi convidado a não comparecer por motivos ideológicos. Como Portinari, continuamos a produzir alimentos, commodities, serviços ambientais, estabilização climática global, beleza, arte e música para o deleite do Norte. Doamos nossas vidas, pagamos a festa, mas não somos convidados para a valsa. Tristes trópicos de Levy Strauss…
Acordem, pois nos reunimos para pensar a profunda crise que se abate sobre o gênero humano: mais que uma crise ambiental, uma crise civilizatória sem precedentes. No advento do chamado Antropoceno, processos vitais em escala planetária são dominados pela atividade predatória humana, fruto de modelos de vida dominados pelo hiperconsumismo materialista. Crise de valores e de modelos econômicos estruturantes onde prevalecem a economia de mercado e a mercantilização da natureza com desprezo pela dignidade da vida. Aqui estamos, pois há um perverso sistema de trocas internacionais em crise, alimentando mais e mais uma desordem internacional assimétrica entre povos e nações. Debrucemo-nos sobre o tratado A Grande Transição, que nutre a Avaliação Ecossistêmica do Milênio da ONU: devemos reconhecer que o capitalismo, onde quer que tenha entrado, deixou legado contraditório. Em parte, sua historia está conectada aos feitos de uma geração saudável, da modernização e da democracia. Mas também é – o capitalismo – saga perversa de ruptura social, introduzindo pobreza econômica e amamentando imperialismo econômico, produzindo uma imensa concentração de riqueza e propiciando uma injusta distribuição de renda entre e dentro dos países.
Ouçam-nos, pois a crise permanente do modelo em que estamos mergulhados não aceita soluções simplistas ou intervenções pontuais. Façamos, então, intervenções na realidade: é preciso profunda reestruturação de pensamentos para um novo comportamento. É preciso um novo paradigma civilizatório!
III – A nova dança das moedas na Rio + 20
Acordem! Neste instante, surge um rearranjo da velha ordem internacional. Países hegemônicos perdem influência e o mundo unipolar tende à multipolaridade. Dólar, euro e iene disputam lugar com os 4Rs: real, rupia, rublo, renminbin. A roda gira e a partilha do poder já recomeçou dentro do clássico princípio que até agora pautou a geopolítica global: quem parte e reparte e fica com a pior parte ou é bobo ou não entende da arte… Mas um novo elemento ameaça esta lógica “clássica”: a finitude dos recursos naturais pelo hiperconsumismo e obsolescência programada e o consequente envenenamento do Planeta Terra.
Ouçam-nos, pois a crise civilizacional que atravessamos não pode se resumir a uma modelagem verde, a uma nova roupagem para a voracidade de Midas!
Acordem, pois diante da crise civilizatória, a RIO+20 propõe medidas reducionistas. Traz em sua superfície um RASCUNHO ZERO e em suas entranhas um zero à esquerda por repetir a linha dissimulada e hipócrita que enfraqueceu e retirou maiores possibilidades da AGENDA 21, ao propugnar pela saúde das florestas, dos oceanos e outros ecossistemas, numa abordagem linear e simplista que já provou ser incorreta, porque não atinge o âmago da questão e não produzirá efeitos minimamente satisfatórios sem forte amarração com cidadania planetária e o direito à informação e participação, num vigoroso controle social para a governança global.
Ouçam-nos sobre a chamada economia verde, pois não é nem economia e nem verde e poderá se transformar num poderoso instrumento da maior mercantilização da natureza e concentração de poder econômico, por meio dos grandes conglomerados transnacionais monopolistas. Nos trópicos brasileiros, terra sábia de Direitos Difusos, não pode ter preço o que é bem-comum do povo. Acreditamos serem estes os desígnios que outros povos anelam.
Acordem, pois vêm aí mais maquinaria e fixação em tecnologia! Então perguntamos: ciência para quê e para quem? Para o benefício do homem ou para viabilizar processos de acumulação? Propostas mais corajosas e honestas recomendariam a adoção de outros conceitos e modelos de produção como elementos e formas para mediar avanços civilizacionais. Pobre Produto Interno Bruto, cheio de externalidades que não se internalizam! Pobre PIB, quando sufoca comunidades de outros países.
Ouçam-nos: para medir desenvolvimento há necessidade de, indelevelmente, de considerar outros indicadores econômicos e sociais para a promoção da saúde do ambiente e da sociedade. Este momento histórico aponta para uma necessária e profunda transformação nos valores fundamentais da sociedade. Novos paradigmas para um novo e saudável modelo civilizacional devem enfatizar qualidade de vida e suficiência material, solidariedade humana e equidade global, além da afinidade com a natureza e sustentabilidade-sobrevivência ambiental. Defendemos novos paradigmas que validem a solidariedade global, a fertilização cultural e a conectividade econômica, buscando uma transição libertária, humanística e ecológica. A compulsão das sociedades humanas para o crescente consumo material deve ser substituída por comportamentos lastreados na ética para com a sociedade e a natureza, com valores mais nobres que propiciem vida plena, privilegiando relacionamento, amizade, companheirismo, solidariedade, cooperação, responsabilidade, criatividade, vida comunitária, natureza, espiritualidade e qualidade de vida. Na raiz da questão, repousa a indagação sobre o autoconhecimento, o que leva o homem a ser. Ter, possuir é poço sem fundo revelador, espírito insaciável: mal de Midas, cuja inanição ocorre na abundância.
Ouçam-nos, pois defendemos a simplicidade solidária e voluntária! O novo marco civilizatório vislumbra a evolução do ser humano de homo faber a homo ludens, onde a prosperidade e o bem-estar podem ser promovidos sem expansão econômica e sem intervenções de elevada entropia e, assim, sem sobrecarregar a matriz energética planetária. É preciso ser ético e responsável com a biosfera e com a humanidade.
IV – Reconhecer raízes, valorizar a essência
Ouçam-nos, pois saberes, valores e conhecimentos tradicionais tampouco podem ser desprezados nesta caminhada. É necessário resgatar a cultura que está sendo desprezada e massacrada neste Continente profundo, das planícies litorâneas, passando dos planaltos interioranos ao recôndito da Amazônia e aos paramos andinos, cercados das neves eternas, também ameaçadas. Temos neste continente Sul, e ao redor do mundo, muitos conhecimentos, modos de vida tradicionais que devem ser preservados, até pela sua importância para a cultura, identidade, ciência, e para a proteção da biodiversidade e recursos naturais. Já estão inscritos aspectos desta questão no Regime Internacional de Biodiversidade (CDB e Protocolos de Cartagena e Nagoya) e existem leis específicas sobre o problema nos diferentes países, bastando observá-las e concretizá-las. Mas ainda há forte resistência neste campo dos valores, onde se fazem necessários processos e movimentos de resistência que encaminhem a luta por reconhecimento e efetivação de direitos.
A relação entre a proteção da biodiversidade – reconhecida em diversos textos legais, nacionais e internacionais -, e as chamadas populações tradicionais é complexa e muitas vezes tensa. Temas como repartição de benefícios resultante dos conhecimentos genéticos associados às populações tradicionais e ao reconhecimento aos direitos territoriais destas populações são de difícil solução, principalmente quando cotejados com uma perspectiva estritamente preservacionista de proteção da biodiversidade.
Destacamos que os chamados ‘conhecimentos tradicionais’ só poderão ser utilizados enquanto existirem as assim chamadas populações tradicionais, o que, por sua vez, só é possível com a sua permanência em território próprio, onde possam manter e desenvolver sua cultura e suas tradições. Os documentos internacionais, apesar de reconhecerem explicitamente os direitos culturais dessas populações e considerarem algum tipo de reconhecimento por seus conhecimentos associados à biodiversidade, não lhes asseguram, na prática, direitos ao território.
Acordem, pois urge uma nova abordagem da relação biodiversidade/uso sustentável dos recursos naturais/ populações tradicionais, no sentido de trazer novas possibilidades a esses povos, que hoje se vêm cerceados de gozar direitos territoriais, considerados pela Constituição Federal Brasileira como fundamental e essencial à vida de qualquer ser humano.
V. Considerandos finais:
Ouçam-nos, comunidades, povos e governos: consideramos que, para a consecução das ideias acima mencionadas, as estruturas pouco eficientes das Nações Unidas deverão ser reestruturadas, objetivando uma verdadeira Governança Planetária, com elementos indissociáveis de participação e controle social, com o advento de elementos reguladores globais que permitam arbitrar os conflitos entre nações.
Portanto, ouçam-nos, pois se um dia o homem imaginou a linha do Trópico de Capricórnio para dividir a Terra, a Carta do Trópico de Capricórnio se propõe a uni-la. Este é nosso desafio, o desafio civilizacional de levar adiante um sistema que integre todas as partes, ao invés de dividir. Porque uma parte do mundo não pode sobreviver sem a outra, assim como o ser humano não sobrevive sem sociedade e a biosfera depende de suas menores células.
Vejam: quando nos acercarmos da Rio+30, deste Trópico de Capricórnio, talvez todos possamos avistar a Constelação do Cruzeiro do Sul, que hoje empalidece dentro da névoa de poluição da cidade. Temos certeza que o Brasil pode, como também outras nações deste Sul continente, graças à sua gente tão generosa e ao seu extraordinário patrimônio natural e cultural, um dos últimos Eldorados do Planeta, ser um dos atores principais neste processo de transição, rumo a um novo paradigma de civilização!
Acordem e ouçam-nos, pois este é o solene compromisso que assumimos aqui – contribuir de forma proativa e propositiva para atingirmos este novo patamar civilizatório!
O Manifesto do Trópico de Capricórnio foi elaborado por comissão interinstitucional das organizações do Brasil, Argentina, Chile e Estados Unidos que apoiaram institucionalmente o Seminário Internacional “Desconstruindo o Modelo Civilizacional: um olhar sobre a Rio+20”, realizado em São Paulo, na Procuradoria Regional da República – 3ª Região, realizado pelo PROAM-Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, a partir de deliberação do Coletivo de Entidades Ambientalistas do Estado de São Paulo. O evento foi adotado pelo Comitê Paulista para a Rio+20 como elemento de formação e capacitação para a Conferência Rio + 20. Informações sobre programação, participantes, palestrantes e parcerias institucionais estão disponíveis no site www.proam.org.br
Manifesto socializado pela RBJA e encaminhado por Ruben Siqueira, Comissão Pastoral da Terra / Bahia e Articulação Popular São Francisco Vivo
EcoDebate, 24/05/2012
[ O conteúdo do EcoDebate é “Copyleft”, podendo ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, ao Ecodebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]
Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta clicar no LINK e preencher o formulário de inscrição. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.
O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.