A maior seca em 30 anos: De volta para o passado, artigo de Gaudêncio Torquato
[O Estado de S. Paulo] É possível que nos tempos de Pedro II o bordão português fosse expressão de compromisso com a verdade: palavra de rei não volta atrás. Foi com o propósito de ver cumprida sua palavra que o generoso imperador, nos idos de 1877, ante a devastadora seca que assolava o Nordeste, proclamou a sentença que viria a abrir o dicionário de promessas para a região: “Não restará uma única joia na coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome”. Ao que se sabe, não faltou nenhuma joia na coroa do imperador…
Milhares de nordestinos não resistiram à inclemência das grandes secas que assolaram o semiárido ao correr do século 20 (a de 1915 foi devastadora). E hoje, se não morrem mais de fome, passam muitas necessidades, a começar da falta de água nas torneiras de suas casas. Nos últimos tempos o crônico problema emergiu sob manchetes que dão conta da pior seca em 30 anos – no caso da Bahia, a mais grave em 47 anos -, situação que ressuscita as agruras do passado, simbolizadas por caminhões-pipa levando água para 600 cidades, filas de pessoas com balde na mão, lavouras dizimadas, carcaças de animais nas terras esturricadas, pequenos rebanhos desfilando uma estética da fome.
Os danos começam a atacar o bolso e o estômago: a mão de milho, com 50 espigas, subiu de R$ 8 para R$ 15, o quilo de feijão, de R$ 3 para R$ 6,20. O fato é que o efeito da seca já se faz sentir na economia nordestina, a denotar que os padrões da vida moderna e os bilhões despejados por governantes em obras de serventia duvidosa não conseguem preencher as demandas das populações. Com o celular pregado ao ouvido enquanto espera a vez de pegar água na mangueira do caminhão-pipa, o moço de bermuda mais parece um insólito retrato da extravagância. Afinal, aquele aparelho de cores berrantes e som estridente destoa da cena que lembra a saga do passado, tão bem descrita por trovadores e imortalizada pelo cancioneiro maior do Nordeste, o de Luiz Gonzaga, ao puxar o lamento: “Quando a lama virou pedra/ e mandacaru secou,/ quando o Ribaçã de sede/ bateu asa e voou,/ foi aí que eu vim me embora/ carregando a minha dor”.
O povo já não vai embora porque há um colchão social para atenuar as dores de quem vê a lama virar pedra. Dos 13 milhões de famílias que recebem Bolsa-Família, a concentração maior é no sertão do Nordeste, onde 70% são assistidos pelo programa. Isso explica o contraste que se vê naquela fila da água: um traço do Brasil tecnológico, simbolizado pelo celular, ao qual 164 milhões de brasileiros têm acesso; e o desenho do País das grandes carências, dentre as quais a de água, que deixou de pingar nas torneiras de 85% dos municípios da região.
Como contemplar a moldura desconjuntada sem achar que nossa posição de sexta economia do mundo deixa transparecer um tecido roto, a imagem de um queijo suíço, cheio de furos? Às imagens entrelaçadas de passado e presente se soma o acervo verborrágico sobre a seca, pleno de promessas, feitos e realizações. Compreende-se a razão: a água, oxigênio da vida, oxigena também ambições políticas. Transforma-se em discurso para as massas assoladas por sua escassez. Pratica-se, em seu entorno, o jogo político, um recheio de promessas vãs embalado no pacote de mazelas da cultura regional. A cada seca se expande a galeria de governantes autonomeados artífices da redenção do povo. A “solução” encontrada por todos eles, desde os tempos do imperador, tem sido a construção de pequenos e médios reservatórios. Políticas consistentes passam ao largo.
Na campanha presidencial de 1950, Getúlio Vargas, ao discursar no Ceará, lembrava que seu governo, em menos de 15 anos (de 1930 a 1944), conseguira aumentar a capacidade de acumulação de água no Nordeste, de 630 milhões para 2 bilhões de m3, com a construção de 225 açudes. Gastara 15 milhões de cruzeiros. Juscelino Kubitschek, ao assumir a Presidência, em 1956, garantiu no discurso de posse: “Esta é a última seca que assola o Nordeste”. A garantia do presidente que inaugurou a barragem do Açude de Orós, na época o maior do País, evaporou-se como a água dos reservatórios. No ciclo da ditadura militar, o tratamento seguiu os trâmites ortodoxos: estado de calamidade pública nos municípios afetados e abertura de crédito extraordinário. A era FHC fechou os olhos ao fenômeno, que acontece com intervalos próximos a dez anos. Iniciou um tímido programa de alistamento para uma bolsa de emergência. O então presidente referiu-se poucas vezes à seca. “O povo do Nordeste e do norte de Minas deve encarar a seca, criando condições de enfrentamento no qual o cidadão será o vencedor”, dizia.
O período de Lula abriu esperanças. Os nordestinos imaginavam que um filho da região arrumaria a ideia para contornar o flagelo. Sacou ele de seu bornal a obra de transposição do Rio São Francisco, com a qual prometeu combater “a indústria da seca”. Hoje, trechos estão paralisados. Obras feitas, e abandonadas, se degradam. O desânimo se instala. Ademais, apenas 4% da água desviada pelos canais deverá ser usada para consumo humano, enquanto 70% seguirá para irrigação em grandes projetos de exportação e 26%, para uso industrial. Sob esse acervo de projetos inacabados, ausência de visão sistêmica, carência de continuidade, interesses conflituosos entre Estados, expande-se a primeira grande seca do século 21.
À guisa de conclusão: e agora, presidente Dilma, o que fazer para a região conviver, de maneira harmoniosa, com o fenômeno? Por que regiões áridas do mundo acharam a solução para seu pleno desenvolvimento, como áreas dos EUA, de Israel (Deserto de Neguev), do México, do Peru, do Chile e do Senegal? Como integrar a moto, o celular, o óculos ray-ban, a quinquilharia made in China à paisagem real do País? Como dizer ao sertanejo Manoel e a sua mulher, Rosa, personagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol, do genial Glauber Rocha, que eles não participam do filme De Volta para o Futuro?
Artigo publicado em O Estado de S.Paulo e socializado pelo ClippingMP
EcoDebate, 15/05/2012
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