Crime ao ‘estilo mafioso’ analisado pelo novo comitê do Parlamento Europeu e sua relação com Brasil
[Por Cristiano Morsolin*, para o EcoDebate] Nos últimos meses, o debate sobre a legalização da droga ressuscitou à medida que intelectuais e políticos da América Latina apoiavam a ideia de permitir a venda de narcóticos. Não é assunto novo. Nos anos 80 houve controvérsia semelhante e a legalização se apresentou como resposta à ascensão do narcotráfico. No entanto, as expectativas de tal giro foram enterradas por duas duras realidades: o salto do consumo de cocaína nos EUA e Europa (que empurrou seus governos a enfatizar a necessidade de controlar a droga) e a capacidade dos cartéis de gerar violência e corrupção, que impulsionou os países produtores da América Latina a declarar guerra sem quartel. A pergunta, 25 anos depois, é se a lógica do tráfico de narcóticos e o meio internacional fazem mais propício o avanço da proposta.
O Brasil está na rota da cocaína levada da América do Sul até a Itália, caminho este comandado pela máfia. A Ndrangheta investe seus lucros ilegais em bens imóveis legais e atividades financeiras. As autoridades italianas calcularam em 2002 uma movimentação de 16 bilhões de euros.
“Praticamente toda a elite da ‘Ndrangheta tem ramificações no Brasil”, esclarece para Carta Capital Antonio Nicaso, o melhor especialista em máfia. Juntamente com Nicola Gratteri, procurador-adjunto de Reggio Calabria, publicou La Mala Pianta (A Má Planta), livro-entrevista no qual revela o poder gigantesco da máfia calabresa. Explica Nicaso: “O Brasil está assumindo sempre mais o papel de país de passagem. Há muita pressão sobre a Colômbia, Peru e Bolívia, e justamente por isso registra-se por parte da criminalidade organizada a tendência crescente de deslocar o tráfico de drogas”. A cocaína tende, pois, sempre mais, a sair do Brasil, onde está a se criar uma grande sinergia com a África. “Parte da África”, sublinha Nicaso, “é controlada justamente pelas famílias da ‘Ndrangheta que corromperam as ditaduras militares daqueles países e conseguem assim estocar a própria mercadoria. Começando por Guiné-Bissau”. A confirmação de que agora o Brasil está se tornando um novo eldorado das rotas da droga chega nestes dias de algumas interceptações telefônicas de conversas entre camorristas e mafiosos, que se dizem entusiasmados com o País e falam das perspectivas de grandes negócios por ocasião do próximo Mundial de Futebol em 2014 (1).
O narcotráfico e os menores
Um capítulo que envolve menores é o narcotráfico, como o caso do Rio de janeiro, cidade com seis milhões de habitantes, onde de 1987 a 2000 morreram vítimas de armas quase 4 mil menores de 18 anos. Embora estas crianças não possam ser enquadradas como ‘meninos-soldado’, o número de mortos foi maior do que o registrado em conflitos armados na Colômbia, Serra Leoa, Iugoslávia, Afeganistão, Uganda, Israel e Palestina. Naquele período, quando morreram baleados no Brasil 3.937 menores, o conflito entre Israel e Palestina provocou a morte de 467. Os dados provêm de um estudo do Instituto Superior de Estudos Religiosos (ISER), com o apoio da ONG Viva Rio e coordenada pelo antropólogo britânico Luke Dowdney. Muitas das mortes destes meninos e adolescentes ocorreram também por execuções realizadas pelos próprios traficantes, para eliminá-los quando não são mais úteis, e enterrá-los em cemitérios clandestinos. Más a impunidade é clara. No Brasil, por exemplo, ainda segundo a mesma fonte, um policial jamais foi condenado por matar um menor.
O senador Cristovam Buarque (PDT-DF) disse, na terça-feira 4 de abril de 2006, durante audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), que o documentário Falcão – Meninos do tráfico, apresenta dois Brasis, com realidades diferentes, e mostra que os jovens brasileiros precisam de oportunidade para não ingressar na criminalidade. Para o senador, educação de qualidade pode contribuir para eliminar as diferenças sociais no país. Já MV Bill destacou ainda que, embora o documentário não fale da questão racial, o tema é abordado por meio do visual, que mostra quem está “neste Brasil, diferente do outro, onde as leis são aplicadas de forma diferente”A ideia dos dois Brasis é antiga, e para casar estes dois, só na escola – disse Cristovam.
O senador destacou também que a banalização do tema relacionado às crianças que trabalham no tráfico de drogas no Brasil – apresentado no vídeo e divulgado no programa Fantástico, da TV Globo, em 19 de março 2006 – deixa a imagem de que o Estado tem controle sobre a situação, o que, na sua opinião, não existe. O documentário, disse, é importante por trazer para a sociedade e para o Parlamento o sentimento de indignação.
O músico e diretor do vídeo Falcão – Meninos do tráfico, Alex Pereira, o MV Bill, disse que, na elaboração do documentário, preferiu ouvir o depoimento das próprias crianças e adolescentes que trabalham no tráfico de drogas, em vez do de autoridades, como sociólogos e antropólogos. Ele salientou que no vídeo o problema – que não é novidade – é mostrado de dentro das comunidades em que estes jovens estão inseridos. As histórias das crianças e adolescentes que trabalham no tráfico de drogas são muito parecidas e parecia que estávamos falando com a mesma pessoa – disse ele. MV Bill afirmou que o problema do tráfico de drogas no Brasil não será solucionado por meio de projetos políticos. Na sua opinião, a criminalidade pode diminuir se os projetos que já existem nas comunidades envolvidas forem incentivados.
Eu não consigo acreditar que a política vai resolver este problema e, sim, os projetos comunitários, que não têm fins eleitoreiros e estão preocupados com a situação. Se não houver investimento nos projetos que já existem nestas comunidades, não haverá futuro para o Brasil – disse. Ele destacou ainda que, embora o documentário não fale da questão racial, o tema é abordado por meio do visual, que mostra quem está “neste Brasil, diferente do outro, onde as leis são aplicadas de forma diferente” – Agência Senado (2).
Combate à máfia agora é problema da União Europeia
O plenário do Parlamento Europeu em Estrasburgo deu o sinal verde quase unânime (584 sim, seis não, 48 abstenções) ao relatório sobre o crime organizado na União Europeia da eurodeputada italiana do IDV (Itália dos Valores) Sonia Alfano.
Entre outros, o documento propõe instituir uma comissão parlamentar antimáfia europeia, excluir os condenados por crimes de máfia das listas eleitorais para o Parlamento Europeu e pedir à Comissão de estudar normas para a rastreabilidade dos fundos europeus.
A instituição de uma comissão parlamentar UE sobre as máfias na Europa é uma ideia que surgiu de uma carta enviada por Rosario Crocetta, ex-prefeito de Gela ameaçado pelos mafiosos, a Máfia italiana tentou assassiná-lo e eurodeputado do PD (Partido Democrático, o principal da posição na Itália). “Era 15 de julho de 2009, dia da eleição do presidente Jersy Buzek – lembrou Crocetta – quando por carta pedi a criação de uma comissão de inquérito na UE sobre o fenômeno das máfias na Europa. O pedido deixou perplexos muitos daqueles que consideravam o problema um fenômeno restrito ao sul da Itália”.
“Desde então, acrescentou Crocetta, não só toda a delegação do PD se uniu sobre esta posição, como todo o grupo S&D, graças à colaboração de Martin Schultz, se apropriou desta intenção ao organizar o primeiro seminário internacional sobre o problema das máfias na Europa. A reação do presidente Busek foi positiva”.
“A partir de hoje, concluiu Crocetta, a luta contra a máfia pertence ao Parlamento Europeu e tenho orgulho de, juntamente com outros, ter contribuído para esse resultado”. www.rosariocrocetta.com
Esta comissão terá poderes para realizar visitas locais e realizar audiências em instituições europeias e nacionais de todo o mundo. Os deputados ao Parlamento Europeu podem convidar representantes da sociedade empresarial e civil, organizações de defesa das vítimas, funcionários e juízes envolvidos na luta diária contra o crime organizado, a corrupção e o branqueamento de capitais (3).
E possível uma visita ao Brasil pela relação dos menores envolvidos no narcotráfico e as mafias internacionais?
Europa pode enviar uma mensagem às organizações criminosas e gangues também do Brasil.
Novas tendências da criminalidade transnacional mafiosa
Muito interessante o libro doWálter Fanganiello Maierovitch, Novas tendências da criminalidade transnacional mafiosa, publicado pela Editora Unesp, 2010.
Elaborado em parceria com a jurista italiana Alessandra Dino, o livro é uma coletânea de artigos que investigam a complexidade das organizações mafiosas e de suas articulações no campo político, econômico e informacional. Os autores destacam o fortalecimento de grupos criminosos como a Cosa Nostra siciliana e a islâmica Al Qaeda nas últimas décadas e relembram que elas constituem um “perigo real à segurança nacional, aos direitos da pessoa humana e à estabilidade dos Estados soberanos”, como atestaram os 140 países presentes à Conferência de Nápoles, realizada entre 21 e 23 de novembro de 1994. Essa Conferência evoluiu para a primeira Convenção Mundial sobre Crime Organizado Transnacional, realizada em Palermo, em 2000.
As Nações Unidas, nas duas ocasiões, destacaram o “alto preço pago ao crime organizado internacional em termos de vidas humanas” e seus efeitos nas economias nacionais e sobre o sistema financeiro mundial – questão que se evidencia com o fluxo de cerca de US$ 400 bilhões anuais movimentados pelo tráfico. Em 2009, diante da crise econômico-financeira mundial, o czar antidrogas das Nações Unidas, o italiano Antonio Costa, chamou a atenção para o fato de que foi o dinheiro sujo das drogas a salvaguarda do sistema interbancário internacional.
Os ensaios reunidos apresentam em nove diferentes âmbitos temáticos as peculiaridades dessas redes ilegais, desde os crimes de colarinho branco até a estrutura da empresa mafiosa, passando pela psicologia criminosa, a economia paralela e os poderes ocultos, entre outros temas – todos abordados com profundidade e exemplificados com muitos dados. A situação brasileira é contemplada em texto específico, que investiga as relações entre governo, narcotráfico, jogo do bicho e Carnaval.
Maierovitch destaca as convergências com a realidade brasileira, especialmente, a observada no Rio de Janeiro, onde atuam fações ligadas ao tráfico de drogas e milícias. “Estamos tratando de crime organizado, de matriz mafiosa, e hoje nós temos as organizações no Rio que apresentam controle de território e controle social”, afirma, lembrando o caso Patrícia Acioli assassinada no dia 11 de agosto 2011, em frente ao condomínio onde morava, em Piratininga, Niterói (RJ), que, antes de ser assassinada, era alvo de ameaças por estar à frente de processos envolvendo grupos de extermínio e milicianos: “Quando se mata um juiz é sinal de que o crime organizado chegou ao ponto máximo de ousadia” (4).
Berlusconi pagava proteção à Máfia, conclui Supremo Tribunal italiano
Wálter Fanganiello Maierovitch é presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais, desembargador do Tribunal de Justiça, ministro no governo Fernando Henrique, professor de pós-graduação em direito penal e processual penal, além de professor-visitante da Universidade de Georgetown (Washington-EUA). Recebeu do presidente italiano Oscar Scalfaro a comenda de cavaleiro da República pela luta antimáfia, com risco pessoal.
Fanganiello declarou que “o ex-premiê Silvio Berlusconi pagava à Máfia, também conhecida por Cosa Nostra siciliana, taxa de proteção: pizzo. A decisão é definitiva. Não se discute mais. A respeito, acaba de ser publicada a motivação dessa decisão da Corte de Cassação da Itália, que na hierarquia Judiciária peninsular corresponde ao nosso Supremo Tribunal Federal. Pela decisão da Cassação, o senador Marcello Dell’Utri era o intermediário entre Berlusconi e a Máfia. Dell’Utri, já de mala pronta para ir para a cadeia (admitiu em entrevista estar com tudo pronto: “pijama, livros, remédios etc.”), pagou à Cosa Nostra o pizzo (taxa de proteção) de 1977 a 1982.
A Cassação mandou a Corte de Apelação de Palermo motivar melhor o acórdão que condenou Dell’Utri à pena de 7 anos de reclusão. Por isso, a Cassação determinou a suspensão provisória da execução da pena do senador Marcello Dell’Utri. A Corte de Apelação tem de decidir, também, sobre eventual crime continuado, importante para se verificar prazos prescricionais. Dell’Utri fundou com Berlusconi a coligação partidária Forza Italia, que levou Berlusconi ao poder como primeiro-ministro da Itália por duas vezes. Pela lista da Forza Italia, o “intermediário mafioso” Dell’Utri elegeu-se senador. O senador Dell’Utri já está definitivamente condenado, conforme motivação da Corte de Cassação que veio à luz hoje, por associar-se à Máfia. Uma associação externa, que, no Brasil, não é contemplada no Código Penal (5).
Eu discutiu o tema com Gian Carlo Caselli, que foi procurador na cidade de Palermo após o assassinato, nos anos 90, dos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, que tentavam travar a máfia. Caselli é agora procurador no Tribunal de Turim. “Já o magistrado Giovanni Falcone dizia há muitos anos – e essa lição continua pertinente – que a Cosa Nostra, que é a máfia siciliana, mata em Palermo mas investe em Milão, Nova York, Otava ou em Frankfurt. Isto é, em todos os lugares nos quais a lavagem de dinheiro lhes permite aumentar o poder econômico e o poder em geral.
(..)Está tudo por fazer a nível europeu no que toca ao crime de organização mafiosa. A força das máfias advém da sua organização criminosa, da sua capacidade de intimidarem, de controlarem em proveito próprio numerosas pessoas na área econômica, política ou administrativa. É esse poder de intimidação e de manipulação que constitui a marca genética da máfia. Não abordar esse ponto, não classificar como criminosa a participação na estrutura organizada, resulta num combate menos eficaz contra a máfia. Giovanni Falcone dizia – e permita-me citá-lo novamente – que sem este crime de organização mafiosa, tentar derrotar a máfia é como atacar um tanque com uma fisga.”(6)
NOTAS
- http://www.cartacapital.com.br/sociedade/exportamos-cocaina/
- http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1172&Itemid=2
- http://pt.euronews.com/2010/02/25/eurodeputado-italiano-quer-comissao-anti-mafia-na-eurocamara/
- http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5483784-EI6578,00-Seminario+em+memoria+de+juiza+discute+crime+organizado.html
- http://ibgf.org.br/index.php?data[id_secao]=2&data[id_materia]=2756
- http://pt.euronews.com/2012/03/28/crime-ao-estilo-mafioso-analisado-por-novo-comite-do-pe/
*Cristiano Morsolin, jornalista italiano, membro do Observatorio sobre Latinoamerica SELVAS. Trabalha na América Latina de 2001. É correspondente internacional do Portal EcoDebate.
EcoDebate, 03/05/2012
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