Sobre APP de beira de rio: algumas perguntas, artigo de Osvaldo Ferreira Valente
[EcoDebate] Há poucos dias, vi uma entrevista com o pesquisador Evaristo Miranda, da Embrapa, que tem sido muito criticado pelo setor ambientalista. Não quero, aqui, entrar no mérito do trabalho do referido pesquisador, mas a entrevista me deixou curioso para analisar algumas realidades do Brasil e de outros países, quanto à ocupação das margens de rios mais caudalosos, já que a minha experiência em trabalhos de campo está concentrada em pequenos cursos d’água. Resolvi, então, fazer viagens por uns poucos locais, mas por meio de imagens do Google Earth, programa que pode ser baixado gratuitamente da internet e que tem resolução suficiente para visualizarmos diversos usos da terra. Além disso, pude consultar um grande número de fotografias, em imagens do Google, para conferir alguns detalhes das áreas visitadas. Das viagens eu trouxe muitas dúvidas, que serão explicitadas em várias perguntas ao longo deste texto.
A primeira visita foi ao rio São Francisco, na região de Petrolina e Juazeiro, pólo de fruticultura do semiárido. Ali o rio chega a ter mais de 1.000 metros de largura e tem suas laterais ocupadas por inúmeras propriedades rurais, muitas pequenas, e que estão até totalmente localizadas dentro da APP de 500 metros. Desloquei-me para a região de Bordeaux, na França, famosa por suas vinícolas, e verifiquei que lá as videiras estão plantadas até à beirada do rio Garonne, que chega a ter 500 metros de largura. Não há nenhuma notícia de que a França pretenda proibir o cultivo ali. A convivência com o rio é pacífica e já de longo tempo. Será que não podemos ter essa mesma convivência pacífica no vale do São Francisco?
A segunda visita, aproveitando que já estava na Europa, foi à região montanhosa do Douro, em Portugal, também vinícola, onde vi encostas todas tomadas por plantações de videiras, do topo à beira dos cursos d’água. Encostas com 50% de declividade (o Google Earth possibilita conhecer distância e diferença de nível entre dois pontos, permitindo, assim, o cálculo de declividades). Por que não poderemos ter situações semelhantes em nossas regiões montanhosas?
Fui aos Estados Unidos, à bacia do rio Mississipi, de importância fundamental para aquele país, já que ela representa em torno de 40% do território americano. Nela está o Cinturão do Milho e, no estado de Iowa, por exemplo, as plantações vão até às margens dos pequenos cursos d’água, o mesmo acontecendo ao longo de vários trechos de afluentes mais caudalosos. Não há continuidade de florestas naturais ao logo do Mississipi, sequer no estado de Luisiana, onde ele deságua no Golfo do México. Como interpretar o que acontece lá? Estariam os americanos conscientes de que o uso das margens do Mississipi poderá secá-lo, no futuro, como afirmam por aqui, com relação aos nossos rios?
As perguntas feitas nos dois parágrafos anteriores não trazem nenhum sentido de represália, ou seja, não pretendem sugerir que se eles usam lá nós também temos de usaraqui, por simples desaforo ou pirraça. Elas apenas sugerem que, quem sabe, poderemos buscar lá as tecnologias adotadas pelos franceses, pelos nossos irmãos portugueses e pelos americanos. As ONGs internacionais poderiam prestar-nos um grande favor, descobrindo e trazendo, para os nossos produtores rurais, os procedimentos conservacionistas adotados por eles.
Voltei ao Brasil e fui rio Paraíba do Sul, na região de Itaocara, no estado do Rio de Janeiro, encontrando sinais de propriedades rurais com baixas produtividades, com encostas degradadas e que, muitas vezes, ocupam as margens do rio, até as bordas da lâmina d’água. Como o rio chega a ter, ali, até mais de 300 metros de largura, há muitas áreas de cultivo que serão atingidas pelos 100 metros de recuperação previstos na proposta do Código Florestal aprovada no Senado (pois para rios com mais de 10 metros de largura, a proposta prevê recuperação de faixa correspondente à metade da largura, com mínimo de 30 e máximo de 100 metros) . Será que os produtores dessa região terão capacidade financeira de recuperar os 100 metros de mata ciliar? Muitos estão por lá, certamente, ocupando áreas dominadas pelas famílias há cem anos ou mais. Para plantar os 100 metros, eles precisarão comprar moirões, arames, mudas e fertilizantes, com gasto mínimo de dois mil reais por hectare. Se ele tiver ocupando 300 metros ao longo do rio, desembolsará seis mil reais, fora o valor da mão-de-obra. Vai ser uma enorme tarefa dos poderes públicos desocuparem tais áreas. E se eles não tiverem condições de recuperar? Serão desapropriados ou despejados? A recuperação será feita pelo poder publico pertinente? Alguém acredita que os valores mencionados para recuperação são baixos? Quem acha que são baixos está por dentro da realidade do campo, nas condições de Itaocara?
Depois continuei minha viagem visitando o rio Itajaí, na região de Apiuna, em Santa Catarina. Região lindíssima, montanhosa e predominantemente ocupada por florestas naturais. As propriedades rurais estão concentradas nos terraços ao longo do Itajaí e de seus pequenos afluentes. Como o rio chega a ter larguras próximas de 200 metros em alguns pontos, a recuperação dos 100 metros irá, como no caso de Itaocara, atingir muitas plantações próximas do rio. Nota-se, ainda, facilmente, que aplicado o Código como está previsto até agora, incluindo os 15 metros em torno dos pequenos afluentes, a região vai virar um grande parque florestal. O que fazer com os habitantes da região, já absolutamente protegida?
As viagens que fiz poderão ser feitas por quaisquer pessoas que tenham computadores ligados à internet e se disponham a baixar o programa do Google Earth, gratuito. Seria bom, também, visitar outras regiões brasileiras, sempre com os olhos voltados para a nossa diversidade fisiográfica. A realidade brasileira é muito variável de região para região, o que torna irracional o tratamento igualitário que continua prevalecendo na reforma do Código Florestal, pelo menos até o momento em que escrevi este artigo.
Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas, professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e autor do livro “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas”; colaborador e articulista do EcoDebate. (valente.osvaldo@gmail.com)
EcoDebate, 12/04/2012
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Excelente artigo, Dr. Osvaldo. O que dizer dos grandes rios urbanos da Europa (Sena, Tâmisa, Danúbio) que tem suas margens totalmente ocupadas e as águas limpíssimas?
Parece que há uma contradição.
Osvaldo Ferreira valente analisa a situação na Europa e nos Estados Unidos, e afirma que lá está tudo bem, apesar de as margens dos rios serem ocupadas com agricultura.
Inicialmente, devemos perguntar: a Europa e os Estados Unidos são um bom exemplo de preservação ambiental?
Continuando: no útimo parágrafo, o autor do artigo afirma: “A realidade brasileira é muito variável de região para região, o que torna irracional o tratamento igualitário que continua prevalecendo na reforma do Código Florestal…”.
Não é contraditório comparar as realidades brasileiras com as da Europa e dos Estados Unidos, pretendendo que as daqui tenham o mesmo tratamento que as de lá, e, ao mesmo tempo, argumentar que as diferentes regiões brasileiras devem ter tratamentos diferenciados?
Acho que é, mas…
Permitam-me exagerar, para vermos até onde os argumentos do autor do artigo podem se sustentar.
Se os rios, que são seres vivos, não precisam de boas condições para existirem e serem saudáveis, por que não propor, Osvaldo Ferreira Valente, que se pavimentem suas margens, das nascentes às desembocaduras, com “discretas” faixas de 1km de largura, ou mais?
Concluindo, podemos afirma que são muitos e variados os interesses atingidos por essa reforma do Código Florestal.
Concordo com o Sr. Oswaldo na essência do conteúdo que transmite, qual seja de estranhar as realidades em outras tradições culturais e a proposta linear, igual para todo o território nacional, de níveis elevados de “respeito e preservação” cuja essencialidade natural não se comprova em profundidade salvo ser de uma redução ininteligível de todas as diversidades nacionais a apenas uma escala-padrão de convivência.
Gostaria de saber se vão fazer aterros nos “lajeados” do Rio Grande do Sul, para suportar as raízes e manter de pé as desejadas distancias de fluxos d”água (riachos, ribeirões, rios “magros”, rios “gordos”, margens de terra, margens de areia, margens de pedra…
Também em muitas outras partes do país.
Vão reflorestar as dunas do norte quando algum curso por elas permear?
Se pesquisarem na Web vão encontrar vales inteiros de montanhas de alta declividade inteiramente cultivados com arroz alagado sob água corrente….
Também vão encontrar um lago das mil ilhas, quase inteiramente ocupado por lindas residências e mansões.
Coloco a questão: não onde se está e sim o como se está.
As monoculturas que ocupam os grandes espaços antes florestais, estão de modo danoso ao equilíbrio ambiental.
As pulverizações aéreas de pesticidas e outros “cidas” por sobre extensões de plantio limítrofes com florestas e povoados, estão também de modo danoso.
Á questão anterior, junto uma outra: do como se faz!
A grande pergunta então passa a ser: como se está e como se faz!
Sou ambientalista ativo e tenho muitas questões semelhantes às do articulista.
Mas paro por aqui dizendo: O CÓDIGO e as LEIS MONOLÍTICAS sobre coberturas vegetais como se usam e pretendem continuar no Brasil, não são inteligentes, tratam de maneira igual coisas desiguais, e de maneira igual coisas desiguais. É isso aí.
Em primeiro lugar o Sena e etc não tem águas limpíssimas coisa nenhuma. Ledo engano. O Sena, em paris é muito sujo, vi isso.
Em segundo lugar, a questão não é só uma questão de água limpa. O Sr. osvaldo se andou por aqui, Petrolina/Juazeiro deveria ter comentado a situação do assoreamento do rio. Claro, não é interessante fazer esse tipo de comentário. A vegetação ciliar no semi-árido é diferente do que temos na caatinga hipo ou hiperxerófila. Então sem mata ciliar declinamos para um… com liberdade da expressão, semi-bioma em vias de extinção. Onde vamos encontrar então as ingazeiras, mulungus, craibeiras, muquens calumbis, marizeiros? Bem, mas quem se importa, o importante é lucrar. A vegetação ciliar serve também como corredor para o fluxo gênico, e sente caso estamos falando da fauna. Mas quem se importa também com isso? Não haverá praticamente mais reserva legal e nem vegetação ciliar. mas quem se importa? Viva a Europa e o antropocentrismo.
Tema polêmico. Mas a questão é se quantificar a largura da faixa ciliar a se proteger ou recuperar com a devida atenção para as grandes diferenças físicas e biológicas, não apenas para as diferentes regiões do país mas até de cada bacia hidrográfica. Um exemplo relevante, na Amazônia há características completamente diferente de um rio ou de uma bacia hidrográfica para outra. Não pensem que é um tapete verde entremeado por águas, em toda sua extensão. Há regiões onde não há nascentes, é completamente seco, exceto no período das chuvas, não há água nem para se beber e, no entanto, o terreno é recoberto por uma rede de drenagem das águas pluviais que, acrescidos de faixas ciliares tomam mais de 90% das áreas. Tudo isso é APP? Projetos sustentáveis seriam crimes ambientais. As pessoas passeiam pelo Rio de Janeiro, por Paris e outros belos lugares mas noção do que é produção de alimentos para sustentá-las. Escrevem e falam teorias ecoloucas, enquanto bebem vinho, café, açai, tudo com matéria prima produzido em APP.
Professor Osvaldo, gostei muito do tema.