‘Apartheid da água’: Na Cisjordânia, até a gestão de recursos hídricos é uma arma
Pode-se dizer que a política israelense de gestão de recursos hídricos na Cisjordânia está sendo um “apartheid da água”? Para Youssef Dabassé, vice-prefeito de Tarqumiya, um grande vilarejo de 20 mil habitantes situado a leste de Hebron, é uma pergunta retórica. A situação no dia a dia dos moradores já diz o suficiente: a cada dez dias, seu vilarejo recebe água corrente durante 70 horas. Depois é a vez de um outro vilarejo próximo, durante o mesmo intervalo de tempo. Reportagem de Laurent Zecchini, Le Monde.
Quando as torneiras correm, é preciso fazer provisões de água para beber, para o gado e, se sobrar, para as plantações. “Quando estamos conectados”, explica Youssef Dabassé, “as partes baixas de Tarqumiya são beneficiadas e, na vez seguinte, é o vilarejo de cima que é abastecido.” No resto do tempo, é preciso comprar água de caminhões-cisternas e retirar dos reservatórios, que existem em cerca de 40% das casas.
Evidentemente, o preço não é o mesmo: a água de torneira é cobrada a 2,6 shekels por metro cúbico (R$ 1,17), e a dos caminhões chega a 25 shekels por metro cúbico (R$ 11,75). No verão, a situação se torna insuportável, observa o vice-prefeito: “A Mekorot [companhia de água israelense] corta o abastecimento, porque eles dão preferência aos assentamentos judaicos da região. Quando nos queixamos, eles dizem: ‘Nós verificamos, está tudo normal’. E a água continua cortada durante dias.”
Para entender, é preciso percorrer as colinas com Khayni Damidi, um engenheiro da Autoridade Palestina da Água (PWA). Na Rota 35, a estrada que leva a Tarqumiya acompanha a colônia judaica de Telem. Um pouco adiante, em um caminho de terra ladeado por oliveiras, caímos em uma estação de bombeamento de barulho ensurdecedor. A instalação, que atende a cerca de 20 vilarejos, pertence à companhia Mekorot. Em princípio, ela é gerida em conjunto com a Autoridade Palestina, em uma reserva próxima: na grande canalização que penetra na terra, o engenheiro Damidi aponta uma válvula protuberante. “Ela serve de gargalo de estrangulamento”, ele diz, “a vazão é regulada de acordo com a boa vontade dos israelenses”.
Ao contrário do norte da Cisjordânia, onde existem centenas de poços ilegais, particularmente na região de Jenine, essa prática é rara na região de Hebron, situada na Zona C, a parte da Cisjordânia onde, segundo os Acordos de Oslo (1993), Israel exerce um controle civil e securitário quase absoluto. “É ilusório querer cavar um poço na Zona C,” confirma Khayni Damidi, “o exército está onipresente”.
As conexões ilegais, em compensação, são muitas. Segundo o especialista israelense Haim Gvirtzman, elas representam um desvio de 3,5 milhões de metros cúbicos por ano. Os palestinos contestam essa estimativa, mas não negam o fenômeno. “Nós pagamos por toda a água que sai para nossos vilarejos, mas é claro, não recebemos a quantidade equivalente, por causa dos desvios: no total, 50% da água não é cobrada dos consumidores”, afirma Damidi.
Além do fato de os vazamentos –resultado de uma manutenção defeituosa– afetarem 33% da rede palestina, até pouco tempo atrás os vilarejos, em período de grande seca, não hesitavam em desviar as canalizações do vilarejo vizinho. Tais comportamentos, justifica esse engenheiro, são resultado da falta de água organizada por Israel. Tanto sobre a água quanto sobre outros assuntos, as posições dos israelenses e dos palestinos parecem irreconciliáveis…
As autoridades israelenses se declararam “indignadas”, em fevereiro, com a publicação de um relatório da Assembleia Nacional Francesa que denunciava “um novo apartheid da água” nos territórios palestinos ocupados. O autor, o deputado socialista Jean Glavany, ressaltava que “os 450 mil colonos israelenses na Cisjordânia usam mais água que 2,3 milhões de palestinos”. Ele garantia que, em caso de seca, a prioridade da água era dada aos colonos, que a barreira de segurança na Cisjordânia permitia o controle do acesso às águas subterrâneas, e que os poços perfurados pelos palestinos são sistematicamente destruídos pelo exército israelense.
“No Oriente Médio”, ele concluiu, “a água é mais do que um recurso, é uma arma”. São muitos os exemplos de discriminações sobre a água das quais os palestinos são vítimas. E não há dúvidas de que a política de colonização conduzida por Israel tem como um dos objetivos estratégicos uma apropriação dos recursos hídricos. A água, para os israelenses, é antes de tudo uma questão militar.
Quanto a esse termo de “apartheid”, o prefeito de Hebron, Khaled Osaily, tem sua opinião: “É claro que se trata de apartheid! No total, só conseguimos 50 litros de água por dia e por pessoa, ao passo que os israelenses dispõem em média de 400 litros!” Esses números são contestados por Israel: segundo o professor Gvirtzman, se a diferença entre israelenses e palestinos era de 508 litros contra 93 litros em 1967, hoje ela caiu para 150 litros para os israelenses contra 140 litros para os palestinos.
O prefeito de Hebron reconhece que uma das principais acusações dos israelenses –a perfuração de poços ilegais e conexões clandestinas– tem fundamento, mas é para relativizar sua importância: “Conexões ilegais existem em todo lugar, inclusive em Tel Aviv. Já os poços ilegais são um fenômeno de extensão limitada, e é perfeitamente administrável”.
Shaddad al-Atiili, diretor da PWA, resume assim o diálogo de surdos que prevalece dentro da comissão conjunta de Israel e Palestina sobre a água: assim como os palestinos se recusam a aprovar os projetos hídricos israelenses nas colônias (o que equivaleria a legitimá-las), Israel recusa quase todos os projetos palestinos, inclusive as usinas de tratamento de águas residuais.
Israel alega boa fé, ressaltando que dobrou a alocação de águas aos palestinos em relação às cotas previstas pelo segundo Acordo de Oslo (1995), mas o argumento não convence: não só essa divisão –que só cedia aos palestinos 18% do chamado lençol freático “das montanhas”, principal recurso hídrico dividido entre israelenses e palestinos– devia ser temporária, como a população palestina dobrou desde então.
A recusa de Israel em aceitar uma distribuição mais equitativa é ainda menos justificável considerando que, segundo o professor Gvirtzman, em 2013, o Estado judaico deverá dispor de cinco usinas de dessalinização de água do mar, que lhe permitirão equilibrar sua produção e seu consumo de água doce.
A questão da água é uma das chaves das negociações da criação do futuro Estado palestino. Embora ela não seja tão midiatizada quanto à das fronteiras, da qual, aliás, é inseparável, ou quanto à do status de Jerusalém ou da volta dos refugiados palestinos, tornou-se urgente encontrar uma solução para dividir equitativamente esse recurso vital.
Se a situação não for resolvida, é grande o risco de ver os microconflitos da água se multiplicarem como metástases que abalarão a Cisjordânia. “A próxima guerra”, avisa o prefeito de Hebron, “poderá ser a da água”.
Tradutor: Lana Lim
Reportagem [En Cisjordanie, même l’eau est une arme] do Le Monde, no UOL Notícias.
EcoDebate, 13/03/2012
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