Estatísticas confirmam que 2011 foi o pior ano da pesca em São Paulo
Simão Cruz, de 48 anos, pescador, filho de pescador, nascido e criado na vila de pescadores de Camburi, a praia mais ao norte do litoral paulista, entre Ubatuba e Paraty. Um autêntico caiçara. Passou quase a vida toda no mar, pescando com sua canoa de madeira, Kelly, e servindo o que trazia do mar no restaurante que seu pai lhe deixou, o Bar do Simão, a poucos passos da praia. Peixe mais fresco que isso, impossível. Matéria de Herton Escobar, em O Estado de S.Paulo.
De uns tempos para cá, porém, o peixe que abastece a geladeira do restaurante não é trazido mais das águas da baía à sua frente, à bordo da canoa Kelly. Chega de carro, pela estrada, encomendado de uma peixaria em Paraty, a 30 quilômetros de distância. As redes de pesca de Simão não vão para o mar faz tempo. Estão acumulando poeira do lado de fora do restaurante, emboladas sobre um bote de alumínio.
“Faz dois meses que não largo rede no mar”, conta Simão, entre um cliente e outro. “O peixe é tão pouco que não vale a pena. É perda de tempo.”
O mar de São Paulo não está para peixe. Literalmente. E não é só em Camburi. Nem só para o Simão. Nem é só há dois meses que o problema começou. Segundo pescadores artesanais da região ouvidos pelo Estado, a quantidade de peixe no litoral paulista vem caindo há pelo menos uma década.
“Cada ano fica pior”, diz o jovem caiçara Fabio Oliveira da Conceição, de 28 anos, filho do “seu Inglês”, um dos pescadores mais antigos de Camburi. “Ainda dá para sobreviver, mas não tá fácil. Não é mais como antigamente, quando eu era moleque e nadava no meio dos peixes aqui na praia”, lamenta ele, ainda determinado a não abandonar a profissão.
Estatísticas oficiais confirmam a história dos pescadores. Segundo o Instituto de Pesca de São Paulo, o volume de pescado desembarcado no Estado em 2011 foi o menor dos últimos 45 anos: cerca de 20,5 mil toneladas, 20% menos que há 10 anos e 60% menos que há 20 anos.
O cerco flutuante na praia de Camburi, de onde Conceição diz já ter tirado 8 toneladas de peixe, hoje não rende “nem uma caixa” de pescado por dia, segundo ele.
Na vila vizinha de Picinguaba, um pouco mais ao sul, a situação é a mesma. “Se fosse depender da pesca, hoje meus netos estavam passando fome”, diz o pescador Claudeci Castro de Paula, o Zico, de 55 anos. Todas as manhãs, bem cedinho, ele sai sozinho num barco a motor para recolher a rede de 200 metros que larga esticada no mar durante a noite, com as pontas marcadas por boias de isopor com bandeirinhas do Brasil. Numa dessas saídas, acompanhadas pelo Estado, Zico puxa metro após metro de rede vazia. Só aqui e ali aparece um peixe. No final, 10 corvinas e 3 vermelhos, somando 14 quilos de pescado – média de 700 gramas de peixe para cada 10 metros de rede.
“Melhor pouco do que nada, né?”, avalia Zico, tentando manter o bom humor. “Se fosse tudo vermelho, até que tava bom”, completa o caiçara, referindo-se ao peixe de maior valor, que ele vende por R$ 15 o quilo – o dobro do preço da corvina.
Segundo Zico, faz uns cinco anos que a pesca começou a “fracassar” em Picinguaba. “Antigamente eu não dava conta de sair assim sozinho, não. Tinha de trazer gente pra ajudar, de tanto peixe que pegava.” Todas as espécies diminuíram de quantidade e de tamanho, diz ele. Algumas praticamente desapareceram das redes. “Tem garoto aqui na vila que nem sabe o que é um xaréu.”
A culpa, segundo os caiçaras, é dos “barcos grandes” que pescam em mar aberto, longe da costa, onde os barcos menores da pesca artesanal não conseguem chegar. “Como é que a gente vai matar alguma coisa aqui se eles já matam tudo lá fora, antes de o peixe encostar?”, pergunta Zico. “O peixe nem chega mais pra nós.”
“Cadê a cavala? Cadê a sororoca? Não veio”, reclama Benedito Correia da Silva, o “Seu Pu”, de 78 anos, pescador mais velho de Picinguaba, uma das colônias caiçaras mais tradicionais de São Paulo. “Do ano passado pra cá não tá dando mais nada, só mixaria”, diz ele, hoje aposentado, com a pele manchada de sol e os olhos nebulosos de catarata.
Tecnologia. Alguns barcos industriais, dizem os caiçaras, têm redes de até 40 quilômetros de extensão, suficientes para “fechar” o mar de Picinguaba até Ubatuba. Some a isso as tecnologias modernas de sonar, que permitem detectar cardumes a grandes distâncias e com grande precisão, e as chances de um peixe escapar das redes é mínima.
“É muita aparelhagem, muita rede. Como é que o peixe vai escapar? Não tem como!”, esbraveja Pu. “Antes a gente achava o cardume no olho, debruçado na proa. Agora os caras ficam só olhando pro computador, não precisa nem olhar pra água.”
A sardinha, por exemplo, costumava ser pescada somente à noite, de preferência na Lua nova (quando é mais escuro), porque os “olheiros” ou “espias” das embarcações – mesmo dos barcos grandes – localizavam os cardumes visualmente, guiados pela luminescência do plâncton marinho que era “excitado” pela movimentação dos peixes, formando uma “mancha luminosa” no mar. “Hoje se pesca sardinha de dia, de noite, com qualquer Lua, a qualquer hora”, diz a analista ambiental Maria Cristina Cergole, chefe do escritório regional do Ibama, com sede em Caraguatatuba. “É claro que isso faz diferença.”
No caso da tainha, estudos mostram que uma única traineira comercial captura mais peixes que todos os pescadores artesanais do Estado de São Paulo juntos. Até o fim da década de 1990, a tainha era uma espécie explorada principalmente pela pesca artesanal. A partir de 2000, diante de um colapso nos estoques de sardinha, muitas traineiras começaram a lançar suas redes também sobre a tainha, para cobrir o prejuízo. A quantidade de tainhas ao alcance da pesca artesanal, portanto, diminuiu.
“O pescador artesanal tem uma mobilidade limitada. Assim, qualquer coisa que afeta sua área de atividade tem um impacto direto sobre ele”, diz o pesquisador Marcus Henrique Carneiro, coordenador do Programa de Monitoramento da Atividade Pesqueira, do Instituto de Pesca de São Paulo.
“Eles (os barcos industriais) prejudicam os outros e eles mesmos”, avalia Simão. Assim como vários outros pescadores artesanais, ele acredita que a solução seria “parar de pescar por um tempo” para dar “uma trégua” ao peixes.Como foi feito com a sardinha.
Em defeso. A sardinha-verdadeira (Sardinella brasiliensis), um dos principais recursos pesqueiros das Regiões e Sul e Sudeste, sofreu dois colapsos marcantes nos últimos 20 anos, provocados pela sobrepesca. No década de 1970, em seu auge, a produção chegou a ultrapassar 200 mil toneladas. Em 1990, caiu para 32 mil. E em 2000, despencou para 17 mil toneladas.
Em resposta, dois períodos anuais de defeso foram instituídos para proteger a reprodução da espécie. Os estoques escaparam do colapso e a produção voltou a crescer, mas nunca voltou aos patamares de antigamente. Hoje, está na faixa de 80 mil toneladas.
Várias outras espécies possuem períodos de defeso, em que a pesca é proibida. Como a anchova, a tainha, a lagosta e várias espécies de camarão. “O problema não é a legislação, é a falta de respeito a ela e a falta de fiscalização efetiva para fazer cumpri-la”, diz Maria Cristina, do Ibama, reconhecendo as limitações de seu próprio órgão. “É muito desrespeito. Muita denúncia.”
Fiscalizar os barcos grandes em alto-mar é extremamente difícil, o que deixa os pescadores artesanais com a impressão de que “o pessoal do meio ambiente só bate nos pequenos”, como diz Seu Pu. Maria Cristina e Carneiro reconhecem que o impacto da pesca industrial é muito maior, mas rejeitam a tese do “bom selvagem”, que vive em perfeita harmonia com o ambiente.
“Toda atividade tem o seu impacto”, diz Maria Cristina.
As estatísticas estaduais deixam claro que a queda de produção afeta tanto os barcos grandes quanto os pequenos. Cerca de 30% da produção de pesca marinha do Estado vêm da pesca artesanal e 70%, da industrial.
Estatísticas oficiais confirmam o que dizem os caiçaras: 2011 foi o pior ano da pesca no Estado de São Paulo
EcoDebate, 29/02/2012
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