Conjuntura. Governo de coalizão: Uma contradição persegue o Brasil
A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das “Notícias do Dia’ publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, com sede em Curitiba-PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Sumário:
Uma contradição persegue o Brasil
Governo de coalizão. Indispensável ou uma opção?
Pacto que se renova. O Brasil moderno preso ao Brasil arcaico
Há limites para a coalizão de governo?
Coalizão, governança e religião: a anulação do debate
Faxina de Dilma sequer arranhou a coalizão de governo
É possível “gestão eficiente” num governo de coalizão?
Eis a análise
Governo de coalizão. Indispensável ou uma opção?
“É impossível entender o Brasil tradicional, o Brasil moderno e já nesta altura o Brasil pós-moderno, sem levar em conta essa tensa combinação de moderno e tradicional que freia o nosso desenvolvimento social e político e que se renova a cada momento”. A afirmação é do sociólogo José de Souza Martins em seu último livro intitulado A Política do Brasil Lúmpen e Místico [Editora Contexto, 2011].
No livro, o sociólogo retoma a tese de que “somos estruturalmente uma sociedade de história lenta”, tema abordado em outra obra sua – O Poder do Atraso – Ensaios de Sociologia da história Lenta [Editora Hucitec – 1994]. Nas obras, sobressai a contradição que nos persegue: “O Brasil moderno pagando propina ao Brasil arcaico para se viabilizar”. A modernização brasileira não consegue romper com o atraso e, ainda mais inusitado, parece precisar dele para seguir em frente.
As amarras que ligam o Brasil moderno ao Brasil atrasado prosseguem no governo de coalizão herdado por Dilma de Lula. As últimas semanas foram pródigas em confirmar o pacto entre as elites modernas e as tradicionais: a nomeação do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), o cai não cai do ministro da Integração Nacional Fernando Bezerra de Souza Coelho (PSB-PE), a postura arrogante do deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) que quis intimidar publicamente a presidenta, a pretensa aliança entre o PT paulista e o prefeito de São Paulo Gilberto Kassab (PSD-SP), a “agenda imposta” pelas bancadas evangélica e ruralista.
Em todos esses casos recentes – outros poderiam ser citados –, vê-se como de fato funciona o governo de coalizão. A denominada realpolitik que defende a tese de que é preciso muitas vezes recuar para paradoxalmente avançar.
Pacto que se renova. O Brasil moderno preso ao Brasil arcaico
Entre os fatos, a nomeação para o Ministério das Cidades do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) põe a nu as entranhas da aliança entre o “moderno” e o “atrasado” e explicita a natureza e o caráter do governo de coalizão. Como escreve o sociólogo Luiz Werneck Vianna, “o caso do deputado Aguinaldo Ribeiro, novo ministro guindado ao vértice de nossas instituições republicanas, é exemplar não por sua trajetória pessoal, mas pelo significado, digamos, macroestrutural de que se investe”.
“Nele – continua o sociólogo – por inteiro, se põe em evidência o segredo de Polichinelo da modernização brasileira, que, desde sempre, de Vargas a JK, passando pelo regime militar e que ora se renova, conquanto de modo velado, nos governos Lula e Dilma Rousseff, se radica no pacto implícito – quando necessário, explicitado – entre as elites modernas e as tradicionais”.
O sociólogo recorda que “o deputado Aguinaldo Ribeiro é neto do tristemente famoso usineiro Aguinaldo Velloso Borges, chefe de baraço e cutelo do agreste paraibano, acusado de mandar matar, em 1962, João Pedro Teixeira, uma das maiores lideranças dos trabalhadores do campo, então à frente da Liga Camponesa de Sapé, quando se destacou nacionalmente pela firmeza na defesa dos direitos da sua categoria social. Em 1983, o mesmo usineiro Aguinaldo foi, mais uma vez, apontado como responsável por mais um crime político, pois era disso que se tratava, com o assassinato sob encomenda de Maria Margarida Alves, símbolo das lutas feministas no País, cultuada na Marcha das Margaridas, que desde 2000, anualmente, desfila em avenidas de Brasília”.
O novo ministro das Cidades, descendente de uma oligarquia do agreste paraibano, “ganhou” o ministério após a queda do ministro Mario Negromonte, do mesmo partido. Na cota do PP, o ministério ficou com Aguinaldo Ribeiro por sua fidelidade ao governo e pela condução, como líder da bancada de aproximadamente 40 deputados, a votar sempre fechado com o Palácio do Planalto.
Segundo Werneck Vianna, “está aí a mais perfeita tradução da quasímoda articulação, no processo de modernização capitalista do País, entre o moderno e o atraso (…) Para quem é renitente em não ver, este é o lado obscuro do nosso presidencialismo de coalizão, via escusa em que os porões da nossa História se maquiam e mudam para continuarem em suas posições de mando”.
O sociólogo lembra que o deputado federal pela Paraíba Aguinaldo Ribeiro (PP) assumiu um ministério resultante das lutas sociais e criado para se dedicar à erradicação dos problemas estruturais do mundo urbano.
Nesse sentido, diz Werneck Vianna, “a nomeação para o Ministério das Cidades do deputado não se pode perder no noticiário dos faits divers da política nacional, nem tanto pela falta de credenciais do indicado para exercer os papéis na direção de uma agência estratégica como essa – cabe-lhe, como se sabe, administrar o urbano, dimensão crucial da vida contemporânea –, menos ainda por já ter respondido em seu Estado a processos por improbidade administrativa, mas, sobretudo, pela sua linhagem política, a revelar de modo contundente o que há de reacionário na forma de imposição do nosso processo de modernização”.
O que o sociólogo quer dizer é que o ministério das Cidades surgiu na contramão da história política protagonizada pelo novo ministro. Na mesma época em que surgia o ministério, no bojo da redemocratização brasileira, o agora ministro, iniciava-se no mundo da política num ambiente em que o seu avô usineiro encomendava a morte da líder sindical Margarida Maria Alves, em 1983.
Margarida Alves foi presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande (PB) e enfrentou os usineiros da região ao lutar pelos direitos trabalhistas, tais como: carteira de trabalho assinada e 13º salário, jornada de trabalho de 8 horas e férias. A sindicalista foi assassinada por um matador de aluguel com uma escopeta calibre 12. O tiro a atingiu no rosto, deformando sua face. No momento do disparo, ela estava em frente à sua casa, na presença do marido e do filho. O livro Memória e Verdade, produzido durante o governo Lula, associa o nome do avô do atual ministro à encomenda da morte de Margarida Alves.
O usineiro também é citado como um dos responsáveis pela emboscada que vitimou João Pedro Teixeira em 1963, líder da Liga Camponesa de Sapé. A morte do líder camponês é retratada no documentário, Cabra Marcado Para Morrer, obra clássica do Eduardo Coutinho, na época um jovem cineasta do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). O documentário levou quase 20 anos para ser finalizado, uma vez que as filmagens na zona da mata paraibana foram interrompidas com o golpe de 1964.
No artigo intitulado ‘A cidade e o sertão’ Werneck Vianna enfatiza a contradição da nomeação do parlamentar do PP para o ministério das Cidades. O titular do ministério, proveniente de uma linhagem política clientelista, patrimonialista e autoritária não combina com a tarefa de coordenar uma pasta que surgiu na contramão de tudo o que o novo ministro representa.
O ministério das Cidades surgiu num contexto de retomada da agenda urbana no país. A urbanista Ermínia Maricato [nota 1] lembra que o ministério veio ocupar um vazio institucional na discussão sobre a política urbana e o destino das cidades. Segundo ela, em contraste com a pouca importância dada pelo executivo federal à questão urbana dos anos 1964 a 1985 nesse mesmo período consolidou-se um forte movimento social que, sob a bandeira da reforma urbana, reuniu profissionais, lideranças sociais, sindicalistas, ONGs, integrantes da Igreja Católica, parlamentares e servidores públicos.
A urbanista destaca que nos anos 1980 esse movimento de luta pela reforma urbana, de luta pela moradia, redundou na criação do Ministério das Cidades. O ministério, portanto, tem sua criação ligada a esse movimento social urbano que teve início ainda nos anos 1970 e que acumulou forças nas duas décadas seguintes na luta pela democratização do país e dos espaços urbanos. O primeiro ministro nomeado para o ministério foi Olívio Dutra, que vinha recomendado pela exitosa experiência do Orçamento Participativo na administração municipal de Porto Alegre e respeitado interlocutor junto ao movimento social.
O novo ministro vem de outra história, do Brasil arcaico, autoritário, clientelista, refratário às lutas pela democratização do país e de rejeição à participação popular.
A nomeação do ministro revoltou o movimento social camponês. O dirigente do MST João Pedro Stedile, afirmou que a “indicação é ofensiva para todos os camponeses do Brasil”. Stedile chama de “lamentável” a biografia familiar de Ribeiro e diz que a presidenta Dilma com essa nomeação mancha o seu próprio passado de lutas.
Poucos dias antes da nomeação de Aguinaldo Ribeiro para o Ministério das Cidades, outro ministro ligado a oligarquias deu dores de cabeça à presidenta Dilma Rousseff. Trata-se de Fernando Bezerra de Souza Coelho, ministro da Integração Nacional.
Fernando Bezerra tem sua origem política ligada ao coronelismo do clã Coelho, conhecidíssimo em Pernambuco. A família Coelho administra por quase 50 anos ininterruptos a cidade de Petrolina, considerada a principal economia do interior de Pernambuco e importante polo exportador de frutas. O ministro é neto de Clementino Coelho, conhecido como Coronel Quelê, figura lendária do sertão nordestino que criou 17 filhos e um império econômico que hoje abrange fazendas, indústrias e meios de comunicação pelo Nordeste.
Fernando Bezerra foi indicado ao ministério da Integração nacional pelo governador de Pernambuco Eduardo Campos, do PSB, partido que faz parte do amplo espectro do governo de coalizão de Dilma.
O ministro, faz poucas semanas, foi acusado de ter destinado para Pernambuco, sua base eleitoral, 90% das verbas de prevenção e preparação de desastres naturais, como enchentes e desmoronamentos. Isso em pleno janeiro de aguaceiros país afora, problemas de desmoronamento de encostas e milhares de desabrigados.
O ministro é acusado ainda de nepotismo. Burlou o decreto antinepotismo na administração federal ao manter o irmão como presidente interino da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – Codevasf por quase um ano. Indicou ainda integrantes da família para exercer funções em órgãos ligados à sua pasta e beneficiou parentes com cerca de R$ 1 milhão pela desapropriação de terras na Bahia em 2011.
O caso do irmão à frente da Codevasf veio acompanhado de mais denúncias. Reservatórios de água destinados a famílias que sofrem com a seca em Pernambuco ficaram abandonados em um terreno da estatal Codesvaf, em Petrolina (PE), base eleitoral do ministro.
O ministro teve ainda ativo papel na tentativa de substituição das cisternas de placas de alvenaria por cisternas de plástico. No episódio que ficou conhecido como a “guerra das cisternas”, fez-se necessário a forte pressão e mobilização do movimento social para que o governo mudasse de opinião.
O caso das cisternas é particularmente importante porque é revelador do desprezo de certa elite política para com as propostas construídas pelo movimento social ao longo das últimas décadas em torno da Articulação do Semi-Árido (ASA).
Para a ASA, a implantação de uma cisterna é mais do que uma obra: é a construção de um movimento. Segundo Naidison Baptista, coordenador da rede, “nós não somos construtores de cisternas apenas, nós somos uma rede de organizações da sociedade civil que influencia na política para o semiárido como parte do processo democrático. Temos orgulho de ter pautado o governo federal para a construção de cisternas e de políticas de convivência. Se você voar hoje sobre o semiárido, vai ver os pontinhos brancos. São as cisternas. As pessoas não entram mais na fila da água em troca de voto. Cortamos a raiz do coronelismo do Nordeste”, diz ele.
O coordenar da ASA, destaca que se trata de uma “mudança socioeconômica e política importante em uma região historicamente dominada por oligarquias em que sempre coube aos sertanejos ou se submeter a algum painho – ainda que com pinta de moderno – ou migrar para o centro-sul. A água estava concentrada na mão de poucos. Com as cisternas, a água foi repartida”, resume Baptista.
Na tecnologia social da ASA, a implantação das cisternas não é vista como favor do governo, mas como direito. Não é assistencialismo, mas política pública.
Roberto Malvezzi, conhecido nacionalmente como Gogó, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), afirma que “há algumas décadas o Ministério da Integração Nacional é reduto dos coronéis nordestinos. Na era lulista o Ministério ficou inicialmente com Ciro Gomes. Ele se presume um estadista. Pensou estrategicamente o desenvolvimento do Brasil a partir do Ceará”. Depois, continua ele, “saiu Ciro e entrou Geddel Vieira Lima. Aproveitou a pasta e dirigiu mais de 60% dos recursos do Ministério para a Bahia. Fez a base de sua campanha eleitoral para governador no vale do São Francisco com recursos do Ministério para as prefeituras da região. Trombou politicamente com Wagner, perdeu, está no ostracismo político”.
Agora diz Gogó, “entra Dilma e o Ministério foi para Fernando Bezerra Coelho, ex-prefeito de Petrolina, da oligarquia reciclada dos Coelhos. Dominam a região há praticamente um século. É aliado de Eduardo Campos e quer ser prefeito do Recife e eleger o filho prefeito de Petrolina”.
Sobre o novo ministro, diz Gogó: “Liberou 9,1 milhões de reais para o filho através de emendas parlamentares, destinou 90% dos recursos de prevenção de enchentes para o Pernambuco, impôs 300 mil cisternas de plástico para serem distribuídas pela CODEVASF. Detalhe: 22.799 (38%) do lote inicial de 60 mil são para Petrolina e região”.
Indignado, Gogó conclui sua análise: “Era de se supor que um Ministro da Integração Nacional tivesse uma visão integrada do país. Mas, é assim, com políticos miúdos – salvo raras exceções – e com políticas miúdas que tem sido administrado esse Ministério. Enquanto o país de dimensões continentais se desmancha pelas encostas com as enchentes de cada verão, a visão paroquial permanece no miolo dos ministros. Para piorar, Fernando Bezerra conta com o aval da Presidente Dilma Rousseff, inclusive para desmantelar a convivência com o semiárido e ressuscitar o coronelismo baseado no controle da sede humana, agora pela doação de cisternas de plástico”.
O uso da titularidade do ministério para beneficiar a família e sua base eleitoral é mais uma demonstração de como se processa a “história lenta” da sociedade brasileira. Fernando Bezerra faz parte da política do atraso. Sua família enriqueceu na sombra da ditadura militar e o êxito na política foi galgado ao uso dos mecanismos da política clientelista.
Bezerra na Integração Nacional, assim como o novo ministro do ministério das Cidades Aguinaldo Ribeiro, são manifestações do poder que as oligarquias ainda têm e de quanto ainda o “Brasil moderno” está preso ao “Brasil arcaico”.
Ao lado do clã dos Coelho e do clã dos Ribeiro, outro político – do clã dos Alves – desfilou toda a prepotência de um Brasil que se mantém ativo na política nacional. Trata-se de Henrique Eduardo Alves (PMDB – RN). O líder do governo na Câmara ameaçou a presidenta Dilma ao saber que um apadrinhado político seu corria o risco de ser demitido por corrupção: “O governo vai brigar com metade da República, com o maior partido do Brasil? Que tem o vice-presidente da República, 80 deputados, 20 senadores? Vai brigar por causa disso? Por que faria isso?”.
A afirmação de Henrique Eduardo Alves em tom desafiador foi feita ao saber que o seu apadrinhado, Elias Fernandes Neto, diretor-geral do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), seria demitido. O afilhado político de Henrique Alves foi acusado de usar o Dnocs para favorecer bases eleitorais do seu padrinho político. De 47 convênios assinados pelo Dnocs com prefeituras, 37 contemplaram cidades do Rio Grande do Norte. Entre as irregularidades estão pagamentos a sócios com ligações políticas e convênios com possíveis empresas de fachada.
Henrique Alves é o mesmo que não faz muito tempo emparedou o governo Dilma pela rápida liberação das emendas parlamentares – reconhecido mecanismo do clientelismo político brasileiro.
Há limites para a coalizão de governo?
Engana-se, porém, quem pensa que a porção do Brasil atrasado na coalizão do governo se manifesta apenas através das oligarquias ligadas ao latifúndio. O Brasil atrasado está também presente nas grandes metrópoles e com ele também o pretenso Brasil moderno faz alianças. Um desses episódios é a busca da aliança do PT com o prefeito de São Paulo Gilberto Kassab.
Kassab, criador do PSD, egresso do PFL e do DEM, já afirmou que não é nem de esquerda, nem de centro e nem de direita, é pragmático. Olha os seus interesses e o do seu partido recém-criado e se aproxima de quem lhe for mais útil. Kassab é da linhagem política pós-ditadura, ex-aliado de Maluf, acusado de enriquecimento ilícito quando foi secretário de Celso Pitta na prefeitura de São Paulo. O PT, por sua vez, surge na contramão do autoritarismo, na oposição à ditadura militar, fortemente ligado às lutas sociais pela redemocratização do país.
“Que cara de pau, hein! É um constrangimento para ele maior que para mim. Onde ele estava havia 32 anos? Eu estava na fundação do PT, em São Paulo”. A afirmação é do deputado federal pelo PT do Paraná Dr. Rosinha, referindo-se a Gilberto Kassab, convidado para o 32º aniversário do PT.
A tentativa de aliança do PT com o PSD – racha do DEM – de Kassab, mais do que mirar as eleições de 2012, mira em 2014, as eleições presidenciais. “Claro que o PT não está conversando com Kassab sobre afinidades programáticas nem projetos para melhorar a vida de quem mora nesta cidade, nem mesmo está atrás dos votos dele, até porque o prefeito tem altíssimos índices de rejeição. Também não é por causa do tempo do PSD na televisão, que não passa de um minuto. Os olhos de Lula e Dilma miram não a eleição deste ano, mas a de 2014, tanto no plano federal como no estadual, em que o maior objetivo do PT é isolar o PSDB e, principalmente, José Serra, que levou Kassab para a prefeitura como vice em 2004”, afirma o experiente jornalista Ricardo Kotscho.
Foi exatamente a partir da análise anterior que José Serra anunciou que será candidato à prefeitura em São Paulo, abortando dessa forma a pretensa aliança do PT com Kassab/PSD. O prefeito de São Paulo nunca negou sua gratidão a José Serra que o catapultou na política ao sustentar e e defender o nome de Kassab, quando ainda estava no PFL, como vice-prefeito na chapa encabeçada pelo PSDB nas eleições municipais de 2004.
Independente do desfecho, fica evidente que cada vez mais o PT orienta suas alianças pela manutenção do poder e não necessariamente por um projeto de poder. A amostra dessa tendência fica clara nas concessões inéditas que o PT fará para a disputa municipal desse ano.
A respeito do aliancismo, pergunta editoral da Carta Maior “PT/Kassab: qual é o limite do ‘ônibus’ petista”? E responde: “Derrotar o PSDB em São Paulo é uma meta importante (…) O problema, de fato, não é tanto com quem se faz aliança, mas sim para onde aponta o processo. Ou seja, qual programa o PT propõe para a cidade – e por extensão para o país – no pós-crise do neoliberalismo? Como a natureza desse projeto será influenciada pela lotação do ‘veículo’ aliancista”?
Coalizão, governança e religião: a anulação do debate
A camisa de força imposta pelo modo aliancista de governar adotado pelo PT, se mostra ainda em outras temáticas, envolvendo ora setores da sociedade civil, ora temas sobretudo morais. Em comum, têm o fato de trazerem à tona a aliança entre o Brasil conservador e o Brasil moderno.
No dia 26 de janeiro, a presidente Dilma Roussef deslocou-se até o Fórum Social Temático, em Porto Alegre, para uma conversa com os movimentos sociais. Diante da pluralidade das organizações que se faziam presentes, Dilma reconheceu a necessidade de uma maior aproximação com os movimentos sociais. Agora, qual tipo e como se pode dar essa aproximação, é uma outra história. Afinal, quais seriam as dificuldades que o governo enfrenta diante dos apelos por uma democratização social, vivida no Brasil de nossos tempos? No cotidiano da política falta clareza sobre os rumos do governo, já que sua posição pragmática e eleitoreira não consegue romper com os velhos padrões que persistem em pautar o debate das questões atuais.
Um fato exemplar deste pragmatismo político deu-se no mesmo Fórum Social Temático, em que a presidente falou de diálogo com os movimentos sociais. Numa palestra durante o Fórum, o ministro Gilberto Carvalho afirmou que o Estado deveria disputar ideologicamente a nova classe média brasileira, que é refém dos setores conservadores: “Lembro aqui, sem nenhum preconceito, o papel da hegemonia das igrejas evangélicas, das seitas pentecostais, que são a grande presença para esse público que está emergindo”. Uma declaração suficiente para inflamar os ânimos de parte da base do governo Dilma. A sentença foi dura, pois custou uma retratação do ministro Gilberto Carvalho em visita ao Congresso, com pedido de desculpas e demais justificativas.
No entanto, ele não foi o único ministro a polemizar nessas últimas semanas. A polêmica mais aguda deu-se com a nomeação de Eleonora Menicucci para a Secretaria de Política para as Mulheres. A nova ministra, que historicamente possui uma forte atuação em prol da democracia, também como pesquisadora, professora e militante, sempre esteve aliada ao movimento feminista. Em sua posse, Eleonora Menicucci afirmou: “Não se pode aceitar que, ainda hoje, quando temos uma mulher no mais alto cargo do Executivo brasileiro, mulheres sejam vistas como meros objetos sexuais, que morram durante a gravidez, que tenham direitos reprodutivos e sexuais desrespeitados”.
Sua nomeação reacendeu o debate acerca do aborto, e representantes políticos e lideranças religiosas voltaram a se manifestar em tom nada conciliador com a presidente Dilma. O desconforto político instalou-se no Palácio do Planalto, demonstrando a fragilidade em se avançar em algumas políticas por conta da coalizão de forças bastante antagônicas em torno do governo. O ministro Gilberto Carvalho, na sua audiência no Congresso, além do pedido de desculpas, levou um recado da presidente Dilma em que esta afirma não ter intenção de tomar qualquer iniciativa para alterar a legislação sobre o aborto.
Além de uma questão de saúde pública, o aborto tornou-se também uma bandeira política para alguns religiosos. O tema já apareceu nas eleições presidenciais de 1989, entre Collor e Lula, em 2000, entre Paulo Maluf e Marta Suplicy quando disputaram a prefeitura de São Paulo e, por último, com Dilma e Serra na eleição presidencial de 2010. Porém, para a socióloga Fátima Jordão e a graduanda em ciências sociais pela USP, Paula Cabrini, “os lances do jogo eleitoral em 2010 não agregaram nem votos a candidatos, nem benefícios aos discursos conservadores – porque derrotados -, nem à sociedade em geral. A questão do aborto naquelas eleições presidenciais sinalizou a possibilidade de continuação e aprofundamento de um debate amplo e mais aberto”.
Para o movimento feminista, a nomeação da nova ministra Eleonara Menicucci de Oliveira sinaliza nessa direção e foi uma decisão acertada pelo governo de Dilma. Para Maria José Rosado, coordenadora da organização governamental Católicas pelo Direito de Decidir, “sabendo da trajetória e das posições políticas dela (Menicucci), o governo Dilma não iria convocá-la para, depois, cercear sua atuação”.
Entretanto, há que se medir qual a disposição do governo para enfrentar essa temática tão espinhosa e grave. Em reunião na ONU, o governo de Dilma Roussef foi cobrado por peritos que apontaram a falta de ação do Brasil diante da morte anual de 200.000 mulheres em decorrência dos abortos de risco. A ministra Eleonora Menicucci evitou tratar dessa questão durante essa reunião.
Desde a posse da ministra Eleonora Menicucci, isso ficou evidenciado. Ela esclareceu que seguiria as diretrizes do governo, embora tivesse sua posição. Não custou para que, mesmo assim, recebesse a pecha de “abortista”. Ainda, segundo o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), “o comportamento dessa ministra não é compatível com o comportamento de quem vai conduzir as políticas de um governo. As opiniões dela são contrárias às de governo”.
A CNBB, embora com pouco alarde, foi precisa no recado para a presidente Dilma. Em relação ao aborto, o presidente da entidade, dom Raymundo Damasceno Assis, disse que “é uma questão inegociável”. Ele reconheceu a legitimidade da presidente em escolher o seu ministério, mas disse que existem questões mais importantes para serem discutidas do que o aborto. Alguns bispos estão menos preocupados com a relação entre Igreja e Governo. Em 2010, por exemplo, o atual arcebispo de Campinas, dom Airton José dos Santos, quando ainda estava em Mogi das Cruzes, foi um dos responsáveis pela difusão do Apelo a Todos os Brasileiros e Brasileiras, um manifesto contrário ao voto em candidatos do PT.
Dessa vez, quem se pronunciou publicamente foi dom José Benedito Simão, presidente da Comissão pela Vida do Regional Sul 1 (São Paulo), dizendo que a nova ministra Eleonora Menicucci “é uma pessoa infeliz, mal-amada e irresponsável”, que adotou uma postura contra o povo e em favor da morte”, por defender o aborto. Ressaltou ainda o risco de se criar um confronto entre a Igreja e o Governo.
Nota-se o campo minado que o governo Dilma atravessa, quando se trata da discussão do aborto e da necessidade da constituição de uma política pública de saúde a esse respeito. Refém das alianças, pressionado pelos políticos e lideranças religiosas, não será pela lógica do pragmatismo que o governo conseguirá dar uma resposta.
Embora em menor intensidade, nas eleições municipais desse ano, não só o aborto como também os direitos dos homossexuais poderão aparecer novamente no cenário político. Em São Paulo, a polêmica em relação ao kit anti-homofobia poderá ser reavivada pelos adversários do ex-ministro Fernando Haddad, pré-candidato a prefeito da cidade. A esse respeito, o também pré-candidato Gabriel Chalita já deu uma dica, afirmando que o próximo prefeito precisará de valores cristãos para administrar a cidade. No Rio de Janeiro, o PSD, partido recentemente criado por Gilberto Kassab, já conta com um grande número de evangélicos levando à frente as bandeiras e convicções políticas de suas respectivas instituições religiosas.
O que está valendo é a política de resultados. Algo que o presidente nacional do PRB e integrante da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcos Pereira, diz ter aprendido de Lula. Certa vez, o ex-presidente Lula disse que para se liquidar um opositor, basta contar com três itens: muito dinheiro, um partido robusto e um grupo de comunicação forte. Uma receita infalível para políticos que transformam qualquer debate sério numa equação de quanto se perde ou quanto se ganha em votos.
Questão relacionada a esse debate diz respeito à presença das Igrejas no espaço público, notadamente da política. Partindo do pressuposto da autonomia entre religião e política, a questão nunca foi ou é a de que a religião deva se refugiar na sacristia. Historicamente, a Igreja católica, especificamente, mas agora também as evangélicas, sempre teve uma interface com o mundo da política. Não é isso que está em discussão. Trata-se antes de atentar para a qualidade de sua inserção, para o tipo de sociedade, como estruturas sociológicas, que defendem.
Faxina de Dilma sequer arranhou a coalizão de governo
O governo de coalizão, amplo, gelatinoso e de espectro ideológico diverso, ou sem ideologia qualquer que se encontra na base do governo Dilma é uma herança do governo Lula. Curiosamente, o PT sempre acusou o governo anterior, a Era FHC, de governar com os setores atrasados do país. É conhecida a dura crítica dos setores progressistas à aliança de FHC com o PFL – a aliança da “avenida paulista” com os “grotões”. FHC sempre justificava a aliança com o PFL com a tese da governabilidade.
A justificativa de Lula para a construção do amplo leque de partidos na base de apoio ao governo e o reavivamento de figuras que se julgavam sepultadas na política como José Sarney, Jader Barbalho, Romero Jucá, Geddel Oliveira, Collor de Mello, entre outras, é a mesma: a necessária e indispensável manutenção da governabilidade.
O fato é que os problemas enfrentados por Dilma em seu governo estão relacionados, sobretudo, a essa herança maldita deixada por Lula. Uma base frouxa, desideologizada, que dá apoio ao governo em troca de ministérios de “porteira fechada“, nomeações em estatais e emendas parlamentares.
Sintomático nessa perspectiva foi a queda dos ministros Alfredo Nascimento (PR) dos transportes, Wagner Rossi (PMDB) da agricultura, Orlando Silva (PCdoB) dos esportes e, mais recentemente, de Carlos Luppi do trabalho. Todos eles receberam o ministério de “porteira fechada”, que se transformou num instrumento dos interesses partidários e privados, muitas vezes máquinas de arrecadação para campanhas eleitorais.
O conjunto das demissões que não se restringiram aos ministros e resultaram em dezenas de outras demissões, ficou conhecido como a “faxina” de Dilma ou “faxina ética”, em função de que os demitidos, com exceção de Jobim que foi afastado por afirmações polêmicas, foram afastados por denúncias de corrupção. O fato é que nenhum partido rompeu com o governo por causa da faxina, até mesmo o PR que se colocou na posição de “independente” negocia sua volta ao governo e o recém-criado PSD já se somou à base de apoio de Dilma. O apoio desses partidos ao governo de Dilma está condicionado ao atendimento de interesses paroquiais.
Na política, Dilma está longe de repetir Lula que distribuía afagos, tapinha nas costas, churrascadas na Granja do Torto, longas conversas, acertos aqui e acolá. O governo de coalizão permanece, entretanto, intacto. A “faxina” de Dilma sequer arranhou o condomínio de poder, a coalizão de governo. Os partidos simplesmente trocam os titulares como um time de futebol substitui o jogador lesionado ou por questões táticas.
Tarso Genro, governador do Rio Grande do Sul e respeitado intelectual do PT, justifica da seguinte forma o governo de coalizão: “Os governos de coalizão presidencialista no Brasil não são novos. O novo é governantes de esquerda – o presidente Lula e a presidenta Dilma – serem obrigados, pela conjuntura política e pelo sistema legal e partidário do país, a usar esse expediente. A coalizão presidencialista é um expediente político. O que nós temos que responder, em última análise, é se ele é legítimo ou não. Não resta a menor dúvida de que é um expediente, pois essa é a única forma de governar democraticamente – portanto, de governar em maioria”.
O sociólogo Francisco de Oliveira tem outra opinião: “Todos no Brasil que preferem manter o status quo usam o argumento da governabilidade”.
É possível “gestão eficiente” num governo de coalizão?
O discurso do “governo técnico” e da “gestão” retornou com força em 2012. Após a sucessiva queda de ministros por corrupção e repercussões negativas em torno do andamento de obras como a transposição do S. Francisco, reformas em aeroportos e obras para a Copa do Mundo, a presidenta voltou a falar da eficiência na gestão.
O tema não é novo quando envolve Dilma Rousseff. A presidenta construiu uma imagem desde os tempos de ministra da Casa Civil de supervisora atenta e dura no cumprimento de metas a serem atingidas, particularmente como coordenadora do PAC. A ida da ministra Gleisi Hoffmann para a Casa Civil chegou a ser interpretada como “a Dilma da Dilma”, ou seja, uma espécie de gerente-geral dos ministérios.
Nas primeiras semanas do ano, o debate sobre o caráter técnico do governo de Dilma retornou com força, principalmente a partir de declarações de Roberto Setubal, principal executivo do Itaú, ao dizer: “Vejo na presidente uma intenção de tornar o governo mais técnico, com presença cada vez maior de técnicos em áreas importantes. Ela está tentando despolitizar áreas que exigem naturalmente uma discussão mais técnica”.
A fala do banqueiro, associada ao sistema de monitoramento de obras do governo (imagens do andamento das obras por todo o país chegam em tempo real aos gabinetes da presidente e da ministra da Casa Civil) proposto por Jorge Gerdau – coordenador do Fórum de Gestão Governamental –, reacenderam o debate sobre uma possível despolitização do governo e as armadilhas do discurso da gestão. Setores do governo identificados com o lulismo estariam se sentindo desconfortáveis com esse tipo de discurso.
Independente do perfil gerencial ou não da presidente Dilma, é inegável que a presidente tem uma concepção republicana do papel do Estado, ou seja, deseja que de fato a instituição funcione. Segundo ela, em declarações recentes para a imprensa, “a máquina administrativa tem que funcionar e devolver ao cidadão os serviços pelos quais ele paga”. Na opinião da presidenta, “isso é revolucionário”.
A questão que surge desse debate é a seguinte: é possível gestão eficiente, exigir cumprimento de metas e cobrar postura republicana à frente dos cargos do primeiro escalão num governo de coalizão eivado de figuras que se formaram politicamente em ambientes onde se pratica o patrimonialismo e o clientelismo como regras do jogo?
Em um estudo já considerado clássico da formação política do Brasil – Coronelismo, enxada e voto – fazendo referência ao traço do patrimonialismo na política brasileira, a que deu o nome de “coronelismo”, Victor Nunes Leal comenta: “o coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”. O coronelismo, tal qual interpretado na transição dos séculos XIX e XX, já não existe, mas continua presente até os dias de hoje como se vê na coalizão de governo, mesmo num governo que se arvora como sendo de esquerda.
Nota 1: Revista Ipea políticas sociais – acompanhamento e análise, 12 de fevereiro de 2006.
(Ecodebate, 29/02/2012) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
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