Sem diamantes, artigo de Montserrat Martins
[EcoDebate] “Diamantes de Sangue” mostra grupos se matando por diamantes e usando crianças armadas, em Serra Leoa, que parece distante de nós. Em Porto Alegre, adolescentes e até crianças são recrutados por gangues para se matarem por bem menos. Enfrentar essa realidade não permite ilusões de que uma instituição isolada – a FASE* ou qualquer outra – possa mudar isso, sem um projeto mais amplo de transformações sociais. Os “recrutados” são filhos de bolsões de miséria, aqui ou em Serra Leoa, e seu “resgate” requer que os benefícios da civilização alcancem suas famílias e comunidades.
Para que serve a FASE então? Tente imaginar a sociedade sem ela. Se há insuficiências como matérias recentes de mídia apontam, saiba que os presídios para adultos são infinitamente piores, degradantes ao extremo. Por outro lado, se não houvesse medida de privação da liberdade para esses jovens eles estariam soltos nas ruas e mais crimes estariam acontecendo. “Homicídios em Salvador chegam a 135 durante greve dos PMs”, foi a manchete do site da Folha de S.Paulo após 8 dias daquele movimento. Há uma analogia disso com os jovens que, após descumprirem medidas socioeducativas em meio aberto, revelam que não se afastavam do mundo do crime antes de serem internados porque achavam que “não dá nada”.
A FASE não tem o poder de magicamente “curar” jovens com problema de conduta, mas representa um limite necessário, que requer que ela exista. Pessoas esclarecidas, bem informadas, não podem pregar a ilusão de que a FASE resolva sozinha um dos mais graves problemas sociais, lhe atribuir essa responsabilidade seria ingênuo ou pior, hipócrita. O que não significa que devemos nos acomodar com as limitações da própria instituição, ao contrário, é dever de toda sociedade se mobilizar para que ela cumpra seu papel socioeducativo do melhor modo possível. Se há “cura” para os jovens? Sim, mas é a mesma “cura” que a sociedade como um todo necessita, pois sofrem, em última instância, da mesma crise de valores.
Jovens que se drogam e traficam, que roubam e matam, fazem parte da mesma sociedade com graves problemas de corrupção, elitismo, burocratismo, consumismo predatório e exclusão social. Quer dizer, os “não civilizados” padecem de males análogos ao da própria “civilização”, que está longe de cumprir suas promessas (tão longe quanto o comportamento dos seus representantes políticos em relação ao que esperavam deles os seus eleitores, na denominada “crise da democracia representativa”).
Não se trata de generalizar que “é culpa da sociedade” e deixar por isso mesmo, o que seria escapista e hipócrita, tanto quanto cobrar “curas” de uma instituição isolada na qual depositamos os jovens mais violentos dentre toda nossa população. As soluções tem de ser pensadas do mais amplo ao mais específico, o que requer iniciativas pontuais na rede socioeducativa da qual faz parte a FASE enquanto instituição que media a relação entre estes jovens e a sociedade.
Sim, é urgente que cursos profissionalizantes sejam ofertados, que as famílias sejam assistidas e orientadas no manejo com os jovens, poderíamos listar aqui uma extensa gama de medidas práticas necessárias e urgentes para possibilitar minimamente uma perspectiva de recuperação destes jovens. O paradoxo é que, embora todos critiquem, até hoje é difícil para a FASE conseguir instituições parceiras, mesmo entre Fundações de caráter social, que se disponham a oferecer oportunidades de aprendizado e prática profissionalizante para os adolescentes internados. Com o que voltamos ao tema da hipocrisia, no qual é fácil “malhar” a FASE, muito mais fácil seguramente que oferecer alternativas concretas para a população que ela atende.
Nota: *FASE – Fundação de Atendimento Sócio – Educativo. A Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul – fase-rs – é responsável pela execução das Medidas Sócio-Educativas de Internação e de Semiliberdade, determinadas pelo Poder Judiciário, a adolescentes autores de ato infracional.
Montserrat Martins, colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
EcoDebate, 10/02/2012
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