Metrópoles desgovernadas, artigo de Erminia Maricato
RESUMO
Apesar de sua importância econômica, política, social, demográfica, cultural, territorial e ambiental, há, nas metrópoles brasileiras, uma significativa falta de governo, evidenciada pelas incipientes iniciativas de cooperação administrativa intermunicipal e federativa. Este artigo aborda as mudanças estruturais – no processo de urbanização/ metropolização – devidas à reestruturação produtiva do capitalismo global, e, na escala nacional, trata da mudança no marco institucional – jurídico/político – que passou de concentrador e centralizador, durante o regime militar, para descentralizador e esvaziado, após a Constituição de 1988. O recuo verificado nas políticas sociais durante os anos 1980 e 1990, notadamente em transporte, habitação e saneamento, além do desmonte dos organismos metropolitanos, conduziu nossas metrópoles a um destino de banalização das tragédias urbanas. Em que pese sua urgência, a questão metropolitana não sensibiliza nenhuma força política ou instituição que lhe atribua lugar de destaque na agenda nacional.
Palavras-chave: Regiões metropolitanas, Metrópoles, Questão metropolitana, Colaboração governamental, Desgoverno.
ABSTRACT
Despite its economic, political, social, demographic, cultural, territorial and environmental importance, there is a significant lack of government in the brazilian metropolises, evidenced by the incipient initiatives of intermunicipal and federative administrative cooperation. This article analyses the structural changes – in the process of urbanization/metropolization – due to the productive restructuring of global capitalism, and, in a national scale, analyses the change in the institutional mark – legal/political – which passed from concentrator and centralizer, during the Military Regimen, to decentralized and emptied, after 1988 Constitution. The downturn verified in social policies during the years 1980 and 1990, notably in transport, housing and sanitation, besides the dismantling of the metropolitan agencies, has led our cities to the trivialization of urban tragedies. Despite its urgency, the metropolitan issue does not sensitize any political force or institution which assigns it a prominent place on the national agenda.
Keywords: Metropolitan areas, Metropolises, Metropolitan issue, Government collaboration, Misrule.
Introdução
O gigantismo que marca as metrópoles dos países capitalistas não desenvolvidos inspirou teorias que, ao tentarem explicar as especificidades desse processo, lançaram mão de conceitos como “inchamento”, “macrocefalia”, “desequilíbrio”, utilizando, como é mais comum na produção acadêmica, a comparação com a situação apresentada pela rede de cidades dos países capitalistas centrais. Nos anos 1970, uma coletânea de textos organizada por Manuel Castells – que levava o título de Imperialismo y urbanización en America Latina – reunia autores latino-americanos, além do organizador, espanhol, para pensar as características desse processo de urbanização. Esse esforço seguia o caminho aberto pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que buscava pensar as condições do subdesenvolvimento no subcontinente e as formas de superá-las.1 Uma das questões centrais do livro se refere à diferença entre a importância do setor industrial e do setor “serviços” nas metrópoles dos dois conjuntos de países, centrais e latino-americanos. Segundo alguns dos intérpretes, nas metrópoles da América Latina, o setor “serviço” absorvia (ou nele se depositava) uma força de trabalho muito maior, sendo, por isso, caracterizado de inchado e relacionado às atividades marginais ou atrasadas, desvinculadas do núcleo hegemônico que, nesse período, passava a ser liderado por capitais internacionais produtores de bens de consumo durável (cf. Arantes, 2009).
Contrapondo-se a uma visão dualista e esquemática desse processo de urbanização concentrado, um bem-sucedido esforço intelectual, do qual participaram inúmeros pesquisadores brasileiros, logrou avançar na explicação que contemplasse a totalidade do processo social, econômico, político e cultural, como uma unidade contraditória, que seria produto de um processo “desigual e combinado”, ou do “desenvolvimento moderno do atraso” ou ainda da “modernização conservadora”. Baseados nos principais intérpretes da sociedade brasileira – Caio Prado, Sergio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Celso Furtado, Francisco de Oliveira, Roberto Schwarz, Florestan Fernandes, entre outros -, urbanistas, geógrafos, sociólogos, advogados, engenheiros, engajados na transformação do ambiente construído, incorporaram o território a essa abordagem, analisando a produção da cidade e, em especial, a funcionalidade da cidade informal, ilegal ou periférica para o processo de acumulação de capital nos países não hegemônicos. A questão da renda imobiliária, que é central nos processos gerais de urbanização capitalista, ganha aspectos particulares e uma centralidade absoluta no universo periférico (Maricato, 2011). O patrimonialismo, a privatização da esfera pública, o clientelismo e a política do favor, além da herança escravocrata, do desprestígio do trabalho e da incorporação de avanços sem o abandono das formas atrasadas, ainda estão na base da metrópole brasileira que passa por transformações significativas – a partir das mudanças que levaram o país a se tornar um player de importância internacional -, mas sem modificar suas características de desigualdade profunda, como veremos adiante.
A tarefa de elaborar uma teoria da urbanização na periferia do capitalismo está longe de apresentar resultado satisfatório, e a prova disso são os indefectíveis e onipresentes modelos de projetos urbanísticos e arquitetônicos buscados no exterior por qualquer governante de plantão ou pela mídia local, fortemente submetidos ao mimetismo cultural. Mas é preciso reconhecer que a academia fez avanços contra a corrente e que a formação do pensamento crítico sobre a cidade periférica acumulou uma certa produção intelectual vinculada a um engajamento na busca por alternativas de políticas públicas.2
A aceleração e a concentração da urbanização em algumas grandes aglomerações, que não se restringiram à América Latina, eram um fenômeno mundial que se aprofundaria nas décadas seguintes. Dentre as 49 maiores cidades do mundo em 1890, 42 estavam no chamado Primeiro Mundo, enquanto sete estavam no Terceiro Mundo. Dentre as 50 maiores cidades do mundo no ano 2000, 11 estavam no Primeiro Mundo e as demais, no mundo não desenvolvido ou emergente. Essa tendência se acentua, especialmente com a urbanização tardia de países da Ásia e da África, notadamente China e Índia. Em 2025 estima-se que a Ásia poderá ter de 10 a 11 cidades com mais de 20 milhões de habitantes (Davis, 2006).
Ainda que a pobreza medida por indicadores nacionais diminua com a urbanização, de um modo geral, o número absoluto de moradores de favelas cresce mais do que o crescimento da população urbana (Un-Habitat, 2010). A concentração de pobres em gigantescas favelas – que contam com domicílios congestionados e insalubres, sem água potável, sem esgotos, sem coleta de lixo -, com baixa taxa de emprego, com elevados índices de violência, apresenta um aspecto qualitativo que a difere da dispersa pobreza rural. São verdadeiras bombas socioecológicas. Em 2005 havia pelo menos 13 favelas com mais de um milhão de habitantes em cidades do mundo não desenvolvido (ibidem).
O contraponto à urbanização da pobreza – periferização ou favelização – está na chamada urbanização dispersa (urban sprawl), responsável pela formação dos característicos subúrbios americanos, que podem ser vistos também nas cidades dos países da periferia do capitalismo, dividindo o entorno das cidades regiões com a ocupação irregular de baixa renda. O impacto da globalização nas cidades de todo o mundo – em decorrência da “nova pobreza” e, por que não, da nova riqueza – foi responsável por algumas mudanças no caráter da segregação com a ocorrência das gated communities, guetos, cidadelas, condomínios fechados (Marcuse, 1997; Matos, 2004; Ribeiro, 2004; Cáceres & Sabatini, 2004; Cobos & López, 2007; Reis Filho & Tanaka, 2007).
Com a reestruturação produtiva do capitalismo, que tem início nos anos 1970, há mudanças nos processos de produção do ambiente construído (Harvey, 1992; Benko & Lipietz, 1992; Diniz, 1993; Cano, 1995; Brandão, 2007; Moura, 2010). Metropolização expandida, fragmentação, dispersão, cidades regiões, corredores urbanos, urbanização do arquipélago, espaços “pós-urbanos” são conceitos que tentam definir a ampliação da ocupação urbana no território (Un-Habitat, 2010; Ribeiro, 2004; Veltz, 1996). Alguns estudos buscam evidenciar um novo papel para as metrópoles no mundo globalizado, dominado pela financeirização e pelas novas tecnologias de informação e comunicação: cidades globais, metápoles, cidades informacionais (Sassen, 1998; Ascher, 1995; Castells, 1999). Há mudanças nas relações intraurbanas, especialmente nas articulações do mercado imobiliário com a esfera financeira, fenômeno mais característico dos países centrais, que serviu para detonar a crise mundial de 2008 (Harvey, 2005).
Essas teorias que, seguindo tradição histórica de subordinação cultural, influem na produção acadêmica sobre as cidades na periferia do capitalismo não resistem à observação empírica e exigem maior precaução em sua aplicação. A urbanização da humanidade, prevista por Henri Lefèbvre em seu livro A revolução urbana, lançado em 1970, não admite mais ver o urbano como um “lugar relativamente limitado e distinto”, pois, diante das circunstâncias, trata-se de uma “condição planetária generalizada”, que está a exigir uma revisão teórica (apud Brenner, 2010, p.26). No entanto, embora haja evidências de mudanças nas cidades e metrópoles da periferia do capitalismo, também não se pode dizer que elas são estruturais ou profundas, ainda que o capitalismo global e brasileiro apresente mudanças significativas (Ferreira, 2007; Moura, 2010; Holanda, 2010). Novas estratégias de localização e logística, atividades industriais inovadoras, ampliação dos serviços relacionados à comunicação, finanças e educação, arranjos urbanos regionais ligados à produção e exportação de commodities são algumas das características que favorecem as “regiões ganhadoras” no conceito de Benko & Lipietz (1992). As mudanças – que Diniz (2001) chamou de “desconcentração concentrada” – não evitaram o aprofundamento da concentração e o crescimento das desigualdades e disparidades regionais.
As transformações capitalistas, que se combinaram às décadas orientadas pelo pensamento neoliberal (no Brasil, em 1980, 1990 e 2000) tiveram forte impacto sobre as cidades. A desregulamentação – do que já não era muito regulamentado, como o mercado imobiliário -, o desemprego, a competitividade, a guerra fiscal, o abandono de políticas sociais, como o transporte coletivo, as privatizações de serviços públicos, o planejamento estratégico, o marketing urbano, entre outros, se combinaram a uma tradição histórica de falta de controle sobre o uso do solo e de segregação territorial e urbana. A desigualdade continua a reinar soberana embasada num padrão ambíguo de aplicação das leis relativas à propriedade fundiária – em que pese o novo arcabouço legal federal – e de investimentos, ambos profundamente regressivos nos seus aspectos sociais e orientados por interesses do capital de incorporação, no caso dos edifícios, e do capital de construção pesada, no caso da infraestrutura urbana, cuja prioridade absoluta é a matriz rodoviarista e mais exatamente o automóvel.
A violência nas metrópoles se consolida no período aludido de forma inédita, evidenciada pelo aumento da taxa de homicídios, que mostra tendência a reversão – ainda que cercada de controvérsia – apenas no final da primeira década do século XXI. Tragédias causadas por enchentes e desmoronamentos se banalizam e tornam-se mais frequentes a cada ano (Saldiva et al., 2010). A ocupação irregular de beira de córregos, encostas instáveis desmatadas, mangues, dunas, áreas de proteção de mananciais testemunha o abandono de uma grande parcela da população ao seu próprio engenho e recursos precários.
O Brasil tinha, em 2010, cerca de 14 metrópoles com mais de um milhão de habitantes, e São Paulo tinha mais de 19 milhões e Rio de Janeiro, mais de 11 milhões. E ainda, 80% dos brasileiros, moradores de favelas, estão nas metrópoles, segundo o IBGE (2000). A coleta e a destinação de resíduos sólidos mostram-se pífias se levarmos em conta o cenário de poluição das águas e dos terrenos. O serviço de coleta de esgoto deixa muito a desejar no país – atende 52,2% dos municípios e 33,5% dos domicílios, segundo o IBGE (2000) – e algumas das epidemias já erradicadas voltaram a se consolidar (Saldiva et al., 2010). O padrão de investimentos em obras metropolitanas mostra a falta de integração entre as ações de cada município que compõem as metrópoles, e alguns governos estaduais apresentam apenas planos metropolitanos setoriais e, mesmo assim, raramente são implementados. Não é raro a orientação urbanística de um município prejudicar os demais. Macrodrenagem, coleta e distribuição de água tratada, transporte de cargas e passageiros, coleta e tratamento de esgoto, habitação, uso e ocupação do solo são temas que exigem um tratamento integrado na metrópole. Apesar desse quadro, a questão metropolitana está numa espécie de “limbo” no Brasil. Não há integração administrativa e, o que é pior, parece que ninguém se interessa pelo assunto.
Regiões Metropolitanas: da centralização autoritária do regime militar à descentralização liberal da constituição federal de 1988
Existe praticamente um consenso entre estudiosos, técnicos e profissionais, sobre a precariedade do quadro legal de Regiões Metropolitanas (RM) no Brasil, que advém da diversidade de critérios – convencionados em cada Estado da federação, após a Constituição Federal de 1988 – para a definição dessas regiões. Se durante o período ditatorial essa definição foi feita de forma autoritária por imposição de lei federal (Lei Complementar n.14), que seguiu a Constituição de 1967, com a Constituição de 1988 a prerrogativa passa para o âmbito das diversas Constituições Estaduais. As 35 Regiões Metropolitanas definidas legalmente em 2010, às quais se somam três Regiões Integradas de Desenvolvimento Econômico (Rides) que abrangem mais de um Estado, constituem um conjunto heterogêneo dentro do qual figuram aglomerações urbanas com importância demográfica, econômica, social e política bastante diferenciada.
A Constituição de 1988 seguiu orientação democrática e descentralizadora – afirmando a autonomia municipal, especialmente em relação ao desenvolvimento urbano – como resposta para o descontentamento que gerou a forma autoritária de impor as RM, adotadas pelo regime militar. Mas o fato é que nenhuma das duas formas nos conduziu a resultados satisfatórios, embora essa dificuldade se localize mais na esfera da política ou das relações de poder que propriamente na falta de aperfeiçoamento do aparato legal. Durante os anos 1970, o governo federal definiu nove RM, cuja gestão ficou a cargo de um Conselho Deliberativo, formado majoritariamente por representantes indicados pelos governos federal e estadual (cujos governadores eram indicados pelo governo federal). Os prefeitos que faziam parte das RM podiam eleger, para compor esse Conselho, apenas um representante ou compor o Conselho Consultivo, também instituído pela mesma lei. Essa iniciativa, apesar de antidemocrática, formou alguns dos mais importantes organismos de planejamento metropolitano devido, em grande parte, à existência de fundos destinados a obras de habitação e infraestrutura urbana (Klink, 2009).
Vamos lembrar como o Estado brasileiro tratou a questão metropolitana durante o regime autoritário até para entender por que ela foi tão minimizada na Constituição de 1988 e no Estatuto da Cidade de 2001.
O II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) de 1974 instituiu a criação do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, gestor do Fundo de Financiamento ao Planejamento. Esses organismos foram sucedidos pela Comissão de Política Urbana e Regiões Metropolitanas, administradora do Fundo de Desenvolvimento Urbano e do Fundo de Transporte Urbano, mais tarde transferido para a Empresa Brasileira de Transporte Urbano. Os metrôs de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, tiveram origem nesse período. O Planejamento Urbano ganhou muito prestígio e os Planos Diretores se multiplicaram, fomentados por incentivos do governo federal, assim como se multiplicaram estudos sobre a rede urbana brasileira e sobre a necessidade do papel forte do governo federal na orientação do processo de urbanização, como mostra trabalho pioneiro do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 1974) sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano.3
Apesar da produção significativa de Planos Nacionais, Metropolitanos e Municipais, bem como do arcabouço institucional criado pelo governo ditatorial, o destino das cidades pouco se alterou. Ainda assim, a atuação do Estado nesse período mostrou-se mais efetiva do que nas décadas seguintes, marcadas pela desregulamentação das políticas públicas e pelo recuo nos investimentos públicos. O Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e seu gestor, o Banco Nacional da Habitação (BNH), foram, na verdade, os organismos que mais impactaram o crescimento e o padrão de urbanização brasileira, disseminando o apartamento de classe média, fortalecendo os negócios de incorporação imobiliária e a indústria da construção. Com a habitação social localizada fora do tecido urbano, de um modo geral, o BNH e seu sistema financeiro não só contribuíram para segregar as camadas sociais de menor renda, como impediram o mercado de terras urbanas, potencializado pelos recursos do financiamento residencial oriundos da poupança privada (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE) e da poupança compulsória (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS), de operar de forma sustentável. Como órgão central de investimento habitacional e urbano, o BNH, em geral, não seguia o planejamento urbano financiado pelo próprio governo federal.
Mas é preciso reconhecer que o saneamento, a habitação e o transporte urbano nunca recuperaram o patamar de investimento dos anos 1970 até a data em que este texto é escrito. A Política Nacional de Saneamento foi orientada pelo Plano Nacional do Saneamento (Planasa) e sustentada pelo Sistema Financeiro do Saneamento (SFS), cuja principal fonte era o FGTS. O regime militar conduziu a concentração dos serviços de água e esgotos nas empresas estaduais, induzindo a formação de empresas públicas fortes e enfraquecendo a autonomia municipal. Empréstimos federais foram usados de forma até coercitiva para quebrar a resistência de municípios à entrega da concessão dos serviços para as empresas estaduais (Maricato, 1984). A extensão da rede de água tratada nas periferias metropolitanas promovida pelo Planasa logrou acelerar a tendência de queda da mortalidade infantil, mostrando que em parcelas das políticas públicas algum planejamento foi elaborado e aplicado – ainda que de forma autoritária -, o que não é comum na história do Brasil urbano. Faziam parte do SFH e do SFS os agentes da política habitacional, as Companhias Habitacionais (Cohab) e as empresas ou autarquias, agentes responsáveis pela implementação da política de saneamento. O papel desses agentes era definido centralmente pelo governo federal. Portanto, tratava-se de uma estrutura concentrada e centralizada, que operava segundo regras definidas pelo governo federal. Até mesmo o desenho de conjuntos habitacionais era repetido em diferentes regiões do país, independentemente do clima e da cultura local (Maricato, 1984).
Em que pese a concentração da renda promovida pelo governo ditatorial, as periferias metropolitanas continuavam a constituir um espaço de oportunidades de assentamento para as massas que migravam para as cidades, já que o significativo crescimento econômico assegurava oportunidades de trabalho formal ou informal. Durante mais de quatro décadas de industrialização tardia – de 1940 a 1980 -, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu mais de 7% ao ano. Ao mesmo tempo, o país viveu altas taxas de urbanização, concentrada especialmente nas metrópoles, que asseguraram oferta abundante de força de trabalho barata. À industrialização com baixos salários correspondeu a urbanização dos baixos salários: autoconstrução da casa, ocupação irregular da terra, extensão horizontal de bairros sem urbanização cuja ocupação era viabilizada pelo precário transporte sobre rodas, indispensável para transportar a força de trabalho.
No início dos anos 1980, os investimentos em obras de habitação e saneamento, bem como em obras de infraestrutura urbana, tiveram uma queda abrupta em razão da crise fiscal. As políticas públicas de transporte, saneamento e habitação seguiram um rumo errático a partir de então. No governo Collor, as empresas de saneamento entraram em declínio por falta de recursos financeiros e, mais tarde (por ocasião do acordo do governo federal com Fundo Monetário Internacional (FMI) em 1998), foram orientadas para a privatização.4 A Resolução n. 2.521 do Conselho Monetário Nacional subordinou os empréstimos do FGTS para a área do saneamento à orientação do Ministério da Fazenda. Empréstimos seriam feitos apenas com a contrapartida da privatização dos serviços. Uma tentativa de constituir um marco regulatório para o setor foi a Lei Federal n.199, acordada pelas entidades envolvidas com o assunto, mas vetada na íntegra pelo presidente da República Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 1997. A “queda de braço” que opunha interesses pró e contra a privatização do setor do saneamento impediu que se aprovasse um novo marco regulatório – o que aconteceu finalmente em 2007 – e essa área tão fundamental para a saúde, para o meio ambiente, para a economia, ficou indefinida por mais de duas décadas.
No início de 2003, apenas seis dentre as 27 companhias estaduais de saneamento não estavam falidas ou extintas: SP, PR, DF, MG, ES e CE. O mesmo destino tiveram as Cohab, que foram orientadas para extinção durante o governo de FHC. A política dos transportes urbanos seguiu a mesma via-crúcis com o agravante de que não foram retomados os investimentos na mesma medida que no saneamento e na habitação, com a criação do Ministério das Cidades em 2003. O governo Collor extinguiu a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU), esvaziando as ações federais sobre o assunto. Outros organismos com a mesma atribuição foram criados e esvaziados enquanto o setor entrava em crise, evidenciada pelo aumento da proporção da renda familiar destinada ao transporte nas cidades brasileiras e pela queda no número de usuários nos veículos coletivos.5
Apesar de apresentar uma das maiores taxas de urbanização do mundo – 84% em 2005, segundo o IBGE -, o Estado brasileiro praticamente ignorou a política urbana e metropolitana, desde o declínio do BNH na década de 1980 até a criação do Ministério das Cidades em 2003. Se com o BNH havia muita construção que não seguia qualquer planejamento urbano explícito, com o Ministério das Cidades não podemos dizer que essa orientação mudou e que a tragédia urbana brasileira esteja sendo enfrentada (Maricato, 2011).6
Regiões Metropolitanas e metrópoles em 2010: mudanças e permanências
A partir da Constituição Federal de 1988, os Estados passaram a definir, com seus próprios critérios, as RM e Rides. Em 2010, eram 38 aglomerações compostas por 444 municípios, envolvendo 21 Estados, além do DF. São elas: Belém (PA), Macapá (AP), Manaus (AM), Aracaju (SE), Agreste (AL), Cariri (CE), Fortaleza (CE), Grande São Luís (MA), João Pessoa (PB), Maceió (AL), Natal (RN), Recife (PE), Ride Petrolina /Juazeiro (BA/PE), Ride Teresina/Timon (PI/MA), Salvador (BA), Sudoeste Maranhense (MA), Baixada Santista (SP), Belo Horizonte (MG), Campinas (SP), Grande Vitória (ES), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Vale do Aço (MG), Carbonífera (SC), Chapecó (SC), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), Foz do Rio Itajaí (SC), Lages (SC), Londrina (PR), Maringá (PR), Norte/nordeste Catarinense (SC), Porto Alegre (RS), Tubarão (SC), Vale do Itajaí (SC), Goiânia (GO), Ride DF (DF, GO e MG), Vale do Rio Cuiabá (MT). (Observatório das Metrópoles, 2010). Dificilmente uma política pública para as RM poderia ter uma formulação satisfatória se considerarmos a discrepância existente entre essas aglomerações definidas oficialmente a partir de critérios tão díspares.
Na busca de um conceito mais homogêneo que desse conta de fornecer um quadro mais coerente, o Observatório das Metrópoles (2004, 2010) elaborou, em 2004, um estudo, a pedido do Ministério das Cidades, com a finalidade de contribuir para a definição de uma política para as RM. Partindo de critérios relacionados à integração entre os municípios das RM, foram definidos 15 aglomerados considerados metrópoles por essa metodologia. São elas:
Algumas mudanças observadas no processo de urbanização no Brasil, a partir dos anos 1980, alimentam uma reflexão sobre as transformações que estariam ocorrendo nas metrópoles e seu papel na sociedade brasileira (Carvalho et al., 2010; Observatório das Metrópoles, 2010). São elas: a) as cidades de porte médio, cuja população está entre 100 mil e 500 mil, e as cidades com população acima dessa faixa passaram a crescer a taxas mais altas do que as metrópoles ou do que a média nacional; b) por sua vez, após séculos de concentração do crescimento urbano nas faixas litorâneas, nota-se também, nesse período, uma relativa reorientação do processo de migração/urbanização, e as mais altas taxas se apresentam nas cidades do Norte e do Centro-Oeste – o esvaziamento econômico e demográfico das metrópoles e até mesmo a possibilidade de um fenômeno de desmetropolização são mencionados -; c) algumas evidências apontam para a emigração nos núcleos metropolitanos em favor de municípios da própria periferia da metrópole; d) a Região Sudeste perde posição em relação ao Valor da Transformação Industrial (VTI) no país – de 80,7% em 1970, para 61,8% em 2005 – e isso impacta especialmente a principal metrópole paulista, cujo VTI cai de 43,5% em 1970 para 22,0% em 2005, enquanto todas as demais regiões do país são ganhadoras. O mesmo acontece com o emprego formal.7
Embora reconheça essas mudanças – algumas das quais se devem às transformações ocorridas no capitalismo brasileiro que impactam a maior parte do território, além das metrópoles -, o Observatório das Metrópoles reafirma a concentração do poder nos centros mencionados. A consideração da complexidade do conjunto da rede urbana brasileira – o que pode incluir as polarizações das metrópoles sobre as cidades médias – e dos Censos de 1991, 2000 e 2010 mostra que as 15 metrópoles citadas estão ampliando sua participação no total da população brasileira, embora algumas delas apresentem perda relativa de participação na população total, como é o caso de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife (Observatório das Metrópoles, 2010). Em 2010, elas concentravam pouco mais de 69 milhões de pessoas, o que representava 36,2% da população total (em 1991, 34,9% e em 2000, 36,0%) e 56,5% da população urbana. E ainda, eram responsáveis por 50,3% do PIB brasileiro e 55% do valor da transformação industrial.
Algumas tentativas de cooperação administrativa nas metrópoles: um quadro incipiente
No bojo da luta social que se opôs ao regime de exceção e conquistou as instituições democráticas, construiu-se uma proposta para as cidades, reunida em uma agenda que ficou conhecida como Reforma Urbana. A promulgação do Estatuto da Cidade, Lei Federal n.10.257, talvez tenha sido o ponto alto das conquistas desse movimento social. Como já foi mencionado, as metrópoles não mereceram maior atenção ou detalhamento no texto constitucional e nem no Estatuto da Cidade, em razão da pesada herança centralizadora que impactava negativamente o debate. No entanto, as forças sociais mobilizadas durante esse ascenso da participação política, especialmente nos anos 1980 e 1990, buscaram abrir caminhos cooperativos nos cotidianos dos governos. Diversas ações que tiveram destaque nesse período assumiram a forma de consórcios – entidades que se organizaram voluntariamente para dar solução a problemas comuns, como a gestão de recursos hídricos, a destinação final de resíduos sólidos, o enfrentamento do desemprego e da evasão industrial, entre muitos temas.
Merece destaque o Consórcio da Região do Grande ABC, que, durante os anos 1990, reuniu sete prefeitos daquela região da metrópole paulista. O consórcio chegou a contar com uma estrutura administrativa relativamente complexa para lidar com temáticas específicas e gerais, e conseguiu, durante uma parte do tempo, incorporar os representantes das entidades sindicais, empresariais, lideranças sociais, além de representantes do governo do Estado (Rolnik & Somekh, 2004). O bem-sucedido Consórcio da Região do Grande ABC parecia não carecer de base legal e institucional, embora a falta de um desenho jurídico claro para esse tipo de colaboração fosse apontada como obstáculo para sua consolidação, e acabou inspirando a aprovação de uma Lei Federal, em 2005, a Lei dos Consórcios Públicos. Quando o debate das Parcerias Público-Privadas (PPP), oriundas do modelo neoliberal, ainda dominava a agenda nacional, foi elaborada por iniciativa da Secretaria de Assuntos Institucionais da Presidência da República, que reunia alguns dos antigos participantes de consórcios públicos, uma lei que logrou ser aprovada no Congresso Nacional com a finalidade de fornecer base jurídica para os consórcios públicos. Mas, a partir de meados de 2005, a agenda da Reforma Urbana e o ativismo político que a acompanhou começaram a perder importância política (Maricato, 2011), e as experiências dos consórcios, embora numerosas, não apresentaram muitos casos que extrapolassem as políticas setoriais (Spink et al., 2009).
Com relação à institucionalização de entidades administrativas metropolitanas, como na maior parte dos casos que são criadas e implementadas o são de cima para baixo, o quadro não é melhor; ao contrário. Após 30 anos da criação das RM, apenas sete apresentam a “existência de estruturas específicas, institucionalizadas e atuantes de gestão metropolitana que estão desenvolvendo algum tipo de políticas públicas” (ibidem, p.463). Em geral, o formato utilizado é o de criar os órgãos: Agência de Desenvolvimento, Fundo Metropolitano e Conselho de Desenvolvimento. As RM que fazem parte desse quadro são: Baixada Santista, Campinas, Recife, Belo Horizonte, Grande Vitória, João Pessoa, além de uma interrompida experiência em Natal. Nenhuma delas apresenta uma satisfatória experiência de integração administrativa, especialmente se considerarmos o tema central de controle sobre o uso e ocupação do solo que está relacionado aos grandes problemas vividos pelas metrópoles: sociais, ambientais, de saneamento, de transportes, de drenagem, de saúde e de segurança.
Governabilidade das metrópoles: a urgência social, econômica e ambiental e sua desimportância política
Christian Lefèvre (2009) chama atenção para o paradoxo constituído pela importância crescente das metrópoles no mundo todo e o seu esvaziamento como território da política, evidenciado pelo fracasso da criação das instituições metropolitanas. Portanto, não se trata de um fenômeno brasileiro, mas mundial, como revela o autor com exemplos de várias partes do mundo, notadamente dos países centrais do capitalismo. A rivalidade dos Estados Nacionais, com a possível importância de autoridades metropolitanas e o prestígio da democracia local ou das comunas são apontados pelo autor como fatores de deslegitimação das metrópoles.
No Brasil, a tradição municipalista de raízes coloniais, recuperada pela Constituição de 1988, reafirmada pelas políticas paroquiais e clientelistas exercidas pelos executivos e legislativos, reforça esse localismo que foi incentivado ainda durante os anos 1990, pelo Banco Mundial e congêneres (Vainer, 2000). Governos estaduais e federal preferem não romper com as políticas paroquiais: em vez da racionalização dos investimentos baseados em planejamento territorial, as negociações de apoio político orientam os recursos a determinados municípios e não a outros. Há programas que priorizam os investimentos em RM como é o caso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), na área da habitação e do saneamento. Há programas estaduais na área do transporte metropolitano, mas eles permanecem setoriais e obedecem a investimentos esporádicos.
Ao complexo desenho federativo das competências relativas ao desenvolvimento urbano e metropolitano, que implicaria cooperações federal, estaduais e municipais, soma-se a inexistência de fontes perenes de investimento metropolitano. Aí está a impressionante condição dos transportes coletivos desprezados em razão da prioridade dada ao automóvel e às obras viárias (Maricato, 2011).
Outros fatores também contribuem para inviabilizar a cooperação administrativa nas metrópoles. A existência de polos com significativa disparidade econômica, política e cultural também funciona como obstáculo para essa integração, na medida em que municípios com maior arrecadação pouco se interessam pela redistribuição de parte de sua receita. Enfim, essa lista poderia ir longe para mostrar que, apesar da urgência, nenhuma força política que tenha presença importante na cena brasileira está interessada em mudar o rumo das metrópoles. A questão está no limbo.
Notas
1 Dentre os autores brasileiros que figuram no livro organizado por Manuel Castells estão Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso, Lucio Kowarick, Cândido Ferreira de Camargo e Milton Santos. Dentre os estrangeiros que alimentaram a controversa está Aníbal Quijano, além do próprio Castells.
2 Ver a respeito o capítulo “Formação e impasse do pensamento crítico sobre a cidade periférica” em Maricato (2011). O texto chama a atenção para o avanço nos estudos e na prática de parcela das prefeituras municipais e também para seu impasse, a partir de meados dos anos 2000.
3 Esse estudo do Ipea, que propõe uma política pública sob o título Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, faz parte de uma certa tradição de olhar a rede urbana brasileira. Ele foi sucedido pelo documento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU), Evolução da Rede Urbana no Brasil 1970-1980 de 1985; pelo trabalho realizado por Ipea-Nesur/Unicamp-IBGE, Tendências e perspectivas da rede urbana do Brasil de 1999; pelo A nova geografia econômica do Brasil: uma proposta de regionalização com base nos polos econômicos e suas áreas de influência, Cedeplar/UFMG, 2000. Em 2004, o MCidades contratou vários estudos com a finalidade elaborar a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) e a Política Nacional para Regiões Metropolitanas. Eles estão reunidos em MCidades, 2005 e MCidades/Fase/Observatório das Metrópoles, 2005 (versão digital). Outras edições parciais ou complementadas desse material foram feitas pelo Ministério das Cidades em 2008 (Cunha & Pedreira, 2008) e pelo Observatório das Metrópoles/CNPq (2009) – Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro (Org.) Hierarquização e identidade dos espaços urbanos. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2009. Ver especialmente o primeiro e o segundo volumes organizados por Rosa Moura e outros e Jean Bitoun e outros. Com a saída de Olívio Dutra do MCidades, a elaboração dessas políticas nacionais – urbana e metropolitana – foi paralisada.
4 Sobre a determinação de centralização dos serviços de saneamento nas mãos de companhias estaduais, ver tese de doutoramento apresentada à FAUUSP (Maricato, 1984). Sobre a pressão governamental, nos anos 1990, para privatização, ver: “A crise do setor de saneamento no Brasil. Oficina de Informações”. Reportagem, edição especial, Osasco, ano 2, n.15, nov. 2000.
5 Ver a respeito pesquisa IBGE/CNTU para período 1995/2002.
6 Uma análise da política urbana institucionalizada pelo governo FHC pode ser encontrada em Maricato (2003). Para um balanço da política urbana e habitacional do período citado, ver Azevedo & Mares Guia (2007).
7 Conforme apresentação “Globalização e território: leitura a partir do Brasil” proferida pela Profa. Tânia Bacelar na Câmara Municipal de São Paulo, em maio 2008.
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Erminia Maricato é professora titular em Planejamento Urbano da USP, membro dos conselhos editoriais das revistas Justice spatiale/ Spatial Justice, Université de Nanterre; Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (Anpur); Cadernos da Metrópole; Observatório das Metrópoles/Educ/Ippur UFRJ; Revista Urbe– PUCPR; e Key Speaker, do Social Architecture Fórum. Ankara, Turquia, 2010. @ – erminia@usp.br
- Estudos Avançados
- versão impressa ISSN 0103-4014
- Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011
- http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142011000100002
EcoDebate, 10/02/2012
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