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Artigo

Rio+20: cenário geoeconômico e tendências, artigo de Israel Souza

 

Israel Souza[1]

            A Rio+20. Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável se aproxima, atraindo atenções, suscitando esperanças e críticas. Mas o que podemos esperar da Cúpula das Nações Unidas que há de girar em torno da “economia verde”? Procuramos responder a essa pergunta em três momentos. No primeiro (que corresponde ao presente texto), olhamos o cenário geoeconômico-mundial que serve de quadro à Cúpula, destacando tendências e o papel que a China e os governos progressistas na América Latina aí desempenham. À liderança brasileira será dedicado o segundo texto: IIRSA e o “subimperialismo” brasileiro. No terceiro momento (“Economia verde”: uma (in)verdade conveniente), passamos em revista algumas experiências tidas como referência no campo do “desenvolvimento sustentável” e da “economia verde”.

 

Com isso, procuramos mostrar obstáculos postos à construção de uma economia alternativa, que possa significar um “mundo mais sustentável, seguro e justo (Rumo à uma Economia Verde: Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável e a Erradicação da Pobreza – Uma Síntese para Tomadores de Decisão). De igual modo, procuramos mostrar também que as “experiências verdes” não são apenas irrisórias para produzir mudanças substantivas, mas que, abrindo novos mercados para a acumulação ampliada do capital, se conjugam com a “economia marrom” de sempre e são usadas no sentido de encobri-la e legitimá-la.

 

A geoeconomia mundial, a China e a América Latina

 

            O atual cenário geoeconômico é marcado por um misto de crise, conflitos e esperanças. O que se convencionou chamar “primavera árabe” sacode o Oriente Médio e o Norte da África. Nos EUA e na Europa, a crise se faz acompanhar por movimentos que, embora tenham aí suas raízes, começam a ganhar o mundo, como Ocupe Wall Street e os indignados.

 

De outra banda, os BRICs[2] vão crescendo em força política e econômica. Tomando o segundo lugar do Japão na economia mundial, a China vai se afirmando como grande potência. Seu ascenso é visto por alguns como uma possibilidade de superar, a um só tempo, os EUA e o sistema capitalista. Entre estes, destacam-se Giovanni Arrighi, André Gunder Frank, Wallerstein e, mais próximos de nós, Carlos Eduardo Martins. Grande investidora em mecanismos da “economia verde”, a China é vista também como promotora de uma economia que respeita o meio ambiente (ver Villamar, 2011: 14-19). Como o primeiro, este ponto é, no mínimo, controverso.

 

            Como Harvey (O enigma do capital e as crises capitalistas) argumentou recentemente, “setenta por cento da atividade econômica dos EUA dependem do consumismo” (HARVEY, 2011: 92), isto é, de um tipo de consumo ambientalmente destrutivo. É assaz conhecido o fato de a China ser um dos grandes financiadores da potência do Norte. Dentre outras coisas, tal investimento se justifica no fato de que esse mercado é extremamente importante para seus produtos.

 

           A china vai solidificando sua presença no Oriente Médio, mantendo relações com Paquistão e Irã, procurando garantir seu suprimento de petróleo. Sua demanda na economia mundial atuou como importante fator de sustentação da arquitetura macroeconômica latinoamericana, contribuindo para o estabelecimento de uma conjuntura de expansão econômica. Martins (Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina) lembra que, entre 2000 e 2010, o volume do comércio entre China e América Latina cresceu mais de dez vezes (MARTINS, 2011: 314; 320). Mas como destacou recente relatório da CEPAL (La República Popular China y América Latina y el Caribe: hacia una nueva fase en el vínculo económico y comercial), “90 por cento das importações da China à América Latina correspondem a matérias-primas”.

 

Num cenário de reprimarização da economia latinoamericana, as relações comerciais do gigante asiático com a região visam, preponderantemente, a riquezas naturais. Trazendo os produtos primários de volta ao primeiro plano na economia da região, isso aumentou ainda mais a pressão para explorar os bens naturais. Assim, a relação com a China segue aprofundando tendências suscitadas no neoliberalismo, propiciando uma espécie de volta ao paradigma ricardiano das “vantagens comparativas”. Perversos são os impactos que daí derivam para a natureza.

 

Não por acaso, “A proporção de bosques na superfície da América latina caiu de 51,9% a 47,2% entre 1990 a 2010 e no Brasil de 69% a 62,4%”. Para Martins, grande responsável por parte desse processo de desflorestamento é a expansão da cultura da soja, “que passou a ocupar 35% das terras aráveis das terras brasileiras e 52% das argentinas em 2008, frente aos 22% e 18,5% que ocupava, respectivamente, em 1990” (MARTINS, 2011: 340).

 

Hoje, o saldo comercial brasileiro depende inteiramente do obtido pelo agronegócio. Entre 2000 e 2009, este saltou de US$ 20,3 bilhões para US$ 54,9 bilhões (MARTINS, 2011: 340). Desse modo, além da força política da bancada ruralista, o agronegócio tem ainda a força econômica a pesar em seu favor e em desfavor à questão ambiental.

 

            Não apenas do agronegócio. De modo geral, o Brasil depende hoje da venda de bens primários. Entre janeiro e maio de 2011, as commodities chegaram a representar 71% do valor total exportado pelo país. No mesmo período de 2010, a participação das commodities foi de 67%. As exportações desse tipo de produto avançaram mais celeremente que as de manufaturados. Nos primeiros cinco meses de 2011, a exportação de commodities cresceu 39,1% em relação a igual período de 2010, enquanto os embarques de manufaturados subiram 15,1% (Commodities já representam 71% das exportações do país).

 

            Dependente da venda de commodities para o balanço positivo de suas relações comerciais, o Brasil depende também da China. Não apenas por ser grande compradora do país, mas porque é a demanda chinesa (o “efeito China”, como dizem) que mantém os preços das commodities em alta (Brasil depende da China para evitar crise). E mesmo os investimentos diretos da China em solo brasileiro não representam algo diferente neste quadro de pressão pela exploração de bens naturais e, por conseguinte, de depredação ambiental. Tendo aumentado 14.000% somente em 2010, os investimentos chineses no Brasil “se concentrarão na produção de commodities e em infraestrutura, priorizando os setores de mineração petrolífero, siderurgia, plantio, transmissão de energia e transportes” (MARTINS, 2011: 324).

 

            Isto nos permite postular: quer o epicentro econômico-histórico permaneça no Ocidente, quer se desloque em direção ao Oriente, sendo capitalista, o sistema continuará orientado para a reprodução ampliada do capital e, portanto, calcado na exploração do trabalho e da natureza. A permanecer capitalista, a economia continuará voltada para a produção de valores de troca e para as necessidades do sistema e não para a produção de valores de uso e para as necessidades das pessoas.

 

Ainda que seja, como destaca Villamar (La disputa por La justicia climática es de valores no de colores), o país que mais gaste em “estímulos verdes” e o que faz “uso del 25% del total mundial de licencias de patentes de Tecnologías Energéticas Limpias” (VILLAMAR, 2011: 17-18), a China depende e estimula a chamada “economia marrom”. Sua pungente indústria não pode prescindir daquilo que alimenta seu crescimento. E dada a importância deste para a economia mundial nesse tempo de crise, os EUA, mesmo se sentido ameaçados, dificilmente quererão a estagnação ou o decrescimento da economia chinesa. Afinal, daí vem parte significativa de seu financiamento.

 

Por este prisma, entre os gigantes da economia mundial, nada há que indique cenário favorável à construção de uma economia alternativa que, verdadeiramente, respeite ao meio ambiente. Isso vale também para os países “emergentes”. É nesse quadro que vêm crescendo e dificilmente abrirão mão daquilo que lhes têm proporcionado crescimento.

 

Desenvolvimentismo na América Latina e ameaça às Amazônias e aos povos originários

 

Como ou mais que a China, também os governos progressistas da América Latina suscitam muitas esperanças quanto à reorientação da economia. As propostas do “socialismo do século XXI” na Venezuela e as do “Bem-viver” vindas da Bolívia e do Equador despertaram muito entusiasmo. Olhados de perto, agora tais governos inspiram cautelas.

 

Optaram pela integração regional como caminho para sair da crise, fugir à influência estadunidense e gerar divisas que pudessem ser investidas em inclusão social. Lamentavelmente, eles o fazem ainda sob o ideário desenvolvimentista, assentado, basicamente, na exploração dos bens naturais. Os casos das hidrelétricas no Brasil, do TIPNIS na Bolívia, de Cajamarca no Peru (agora sob Humala) e da exploração petrolífera no Equador são emblemáticos quanto a isso. Além de explicitar o caráter controverso de suas políticas, isso coloca sob ameaça a natureza e conquistas importantes, como as autonomias, o Bem-viver, as consultas prévias etc.(Desenvolvimento na América Latina: a persistência de uma ilusão fascinante e facínora).

 

As Amazônias e os povos originários sentem as ameaças de tais políticas de modo dobrado. Como destaca Alain Muñoz (Territorios exclusivos: imprescindibles para indígenas amazônicos), a existência dos indígenas Amazônicos depende de riquezas naturais, abundantes e de boa qualidade. Por isso eles requerem usufruto exclusivo de seus territórios. Apenas alguns poucos territórios estão reconhecidos, “pero son, al mismo tiempo, los mejor conservados y más amenazados.  Suman casi 2 millones de km2, una cuarta parte de la Amazonía. Albergan más de millón y medio de personas, de casi 450 pueblos indígenas diferentes”.

 

Valendo-se de dados da Red Amazónica de Información Socio-ambiental Georeferenciada (RAISG), Muñoz ressalta que “En Venezuela, sólo 40 comunidades recibieron títulos de sus tierras. Esto beneficia únicamente al 3% de indígenas amazónicos. En Bolivia, casi la mitad (45%) de las solicitudes no se atendieron. (…) En Brasil, 99 de 412 territorios indígenas reconocidos están permanentemente amenazados. Más de la mitad de ellos (55) por expansión de la frontera agrícola. El resto (44) por la explotación ilegal de diferentes recursos naturales”.

 

Não é por casualidade que, no Brasil, os povos originários estão sendo lesados em seus direitos (Política indigenista do Governo Federal gera legado de sofrimento e morte em 2011 e Indígenas reclamam de invasão de terras demarcadas e criticam governo), suas lideranças assassinadas em Mato Grosso do Sul e suas crianças mortas por desassistência no Acre (O governo brasileiro e as mortes de crianças indígenas no Acre).

 

Elaborado pela equipe do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o quadro a seguir mostra, a partir do Orçamento Federal, a distância entre o que o Governo planejou fazer pelos povos originários em 2011 e o que ele realmente fez ou, melhor dizendo, o que ele deixou de fazer. A atuação do governo é o que liga a desassistência numa ponta e a violência na outra. E o genocídio é o resultado inelutável de uma e outra coisa.

 

Ação

Dotação autorizada

Liquidado

%

Proteção Social dos Povos Indígenas

23.733.900

7.946.350

33,48

Conservação e Recuperação da Biodiversidade em Terras Indígenas

100.000

0,00

0

Promoção do Etnodesenvolvimento em Terras Indígenas

13.826.000

3.793.191

27,44

Estruturação de Unidades de Saúde para Atendimento à População Indígena

23.866.000

412.491

1,73

Demarcação e Regularização de Terras Indígenas

18.955.706

10.538.348

55,59

Gestão e Disseminação das Informações acerca da Temática Indígena

320.000

20.943

6,54

Promoção, Vigilância, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena

326.621.000

207.742.953

63,60

Saneamento Básico em Aldeias Indígenas para Prevenção de Agravos

40.150.000

1.354.183

3,37

Fomento a Projetos direcionados a Cultura dos Povos Indígenas

900.000

89.992

10,00

 

Assim, que liderança poderá exercer o Brasil na Rio+20? Olhar o papel que ele hoje cumpre na América Sul, as empresas e os projetos que (interna e externamente) está a favorecer pode ser muito instrutivo a esse respeito. Isso faremos no texto que virá: IIRSA e o “subimperialismo” brasileiro.

 

Referência bibliográfica
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: UNESP, 1996.
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo, Boitempo, 2008.
CEPAL. La República Popular China y América Latina y el Caribe: hacia una nueva fase en el vínculo económico y comercial. Santiago de Chile: 2011.
FRANK, André Gunder. Tigre de papel, dragão de fogo. In SANTOS, Theotonio dos.  Os impasses da globalização (coord.). São Paulo: Loyola, 2003.
HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
SANTIESTEBAN, Gustavo Soto. Uma mira macroscópica al conflicto Del TIPNIS In Agência latinoamerica de Informação. El cuento de La economia verde. Ecuador, 2011.
VILLAMAR, Alejandro. La disputaporla justicia climática es de valores no de colores In Agência latinoamerica de Informação. El cuento de La economia verde. Ecuador, 2011.
WALLERSTEIN, Immanuel. Geopolítica, política de classes e a atual desordem mundial. In SANTOS, Theotonio dos (coord.). Os impasses da globalização. São Paulo: Loyola, 2003.

[1] Cientista Social, Membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (NUPESDAO) e do Movimento Anticapitalista Amazônico (MACA).
[2] Grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia e China. Agora acrescido de África do Sul.

Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no blogue Insurgente Coletivo

EcoDebate, 27/01/2012

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