‘Haveria sociedade humana sem a participação dos animais?’. Entrevista com Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias e Daniel Braga Lourenço
“Acredito que um logro importante para o animalismo seria desvincular a proteção dos animais da proteção ao meio ambiente, conferindo aos animais um estatuto mais próximo de seu valor intrínseco”, afirma o sociólogo.
Confira a entrevista.
Neste domingo, dia 22 de janeiro, várias capitais do Brasil irão realizar a manifestação “CRUELDADE NUNCA MAIS”, que visa a penalização para crimes de maus-tratos aos animais. IHU On-Line entrevistou, por e-mail, o sociólogo Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias e o advogado Daniel Braga Lourenço, que explicam como se dá, na contemporaneidade, a relação dos humanos e não-humanos e por que os direitos destes últimos, muitas vezes, não são preservados.
Segundo Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias, há uma diferença bastante grande entre proteger privadamente os animais e lutar na esfera pública pelos seus direitos. “No primeiro caso, o animal ocupa um lugar tutelado. No segundo, é um sujeito de direitos. Se o animal passa receber outro estatuto ontológico e moral por parte de algumas pessoas, é natural que surjam manifestações públicas (destas mesmas pessoas) por uma revisão da legislação a respeito”, diz.
Já o advogado Daniel Braga Lourenço acredita que “a dinâmica dos sistemas econômico e político, bem como da cultura midiática, tende a desvalorizar e a despersonalizar os animais”. Ademais, afirma, enfático, que “a certeza da punição é um fator sociológico importante”.
“Valendo-me da expressão utilizada pelo jurista norte-americano Gary Francione, poderíamos dizer que a humanidade sofre de uma aguda esquizofrenia moral em relação aos animais. Da mesma forma com que tratamos alguns como verdadeiros membros de nossas famílias, relegamos outros a um completo descaso. Esse é o caso dos animais utilizados na alimentação, na experimentação científica, no entretenimento (rodeios, vaquejadas, circos, zoológicos, corridas, etc.), na indústria da moda, de medicamentos e cosméticos, entre tantas outras instituições opressivas”, completa Lourenço.
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias possui graduação em Ciências Sociais Bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduação em andamento em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente é bolsista de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Realizou intercâmbio acadêmico na Ebehrard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) através da bolsa Baden-Württemberg Stipendium do Landesstiftung Baden-Württemberg (2008-2009). Publicou no Cadernos IHU ideias em sua 147ª edição, intitulada “O animal como próximo: por uma antropologia dos movimentos de defesa dos direitos animais”, disponível em http://migre.me/7BvEV.
Daniel Braga Lourenço é advogado membro do “Animal Legal Defense Fund” – ALDF (Profesional Volunteer) e Professor de Direito Ambiental dos cursos Praetorium no Rio de Janeiro e da Pós-Graduação em Direito do Petróleo do Instituto Catarinense de Pós-Graduação – ICPG. Atualmente é o Diretor Jurídico do Instituto Abolicionista Animal – IAA e Assessor Jurídico da ONG “Espaço Gaia”. Integra os Conselhos Editoriais da Revista Brasileira de Direito Animal, da Editora Evolução e Pensata Animal. É autor de “Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas” (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, 566 p.).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Neste domingo, 22, será realizada a manifestação “CRUELDADE NUNCA MAIS” em várias capitais do Brasil, visando a penalização para crimes de maus-tratos aos animais. Neste sentido, qual a relevância e o impacto de iniciativas como essas no país?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – Estas iniciativas são relevantes porque manifestam a consolidação – ainda em curso, é claro – daquilo que poderíamos classificar como um “novíssimo” movimento social. Embora sejam relativamente antigas, manifestações públicas em prol dos animais, exigindo outro tipo de relação com eles, tem ganhado mais espaço nas últimas três décadas, sobretudo nos países do hemisfério norte. No Brasil, este é um movimento ainda relativamente circunscrito. Eventos e intervenções públicas como essa, no entanto, têm dimensionado o impacto simbólico da questão dos animais para além do lugar hiper-reduzido que ela ocupava alguns anos atrás. O surgimento de discursos e racionalidades mais coesas no millieu animalista, como a “libertação animal” ou o “abolicionismo”, também contribuíram para que a questão dos animais tomasse contornos mais próximos aos movimentos sociais e políticos clássicos, deixando de ser identificada, necessariamente, com o “altruísmo”, a “beneficência” e a “misericórdia” com os animais. Há uma diferença bastante grande entre proteger privadamente os animais e lutar na esfera pública pelos seus direitos. No primeiro caso, o animal ocupa um lugar tutelado. No segundo, é um sujeito de direitos. Se o animal passa receber outro estatuto ontológico e moral por parte de algumas pessoas, é natural que surjam manifestações públicas (destas mesmas pessoas) por uma revisão da legislação a respeito. Há também uma atmosfera mais propícia para que estas causas surjam com força: a subjetivação legal dos animais, defendida por um número reduzido de militantes, destaca-se de um pano de fundo mais geral de subjetivação social dos mesmos, o que é bastante evidente no caso específico dos animais domésticos de companhia. Como já disse o antropólogo britânico Tim Ingold, os filhotes estão começando a virar “filhinhos” nas sociedades industriais. Onde antes havia uma “agropecuária” hoje há um pet shop. Aqueles que se dedicam mais intensamente à causa animal sabem desta atmosfera propícia e buscam otimizá-la para seus propósitos, principalmente através deste tipo de intervenção no espaço público. Somando-se a isso o poder de disseminação das redes virtuais, potencializa-se a sensibilidade já pré-existente no meio social.
Daniel Braga Lourenço – A modificação do estatuto moral e jurídico dos animais não-humanos passa, necessariamente, por uma ampliação da sensibilização social e estatal em relação à questão. Neste sentido, movimentos como o “CRUELDADE NUNCA MAIS” são extremamente relevantes. A maior parte dos sociólogos classifica o racismo, assim como o sexismo e outras formas de discriminação, entre as quais poderíamos também incluir o especismo, como autênticas ideologias. Como tais, consubstanciariam um conjunto de crenças culturalmente compartilhadas que legitimam uma determinada ordem social, desejada ou já existente. Assim é que a opressão contra os animais, nas suas mais variadas expressões, é uma dessas ordens presentes na sociedade que não deriva exclusivamente de um preconceito de ordem individual, mas sim da institucionalização da opressão em relação a esta categoria vulnerável. A dinâmica dos sistemas econômico e político, bem como da cultura midiática, tende a desvalorizar e a despersonalizar os animais. De forma cíclica poderíamos sintetizar esse movimento nas seguintes etapas:
(a) construção e propagação de ideias que desvalorizam os oprimidos;
(b) ideologias opressivas são criadas;
(c) preconceito é cultivado, explicita ou implicitamente, e a discriminação torna-se lugar comum;
(d) opressão é naturalizada e o status quo dos opressores é preservado;
(e) a eliminação a subjugação do “outro” é justificada. A exploração dos animais possui diversas formas de concretização que normalmente estão associados a um comportamento abusivo ou cruel.
IHU On-Line – Existe alguma legislação específica de punição a pessoas que maltratam os animais? Como a legislação brasileira se manifesta em relação a isso?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – A legislação brasileira sobre animais é antiga. Em 1934, durante a Era Vargas, foi instituído o Decreto 4.645, visando coibir a crueldade com os animais. A partir deste decreto, os animais passaram a ser tutelados pelo Estado. Na Constituição de 1988, o artigo 225 dedica algumas palavras ao cuidado da fauna, mas – isto é muito interessante – este é o artigo que versa sobre o cuidado com o meio ambiente. E o artigo 225 é bastante claro em função de quem o meio ambiente deve ser protegido e cuidado: em prol das brasileiras e dos brasileiros (humanos). Isto não se compara às legislações de outros países, nos quais os animais ocupam se não o estatuto de sujeito, pelo menos algo bem próximo a ele. As legislações dos países escandinavos, da Áustria e da Suíça, são bastante severas em relação aos maus-tratos. Não coincidentemente, são países com antiga tradição na defesa social dos animais, cujas sociedades não partilham tão intensamente como nós da divisão natureza/cultura, humanidade/animalidade, cidade/campo da tradição greco-latina. Tanto Philippe Descola, em Par delà Nature et Culture, quanto Luc Ferry, em A nova Ordem ecológica, argumentam neste sentido.
Daniel Braga Lourenço – Possuímos previsões normativas importantes no campo jurídico que lidam com a questão do abuso em relação aos animais não humanos. A mais importante delas consta da própria Constituição Federal que, em seu art. 225, § 1º, VII, prevê, com clareza, a vedação das práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. Além da previsão constitucional, possuímos o Decreto n.º 24.645/34, ainda em vigor, parcialmente recepcionado pela Constituição, que traz inúmeros exemplos de condutas abusivas, entre as quais podemos citar o transporte a manutenção de animais em locais inadequados, a realização de trabalhos excessivos, a prática de engorda mecânica e promoção de luta entre animais, etc. Temos ainda outras normas importantes, mas é imperioso citar o art. 32 da Lei n.º 9.605/98 (conhecida como lei de crimes ambientais) que prevê como fato típico penal (crime) a realização de condutas, comissivas ou omissivas, que sejam caracterizadas como abusivas ou cruéis.
IHU On-Line – Acredita que há penalização correta no Brasil contra a crueldade aos animais? No que consistiria uma legislação eficiente?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – Particularmente, sou favorável a punições mais severas e maior controle por parte dos órgãos responsáveis, mas este é um debate a ser feito de maneira democrática e propositiva. O recente caso da enfermeira que espancou uma cadelinha nos ensina duas coisas: por um lado, grande parte da sociedade não tolera mais uma cultura de maus-tratos aos animais e impunidade por parte de quem os inflige. De outro, a própria ausência de um debate público mais generalizado a este respeito pode ter como resultado uma exaltação hipertrofiada dos ânimos das pessoas, abrindo margem para a detração do animalismo como um “fetiche” de quem quer elevar ao patamar de problema social o que não é. Esta é uma das acusações mais frequentemente ouvidas pela militância animalista: de que sua “causa” não é suficientemente relevante; de que qualquer reconhecimento a mais para os animais implicaria necessariamente em um “rebaixamento” do estatuto ontológico do ser humano. Não sou especialista em direito, e me seria bastante temerário dizer, agora, no que consistiria uma legislação mais eficiente. No entanto, acredito que um logro importante para o animalismo seria desvincular a proteção dos animais da proteção ao meio ambiente, conferindo aos animais um estatuto mais próximo de seu valor intrínseco.
Daniel Braga Lourenço – A pena prevista para o crime de maus-tratos, tal qual consta do mencionado art. 32 da Lei n. 9.605/98, é de três meses a um ano de detenção, podendo ser aumentada de um sexto a um terço caso ocorra a morte do animal em decorrência da prática abusiva. A pena cominada, anteriormente mencionada, leva a que o crime seja considerado de “menor potencial ofensivo”. Estes delitos incluem-se no âmbito da competência dos chamados Juizados Especiais Criminais, regulados pela Lei n. 9.099/95. Este diploma legal prevê uma série de benefícios para aqueles que cometem os crimes ditos de “menor potencial ofensivo” dentre as quais podemos citar a impossibilidade de prisão em flagrante (caso o autor seja encaminhado ao juizado ou assuma o compromisso de a ele comparecer), a possibilidade de composição civil dos danos e transação penal com aplicação de penas restritivas de direitos em lugar das restritivas de liberdade. Somando-se esses fatores a uma usual omissão das autoridades policiais na apuração desta espécie de crime, gera-se um sentimento generalizado de impunidade.
Penso que poderíamos evoluir juridicamente no sentido de aumentar a pena cominada de maneira a retirar o crime de maus-tratos da alçada dos juizados especiais. Muitos penalistas voltam-se contra esta opção afirmando que o art. 136 do Código Penal, quando tipifica a conduta de maus-tratos (em relação a humanos) o faz com uma pena ainda menor que a prevista pela lei de crimes ambientais. Esta, a meu sentir, é uma observação apenas parcialmente verdadeira, pois os parágrafos do mesmo art. 136 do Código Penal prescrevem penas bastante significativas para os casos de lesão corporal de natureza grave e morte, além da possibilidade da configuração do concurso de crimes. Mais que isso, o elemento subjetivo do tipo do mencionado art. 136 refere-se tão somente às situações de abuso relacionadas a situações de excesso na guarda ou vigilância. Se o agente pratica o fato, portanto, para fins de correção, censura ou reprimenda, havendo abuso, trata-se de crime de maus-tratos. Não ocorrendo essa finalidade, realizando o fato somente para que a vítima sofra, cuida-se de tortura, delito especial inexistente na lei de crimes ambientais. Assim é que me parece que são situações díspares e que não podem ser comparadas para o fim de deslegitimar o pleito de aumento de pena para o crime de maus-tratos de animais. Por fim, mesmo que ultrapassemos esta questão da necessidade do aumento da pena, creio que deveríamos investir seriamente na coibição das condutas abusivas em relação aos animais. A certeza da punição é um fator sociológico importante.
IHU On-Line – Como avalia a relação dos humanos e não-humanos hoje?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – Como já disse anteriormente, há, por um lado, um movimento de hipersubjetivação dos animais domésticos de companhia; mas há, também, uma radicalização dos modos de tratamento industrial dos animais domésticos de trabalho, mais próxima de uma coisificação. Este é um paradoxo muito antigo, mas que tem se intensificado nas últimas décadas. Grande parte das racionalidades animalistas, como a libertação animal e o abolicionismo são, em parte, reflexos e reações a esta dinâmica. Movimentos identificados com estas linhas procuram lembrar a sociedade de que não somente os animais de companhia (mormente cães e gatos) sofrem nas mãos dos seres humanos, mas que haveria toda uma “plebe animal rural” cujo sofrimento é sistematicamente ocultado do conhecimento social. O que acontece é que, se revelado, este sofrimento também pode ser neutralizado, a partir do uso político de racionálias como a da “sustentabilidade” e do “manejo racional”. Atualmente, tenho dirigido meu interesse de pesquisa do “protesto” para o “produto”, ou seja, tenho acompanhado de que forma os agentes do agronegócio e do sistema-carne nacional – o mais afetado simbólica e materialmente pela militância animalista – tem reagido e respondido aos seus críticos na esfera pública. E os resultados até agora obtidos são interessantíssimos.
Daniel Braga Lourenço – A relação entre humanos e não-humanos sempre foi marcada por paradoxos insondáveis. A visão aristotélica que propugna pelo antropocentrismo teleológico, com a consequente construção de uma grande hierarquia da vida é ainda hoje muito viva. Exploramos e instrumentalizamos os animais das mais variadas formas e maneiras. Valendo-me da expressão utilizada pelo jurista norte-americano Gary Francione, poderíamos dizer que a humanidade sofre de uma aguda esquizofrenia moral em relação aos animais. Da mesma forma com que tratamos alguns como verdadeiros membros de nossas famílias, relegamos outros a um completo descaso. Esse é o caso dos animais utilizados na alimentação, na experimentação científica, no entretenimento (rodeios, vaquejadas, circos, zoológicos, corridas, etc.), na indústria da moda, de medicamentos e cosméticos, entre tantas outras instituições opressivas.
IHU On-Line – Acredita que, apesar de todos os avanços na legislação, o Brasil é conivente com quem comete crimes contra a fauna? Por quê?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – Em grande parte, sim. È forçoso reconhecer que um número cada vez maior de operadores do direito têm se interessado pela questão dos animais. O mérito destes agentes deve ser reconhecido. No entanto, a fiscalização ainda deixa muito a desejar e há questões que somente em longo prazo poderão ser solucionadas. Por exemplo: um colega antropólogo, pesquisador do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), relatou recentemente que fazendeiros do Pantanal, anteriormente partícipes de um projeto de preservação da onça-pintada, formaram uma verdadeira rede de caça à onça assim que o projeto acabou, retornando às práticas tradicionais que a iniciativa visava mitigar ou mesmo erradicar. É uma ilusão achar que as relações humano-animais podem mudar por decreto, somente através do peso da lei. O tráfico de animais silvestres e o abandono de animais domésticos estão aí para atestar o que eu estou dizendo. Se queremos fazer algo pelos animais, devemos, primeiro, refletir sobre toda uma mentalidade que se possui a respeito deles e o seu lugar na sociedade. Para iniciar, poderíamos começar a refletir se as nossas sociedades são mesmo humanas ou se não são, bem a verdade, humano-animais ou “comunidades híbridas”, conforme o conceito de Dominique Lestel. Haveria sociedade(s) humana(s), tal qual nós a(s) conhecemos, sem a participação dos animais? Isto é algo digno de ser pensado e avaliado. Também em sentido moral.
Daniel Braga Lourenço – Sim. Num cenário onde a impunidade é a marca registrada, acredito firmemente que a omissão governamental em relação ao problema dos animais gera um nefasto compadrio, uma cumplicidade, uma conivência, ainda que pretensamente involuntária, entre as autoridades e os infratores. Conforme mencionei na primeira indagação, acredito que a opressão contra os animais faz parte de algo maior, institucionalizado, algo que o Estado corrobora ao não investigar adequadamente e não punir.
IHU On-Line – De que maneira o senhor busca estabelecer perspectivas morais para pensar os animais como um “próximo”?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – Em primeiro lugar, gostaria de deixar claro que, como antropólogo pensando em moralidades, não me cabe propriamente prescrever formas apropriadas de nos relacionarmos com eles, mas sim compreender o modo com que isto já acontece. Em outras palavras, que tipos de “moralidades” a respeito dos animais já existem no tecido social, quais são as moralidades dominantes e quais as propostas alternativas. Neste sentido, a militância animalista propõe algo diferente, que visa aproximar todos os animais do estatuto de sujeito de direitos. Se esta aproximação é de cunho absoluto ou relativo, as organizações propriamente militantes teriam melhores argumentos a destilar neste momento do que eu. De certa maneira, nossa eticidade urbana contemporânea já reconhece muitos animais como “próximos”, isto é, como sujeitos (mais ou menos) como nós: falo aqui não somente dos cães e gatos cujo sofrimento via maus-tratos desperta sentimentos de repulsa, mas também daqueles animais infinitamente distantes (leões, baleias, araras azuis) transformados em uma espécie de “bom selvagem” do século XXI, cuja preservação tornou-se crucial. A questão realmente sensível, a meu ver, reside justamente no meio do caminho entre o cão (ou o gato) e o leão (ou a arara): ou seja, no frango, no boi e nos demais animais de fazenda, cujo reconhecimento pleno de direitos não poderia dar-se de outra forma se não alterando radicalmente hábitos e necessidades socioculturais fortemente enraizados em nossa civilização.
IHU On-Line – Acredita que existe um discurso antropocêntrico dominante, que considera o animal dentro de uma lógica de coisificação? Por quê?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – O antropocentrismo é dominante e muito bem disseminado no tecido social. Mas ele vaza por todos os lados, cada vez mais. Desde Darwin, tornou-se absurda qualquer defesa de uma diferença absolutamente radical entre homens e animais. O que antes era explicado pela essência (a diferença entre homens e animais), passou a ser refutado pela investigação sistemática da natureza. A tese da exceção humana teve de se refugiar em conceitos mais ou menos metafísicos como a “cultura”, “o simbólico”, “o político”. Mas todas estas dimensões podem ser encontradas em algum grau entre indivíduos e comunidades de outras espécies, de modo que há muito a se descobrir ainda sobre os mundos vividos dos demais animais. O estudo das similaridades entre humanos e não-humanos sempre foi um campo problemático pelos problemas morais que é capaz de suscitar. Há algumas décadas, o grande problema deste campo de pesquisas era a possibilidade de reificar o homem ao fazê-lo comungar das propriedades dos animais. Podemos chamar isto de “redução à objetividade”. Hoje, o que diversos antropólogos, primatólogos e biólogos compartilham é o resgate da proximidade entre humanos e animais através da subjetividade de uns e outros, sem deixar de respeitar suas diferenças e valores intrínsecos. Mas o que ocorre no plano ontológico não necessariamente se repete no plano moral. O antropocentrismo não é somente um modo de identificação dos entes, mas também uma matriz de relações e prescrições morais sobre como lidar com eles. O antropocentrismo coloca – como o próprio nome diz – o homem no centro do universo. As coisas passam a ser consideradas em função de uma única espécie, tomada como excepcional. É interessante notar que o antropocentrismo não exclui totalmente a subjetividade do mundo dos animais não-humanos; mas, mesmo reconhecendo que ela exista, coloca-a em perspectiva desde o ponto de vista humano, que é tomado como ideal. Assim, os animais podem ser escalonados desde o nível de quase-objeto – insetos, por exemplo – até o de quase-humanos (mamíferos, primatas, etc.) abrindo margem, evidentemente, para todo tipo de objetivação. Seja ela absoluta ou relativa.
Daniel Braga Lourenço – Infelizmente o discurso predominante é, ainda hoje, de cunho marcadamente antropocêntrico. O animal está inserido numa categoria objetivada, instrumentalizada, de coisa, objeto. Isso é um reflexo de uma mentalidade social refém de uma lógica de dominação, de opressão contra as categorias vulneráveis.
IHU On-Line – Muitos animais continuam desprotegidos pelo homem. Isso seria reflexo de um problema cultural? Essa atitude pode ser superada algum dia?
Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias – A própria questão de animais “protegidos” e “desprotegidos” pelo homem já incita questionamentos muito profundos. O que significa proteger? Por que proteger? Quais animais devem ser protegidos e do quê, exatamente? Em alguns casos, não seria do próprio homem? Pensemos, por exemplo, na proteção de uma espécie ameaçada de extinção. Isto se daria pelo valor intrínseco dos indivíduos daquela espécie, pelo valor intrínseco daquela espécie como uma forma única e insubstituível de vida ou pelo valor relativo daquela espécie na preservação de um ecossistema tal? Isto, sem dúvida, é um problema cultural, se admitirmos aqui como “cultura” o conjunto de representações, valores e orientações para a prática de uma determinada sociedade (e esta não é uma definição suficiente de cultura!). Creio que ao invés do termo “proteção”, poderíamos refletir com mais frequência sobre a ideia de “respeito”, isto é, dos animais como portadores de um mundo vivo – subjetivo – a ser devidamente respeitado. O respeito comporta inúmeras dimensões, e com a “proteção” é sempre mais cômodo de lidar do que com o respeito. A proteção é vertical. Já o respeito, para ser respeito, é horizontal. E encarar de maneira mais horizontal é uma das questões mais problemática para as próximas décadas. Isto não significa necessariamente abandonar o humanismo, mas, muito mais do que isso, repensar que tipo de atitude nós tomamos com aqueles que são nossos vizinhos mais próximos deste mesmo planeta: os animais não-humanos.
Daniel Braga Lourenço – Penso que a ideologia da opressão trabalha com categorias culturais e ideológicas. A superação dessa lógica de dominação do outro, passa por um novo olhar do homem sobre si próprio e sobre a natureza. Somos também animais. Afinal, por que então a diferença brutal de tratamento? Seria a racionalidade, a autonomia prática, a linguagem, características que justificam a discriminação em relação ao alter? São perguntas que devemos nos fazer a todo instante e que um dia podem, quem sabe, levar a uma alteração de nossa relação com os animais e com o mundo natural. Essa é minha esperança.
(Ecodebate, 25/01/2012) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
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Excelente matéria, estão de parabéns. Sou interessada neste assunto, e compartilho do pensamento dos autores.