O ambiente não aceita desaforos, diz Eduardo Giannetti da Fonseca
O economista mineiro Eduardo Giannetti da Fonseca, professor do Insper de São Paulo, teve um estalo há alguns anos. Diante dos sinais irrefutáveis da mudança no clima, percebeu que a vida no planeta está indo para um buraco perigoso – e sem retorno – em virtude do modo insustentável de produção. Fã da economia de mercado, Giannetti alerta para a “cegueira” do sistema de preços, que considera omisso quanto ao custo ambiental das escolhas de produção e consumo. “Ele padece de uma falha tão ou mais grave no longo prazo do que o planejamento central. Nunca imaginei que diria isso na vida.” Para Giannetti, é preciso uma mudança nos valores e na forma de produzir e consumir. Senão, diz o economista, a conta recairá sobre o meio ambiente. “E o a ambiente não aceita desaforos.”
A entrevista é de Bettina Barros e publicada pelo jornal Valor, 20-01-2012.
Eis a entrevista.
E como termina essa história?
Lamentavelmente, o ambiente não vai aceitar indefinidamente esse desaforo, ainda mais com 1 bilhão de indianos e chineses entrando na corrida armamentista do consumo. O limite virá de fora. Adoraria que viesse do amadurecimento ético, com as pessoas ganhando uma nova consciência e outros valores. Duvido muito. O mundo está se estreitando dentro de um padrão democrático monetário americano dominante. Mas o limite ambiental, que não é de escolha humana, vai se impor.
De que forma?
Já está se impondo. A expressão visível e ameaçadora de que tem limite é a mudança climática. Isso vai levar à mudança nos modos de produzir, consumir e até de valores. Essas mudanças ocorrerão de forma voluntária ou terão de ser impostas. Chegamos a uma situação de tal gravidade que não dá para esperar para compactuar alguma mudança que não sacrifique tanto a liberdade.
O que está errado?
Eu, que sou fã da economia de preços e de mercado, hoje percebo que ela padece de uma cegueira absurda, que é o modo como usamos os recursos ambientais. O sistema de preços é completamente omisso em relação ao custo ambiental de nossas escolhas de produção e consumo. Não sinaliza a gravidade do que estamos fazendo com o espaço biológico de que nossa vida depende. Um exemplo vem de Alfred Marshall, economista inglês do século XIX: suponha uma comunidade com acesso a água potável de graça. A água não entra em nenhum tipo de registro. Mas se as pessoas dessa comunidade poluírem todas as fontes de água potável e passarem a direcionar trabalho para engarrafar, distribuir e vender esse bem, o que acontece com o PIB desse país? Aumenta. Uma coisa que antes era de graça passa a demandar trabalho, as pessoas passam a desembolsar dinheiro para comprá-la e o PIB aumenta.
Mas a qualidade de vida piora.
A qualidade de vida piora, as pessoas agora têm que comprar uma coisa que era antes um bem livre e, no entanto, parece que ficaram mais prósperas. Quando a gente tiver de andar com uma garrafinha de oxigênio no bolso para continuar respirando, o PIB vai subir de novo. Se as doenças respiratórias aumentarem porque o ar está poluído e for preciso trabalhar mais para pagar os remédios e os médicos, o PIB subirá de novo.
O cálculo do PIB está errado.
A medida do PIB é muito burra, porque ela apenas registra o que passou pelo sistema de preços, sem saber o que, de fato, está acontecendo com a vida das pessoas. É um problema de contabilidade simples. Mas o mais grave é que o sistema de preços sinaliza errado. Se um empresário quiser fazer uma usina para gerar eletricidade, ele tem um leque de opções. Vamos pegar os extremos: uma termelétrica a carvão ou uma usina solar com a melhor tecnologia. Se eu comparar hoje o preço dessas duas coisas, a ordem é de cinco para um. A termelétrica é muito mais econômica nesse registro monetário – o custo de produção do KW/h – do que a solar. Mas tem uma assimetria nessa comparação. E o custo não monetário do CO2 que ela emitirá ao gerar um KW com o carvão? A solar não tem. O sistema de preços não é internalizado. É como se a emissão de gases e o ônus ambiental dessa opção fossem de graça. Não são.
Isso se aplica a quase tudo.
Veja o caso das viagens aéreas. Quando pego um avião para cruzar o Atlântico, eu emito mais CO2 do que um indiano durante um ano no meio rural. É de uma extravagância sem tamanho. O que está embutido no preço da passagem? Equipamento, combustível, aeroporto, depreciação, serviço. Não está embutido o CO2. Deveria estar. A British Airways deu a opção ao cliente de pagar pelo crédito de carbono equivalente emitido no trajeto. A adesão? 3% dos consumidores toparam. Está todo mundo preocupadíssimo, mas na hora de pôr a mão no bolso… O sistema de preços vai ter de mudar. Ele padece de uma falha tão ou mais grave no longo prazo do que o planejamento central. Nunca imaginei que diria isso na vida! É muito sério. E está em tudo. Onde está, no preço, a emissão enorme de gases do rebanho para alimentar a produção de carnes? É maior do que a emissão de toda a frota automobilística do mundo, segundo a FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação]. Os preços relativos vão ter de mudar. Algumas coisas vão ficar muito mais caras e outras muito mais baratas. Essas coisas vão ter de ser precificadas de alguma maneira. Do jeito atual, estamos sendo levados para o caminho do desastre.
O que deu o estalo no senhor?
Ver o que está acontecendo. O planejamento central também foi horroroso, causou um desastre ecológico. Não estou dizendo que o planejamento central teria por si só dado conta do mercado. Mas nunca se imaginava que o sistema de preços e a economia competitiva de mercado, capaz de gerar tanta riqueza, tivesse uma falha tão grave.
Há mudanças em curso?
Quem está fazendo uma experiência pioneira nessa direção é a Austrália. Eles adotaram um sistema de internacionalização de custos ambientais e emissão de CO2 na geração de energia elétrica nas diferentes opções. Não sei a mecânica, mas é algo novo.
E ganhos de eficiência nesse contexto?
Essa ideia de melhorar a eficiência dos produtos, no final das contas, é mais um elemento agravante do problema. O Paradoxo de Jevons [Stanley Jevons, economista britânico do século XIX] mostra isso. No século XIX ele já tinha feito um exercício com o carvão. Dizia que, se o consumo de carvão continuasse crescendo, o custo de sua produção ficaria caro e as economias europeias terminariam estranguladas pela alta da sua principal fonte de energia. O exercício é impecável como extrapolação. Ele só não foi capaz de prever que, poucas décadas depois, viria uma segunda revolução industrial, na qual o carvão seria deslocado como fonte primária de energia pela introdução do petróleo e das fontes elétricas. Mas Jevons disse uma coisa que o tempo mostrou ser realidade. Ao contra-argumento de que a eficiência do carvão aumentaria, ele respondeu que melhorar essa eficiência também aumentaria o consumo de carvão. O raciocínio é de que, no início, subiria a lucratividade das siderúrgicas, o que atrairia mais capital ao setor, aumentaria a oferta e derrubaria o preço do carvão. Isso elevaria a demanda e exigiria um consumo de carvão maior do que quando havia máquinas menos eficientes.
Isso virou o Paradoxo de Jevons.
É fantástico. Em 1960, 80% dos condomínios nos EUA não tinham ar-condicionado. O equipamento era caro e o custo de consumo de energia, elevado. Hoje, 84% dos domicílios o têm. Entre 1993 e 2005, a eficiência energética do ar-condicionado aumentou 20%, enquanto o consumo médio por aparelho aumentou 35%. Ficou tão barato que as pessoas deixam ligado. Resumindo: os EUA usam hoje um volume de energia, só com ar condicionado, igual ao total de energia consumida nos EUA em 1955. A China, entre 1997 e 2007, triplicou o número de aparelhos, e estão só começando. A Índia vem na cola. Vai crescer dez vezes o uso de ar-condicionado entre 2005 e 2030. Com o compressor cada vez mais barato e a eficiência maior, o consumo vai aumentar. Essa conta não fecha. Tecnologia não é a resposta.
(Ecodebate, 24/01/2012) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Onde isso vai parar?
Chamamos isso de internalização das externalidades.
Temos que internar no custo dos produtos os custos externo (matérias primas que entram nos processos e nos produtos), como tudo que é extraído “virgem” do meio ambiente, como minérios, madeira, água, ar e devolvido “estuprado” como as emissões.