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Artigo

Preconceito em camadas, artigo de José de Souza Martins

 

Casos recentes de hostilidade racial contra crianças sugerem que, quando a cor perde força para estigmatizar, outros atributos asseguram a continuidade da discriminação

[O Estado de S.Paulo] Dois casos recentes de preconceito racial contra crianças, em São Paulo, iluminam a complexa gravidade do problema e expõem aspectos pouco compreendidos do preconceito no Brasil. Um menino etíope, de 6 anos de idade, que não fala português, teria sido expulso por um dos garçons de um restaurante na Vila Mariana enquanto seus pais adotivos, brancos, espanhóis em turismo, se serviam do bufê. Ao voltarem à mesa e não o encontrarem, foram achá-lo na rua, chorando. Em outubro, num supermercado de Pinheiros, um menino de 10 anos, filho de pai negro e mãe branca, que é dentista, foi maltratado por um segurança, sob acusação de que estava incomodando os clientes.

Diferentemente do que ocorre no preconceito racial estrito, nesses dois casos haveria uma superposição de preconceitos, comum no Brasil, concentrados numa única pessoa ou em grupo social determinado. Na pizzaria, o garçom justificou-se dizendo que julgava ser aquele um menino de rua. No supermercado, o segurança entendeu que o menino perturbava os clientes. Nos dois casos, manifestou-se em primeiro lugar a prontidão preconceituosa e repressiva contra crianças pobres, que não eram. Supostamente sozinhos (num caso, os pais estavam por perto e, no outro, a mãe estava), sua presença em lugares onde se vai para comprar e consumir e não para perambular era anomalia que impunha o banimento.

O preconceito racial agregou-se a esse motivo de referência porque, nessa mentalidade, as figuras diferenciadas da criança e do negro não são apropriadas para ter presença num cenário cuja mediação constitutiva é o dinheiro. A mentalidade residual e arcaica que presidiu as duas manifestações é a mesma que presidiu a formação histórica deste país: dinheiro é instrumento de poucos, de pessoas emancipadas, o que se negou durante séculos ao escravo, porque era ele coisa e não pessoa, interdição que se estendeu por muito tempo a mulheres e se estende ainda hoje a crianças. Não obstante o cotidiano apelo a que crianças se tornem consumidoras e compradoras, sem contar milhões de crianças que trabalham.

Historicamente, na sociedade contemporânea, mais do que os direitos, no plano jurídico alcançados através das lutas sociais e reivindicativas, é o dinheiro que emancipa. O que esconde um terceiro fator da discriminação: a desigualdade de origem é apenas parcialmente indicada pela cor. É indicada, também, por outros atributos que não têm cor, derivações modernas da histórica e estamental diferenciação entre gente de qualidade e gente sem qualidade. Não é casual que boa parte da nossa vida cotidiana seja constituída por práticas para maquiar esses indícios, mesmo a raça, na adoção da toalete que encobre ou modifica traços estigmatizantes, do gesto ao cabelo. É como as vítimas mais experientes procuram se defender.

Estamos em face de uma significativa mudança qualitativa no preconceito racial brasileiro. Nos anos 50, Oracy Nogueira, professor na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, publicou um estudo que se tornaria um clássico da sociologia das relações raciais no Brasil – Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem. Nele, Nogueira distingue o preconceito justificado pelo nascimento, como nos Estados Unidos, do preconceito justificado pela cor, caso do Brasil. O preconceito racial não é sempre o mesmo em todas as partes. Reduzido ao estigma da cor, o preconceito é aqui relativamente volátil. A cor pode ser diluída na mestiçagem, o que não ocorre nos Estados Unidos, pois lá é a origem racial e não apenas a cor que conta. Por isso, lá o preconceito leva à exclusão; aqui leva à preterição.

No entanto, nos casos ocorridos recentemente e em outros casos envolvendo preconceito racial contra crianças, a superposição de preconceitos de várias referências sociais parece indicar a cor como atributo subsidiário de um preconceito social que tem muito de preconceito de origem. Esses casos sugerem que, à medida que aumentam o mascaramento e a resistência à discriminação racial e a cor deixa de ser eficaz para estigmatizar, discriminar e preterir, outros atributos são ressaltados nas vítimas, para assegurar que a discriminação continue sendo eficaz.

Combater o preconceito no Brasil como mero preconceito racial, através de ações corporativas dos vários grupos sujeitos a preconceito, mistifica-o e dificulta a sua superação. Ele é aqui preconceito múltiplo e combinado, o que nos remete às nossas origens estamentais, da desigualdade fundada no nascimento, raiz estrutural das nossas desigualdades sociais, independente da raça. Ele é ao mesmo tempo de riqueza, de gênero, etário, de orientação sexual, religioso (a perseguição aos praticantes do candomblé, no passado). A cor é mero indício desse complexo de preconceitos. Mero resquício de um passado peculiar de desigualdades sociais. O étnico nunca foi decisivo no nosso preconceito. Foi o pretexto. Sublinhá-lo encobre sua perversa complexidade.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, LIVROS, DE UMA ARQUEOLOGIA DA MEMÓRIA SOCIAL – AUTOBIOGRAFIA DE UM MOLEQUE DE FÁBRICA (ATELIÊ EDITORIAL, 2011)

Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo

EcoDebate, 09/01/2012

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