O funcionamento dos ecossistemas: a natureza é macunaímica, artigo de Ricardo Iglesias Rios
Em 1992, escrevi um artigo com o título Macunaíma contra a Rainha Vermelha. Nele comparava o mundo mostrado nos livros Alice no País das Maravilhas e Alice através do espelho, do inglês Lewis Carroll, com o mundo mostrado no livro Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, do brasileiro Mário de Andrade. O trabalho foi enviado para uma revista brasileira de divulgação científica, pois um dos seus muitos editores tinha gostado do trabalho. Essa revista, como é norma em qualquer revista científica séria, enviou o trabalho para ser avaliado por um cientista de renome e posteriormente para um segundo cientista.
Ambos consideraram o trabalho inadequado para a publicação, apontando-lhe os defeitos. Na época, apesar da decepção, considerei pertinentes algumas poucas críticas, entre as muitas oferecidas pelos juízes, e aceitei o veredicto de meus colegas; fazer um trabalho científico, escrevê-lo, enviá-lo e, posteriormente, receber como resposta que esse trabalho não merece ser publicado faz parte da vida dos cientistas, pelo menos daqueles que trabalham na área da Biologia. É uma experiência desagradável mas necessária, pelas razões apontadas por Thomas Kuhn, entre as quais se destaca a ideia de que a atividade científica tem um componente social, isto é, os trabalhos científicos, antes de serem publicados, devem ser sancionados pela comunidade de cientistas reconhecidamente competentes.
Essa forma de proceder dos cientistas tem evitado a publicação de grande número de trabalhos de baixa ou nenhuma qualidade, que, se publicados, reduziriam a credibilidade da ciência. Essa fórmula tem um custo relativamente pequeno: a não-publicação de alguns poucos trabalhos de boa qualidade que tenham inovações que esbarram em algum paradigma estabelecido. Tais trabalhos não desaparecem totalmente; seu aparecimento é apenas é atrasado, pois as ideias não morrem facilmente.
Ao reler esse trabalho anos depois de ser escrito, continuo a gostar dele, embora também reconhecendo que se trata muito mais de um trabalho de opinião, que ignora algumas das regras de um trabalho científico. Unicamente por gostar muito desse filho malsucedido na vida, e ainda por considerá-lo uma introdução adequada ao tema que pretendo desenvolver, aceitei publicá-lo, com algumas pequenas mudanças em relação ao texto original, que não alteram em nada os defeitos apontados pelos juizes, também chamados referees ou consultores ad hoc e outros nomes não publicáveis.
MACUNAÍMA, O HERÓI SEM NENHUM CARÁTER, CONTRA A RAINHA VERMELHA (a volta)
É possível que ainda existam cientistas que acreditem na neutralidade da ciência. Houve tempo em que se outorgou ao método científico a característica de neutralidade. Tal neutralidade pretendia significar que a atuação dos cientistas não sofreria interferências de suas crenças religiosas ou ideológicas, de suas preferências éticas ou morais. Alguns cientistas faziam alarde da superioridade da ciência, pois, segundo eles, o método científico baseado da indução é imune à influência da cultura que cada homem carrega consigo. Essa é uma visão ingênua, compartilhada por bons cientistas.
Por que é tão difícil atuar cientificamente sem que nossa cultura interfira nesse processo? A resposta é simples. Para desconforto dos indutivistas, a cada dia mais se fortalece a ideia de que a teoria precede à observação. Não é possível a observação, por simples que seja, sem que algum tipo de teoria tenha sido previamente elaborada para permitir essa observação. A ciência não é possível sem a observação e a observação não é possível sem uma teoria prévia. É justamente no momento da elaboração das teorias que se infiltra a cultura que cada um carrega nas costas. Simplesmente não existe a criação de teorias por indução de fatos observados de forma isenta.
É possível evitar a interferência da cultura? Uma resposta afirmativa a essa questão foi formulada pelo filósofo chinês Chuang Tzu (370-319 a. C.). O tema central de sua filosofia é a liberdade. Um tipo de liberdade muito especial, que, entre outras coisas, permitiria a tão almejada observação isenta dos cientistas. Para ilustrar as ideias de Chuang Tzu, transcrevo uma de suas histórias.
Um homem chamado Nanjung Chu foi visitar o sábio taoísta Lao Tzu, na esperança de encontrar soluções para seus problemas. Quando Nanjung se aproxima de Lao Tzu, este lhe indaga prontamente: por que vieste com essa multidão de pessoas? O homem perplexo voltou-se para verificar quem era aquela gente que estava atrás dele.
Não é necessário dizer que não havia ninguém atrás de Nanjung; a multidão a que se referia o sábio era a bagagem das velhas ideias, os conceitos convencionais sobre o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, a vida e a morte.
A solução apresentada por Chuang Tzu parte da necessidade de se obter a liberdade através do chamado princípio da não-ação pela ação (wu wei). Esse princípio foi – e ainda é – mal-interpretado por alguns povos, originando o far niente de uns ou o “papo pro ar” de outros. Talvez por isso fosse melhor traduzir wu wei por princípio da ação sem esforço, embora sem muitas esperanças de que os leitores ocidentais consigam deixar de ver, nesse conceito, um grande paradoxo.
O princípio do wu wei é difícil de ser entendido pela simples tradução ou pelo significado das palavras. Não é um princípio passível de uma explicação lógica; é um princípio estético e místico. Para Chuang Tzu, o wu wei é uma ação sem esforço, pois não está fundamentada em qualquer interesse, lucro ou mesmo desejo. A ação sem esforço é um estado em que todos os atos humanos se fazem espontânea e desinteressadamente. Nesse estado, o homem se une à natureza – ou ao céu, como a denomina Chuang Tzu – fundindo-se com o Tao ou Caminho, a unidade oculta que abarca o homem, a natureza e tudo que existe no universo.
Pode um cientista ser místico? Por incrível que pareça, a resposta é afirmativa. Ou não foram místicos Werner Heisenberg, Neils Bohr ou ainda o grande Albert Einstein? A esses homens devemos uma importante parte do conhecimento científico atual, e talvez seu sucesso tenha sido utilizar uma certa dose de misticismo na hora de elaborar suas teorias, sem permitir que ele contaminasse o método científico na hora de testar essas teorias.
Para que não pairem dúvidas, nunca é demais repetir que o enorme desenvolvimento do conhecimento científico dos últimos séculos só foi possível pela utilização rígida do método científico; contudo, não se conhece nenhum grande cientista que acredite que o conhecimento científico é a totalidade do conhecimento.
Finalmente chegamos à origem da primeira metade do título deste artigo. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, é o título do livro mais famoso do paulista Mário de Andrade. Macunaíma, nascido negro de mãe índia e posteriormente transformado em branco, é o personagem central do livro de Mário de Andrade. Macunaíma tinha dois irmãos, nascidos índios negros, porém um deles se transforma em mulato. Esse trio, uma alusão pobre à diversidade étnica que povoou o Brasil, passeia pelas crenças e lendas da cultura brasileira. Macunaíma, o herói, não abre mão da ideia de que o trabalho é uma coisa indigna para um verdadeiro homem. Para um anglo-saxão (nem todos), o trabalho é algo que dignifica o homem; talvez por isso nosso herói seja qualificado apressadamente como preguiçoso. Não seria uma justa classificação, pois Macunaíma passa muitas horas do dia fazendo amor e pensando sobre as coisas deste mundo.
O leitor concordará que se trata de atividades meritórias e também estará de acordo que são atividades que implicam um gasto elevado de energia. Nada mais natural, portanto, que Macunaíma passe boa parte do dia deitado numa rede; no fundo o problema é que o nosso herói não tem um bom assessor de imprensa na sua equipe.
A Macunaíma não falta caráter. Seu caráter é não ter caráter, e nesse aspecto é um personagem que está muito próximo do homem ideal de Chuang Tzu, pois ninguém conseguiu convencer o herói de que o trabalho é possível sem que se realize um grande esforço. No final do livro, depois de muitas aventuras, o herói, cansado de tanto sofrer nesta terra, aborrecido e desiludido de tudo, decide subir ao céu e ali se transforma na constelação da Ursa Maior. Não tenho informações de que Mário de Andrade conhecera os escritos de Chuang Tzu, porém não tenho dúvidas de que, em muitos aspectos, o caminho percorrido por Macunaíma lembra – e muito – o Tao na versão bem-humorada de Chuang Tzu.
A outra metade do título deste artigo faz referência a um grande escritor e matemático inglês, Charles Dodgson, que escreveu sob o pseudônimo de Lewis Carroll e foi o criador do personagem Rainha Vermelha em seu livro Através do Espelho, que é uma espécie de continuação do livro Alice no País das Maravilhas.
Se no mundo de Macunaíma tudo se faz muito vagarosamente, no mundo de Alice tudo se faz com muita pressa. Na primeira página do livro Alice no País das Maravilhas, um coelho chega correndo, tira do bolso do colete um relógio e sai outra vez correndo, clamando aos céus, porque chegará tarde não se sabe aonde. No livro Através do Espelho, a Rainha Vermelha e Alice têm que correr ao máximo, têm que correr tudo que podem para não sair do mesmo lugar.
Tentemos aprofundar um pouco mais quais seriam as diferenças e as semelhanças entre os livros em questão. Como biólogo de profissão, o que de imediato me chamou a atenção foi o conjunto de referências à flora e à fauna nesses livros. Depois de uma contagem não exaustiva, mesmo assim cansativa, podemos resumir a diversidade biológica encontrada nos respectivos livros com os dados apresentados na Tabela 1.
GRUPO TAXONÔMICO | Número de espécies | |
---|---|---|
MACUNAÍMA | ALICE | |
Mamíferos | 33 | 9 |
Aves | 73 | 6 |
Répteis | 12 | 3 |
Anfíbios | 4 | 1 |
Peixes | 43 | 2 |
Insetos | 35 | 3 |
Outros animais | 46 | 3 |
Plantas | 125 | 7 |
TOTAL | 371 | 37 |
Alice e Macunaíma passeiam por um mundo de fantasia; porém, sem sombra de dúvida, são dois mundos diferentes. O mundo da obra de Mário de Andrade tem 14 espécies de formigas e outras tantas espécies de mosquitos, além de 125 espécies de árvores. O mundo de Carroll tem apenas três espécies de répteis, seis espécies de aves – incluindo o extinto dodo. Uma diferença tão desmesurada entre esses dois mundos me recorda um comentário, com muita inveja mal-disfarçada, de um crítico literário europeu referindo-se ao escritor Gabriel García Márquez. Segundo esse crítico, García Márquez, ao escrever Cem Anos de Solidão, não utilizou sua rica imaginação; simplesmente descreveu os fatos!
O bosque em que vive Alice tem gatos, coelhos, ratos, pombas e patos. É um bosque “civilizado”, um bosque que se deixa ver. Já a floresta de Macunaíma tem, a cada metro, uma árvore diferente, e, ocultando-se nesse “mar verde”, também chamado inferno verde, estão antas, tatus, tamanduás, onças, macacos, serpentes, araras, tucanos, biguás, sabiás, sapos e peixes como piabas, tucunarés, pintados, tambaquis, piranhas etc. O bosque de Macunaíma nunca se deixa ver; pode-se intuir o que nele existe, porém nunca se consegue vê-lo em sua totalidade. Dessa circunstância vem seu mistério e também o sentimento de inquietação (eufemismo de medo) que a maioria das pessoas sente ao penetrar em uma floresta tropical. Não é por acaso, ou por licença poética, que se utilizam às palavras mar e inferno para referir-se a essa floresta.
No mundo de Alice, apesar de civilizado, há uma coisa terrível e ameaçadora: o inverno. Todos têm de estar preparados para passar os longos meses de inverno, pois o espectro da fome está sempre presente. Por isso, é justificável a alegria das pessoas que vivem em regiões de clima frio quando chega a primavera, que é também o momento para iniciar os preparativos para o próximo inverno. Nesse período há que se trabalhar muito, há que correr ao máximo, há que procriar tudo que se possa para não desaparecer. É esse o desafio que as pessoas de regiões de clima frio tiveram que enfrentar quando ali se estabeleceram. Minha leitura da Teoria da Rainha Vermelha criada pelo biólogo norte-americano Van Valen é de que as espécies que não reproduzirem ao máximo nas épocas propícias perderão o lugar para outras espécies que assim procederem. Quem não corre tudo o que pode perde a competição e desaparece. Já nos países tropicais… a fábula da cigarra e da formiga é no mínimo non sense.
Mário de Andrade e Charles Dodgson nos falam, em seus respectivos livros, das mesmas coisas: tempo, espaço, ódio, amor, trabalho etc. Ambos utilizam linguagem poética, com muito non sense e muito humor. Nesse aspecto, seus escritos são muito semelhantes aos de Chuang Tzu. Os três escritores falam das mesmas coisas, falam do homem e de sua circunstância; como dizia Ortega Y Gasset, “Yo soy yo y mi circunstancia”. A cultura, com certeza, não é toda circunstância; contudo, é uma parte muito importante dela, e as circunstâncias desses três homens, caros leitores e leitoras, são muito diferentes.
Vamos deixar de lado, por um momento, a literatura e a filosofia e dar uma olhada no que nos dizem os cientistas, através de sua “literatura”, que com certeza é lida e entendida por um número muito pequeno de pessoas.
Vamos falar da literatura ecológica, cujos paradigmas foram estabelecidos por cientistas dos países da região temperada, especialmente Inglaterra, Alemanha, Rússia, Estados Unidos da América do Norte, e, com menor contribuição, França e Espanha.
O ecólogo catalão Ramón Margalef, com muita sensibilidade, mas também (penso eu) pelo fato de viver num país latino com muito sol, foi o primeiro cientista a destacar a possível existência de uma alternativa à ideia criada por Van Valen, com sua Rainha Vermelha. Se para Van Valen cada espécie tem que se reproduzir ao máximo para continuar existindo – o que pressupõe uma corrida competitiva com vencedores e vencidos – para Margalef as espécies têm a tendência de fazer o mínimo possível que seja necessário para continuar existindo, o que pressupõe que a competição entre as espécies não é necessariamente o fator mais importante. Existe algo mais macunaímico do que essa declaração do Dr. Ramon Margalef?
Não tenho certeza de que Margalef, de fato, tenha tomado claramente partido na dicotomia Macunaíma-Rainha Vermelha. Talvez esse grande cientista e também filósofo de estilo pré-socrático prefira, nesta polêmica, a sabedoria oriental. Os orientais, há muito tempo, perceberam que o Yin não existe sem o Yang. De qualquer maneira, é claro que não se pode ser anglo-saxão e protestante ou latino e católico sem que existam as consequências disso.
Neste ponto, reconheço que, ao tentar fazer a interpretação dos escritos de cientistas, filósofos e poetas, devo admitir que essas interpretações estão influenciadas por meus óculos de ver o mundo. Apesar disso, gostaria de formalizar algumas observações sobre o estado das ciências em geral e biológicas em particular, que me parecem coerentes com o que foi escrito até aqui.
- O homem comum e alguns cientistas ainda acreditam que a ciência não é influenciada pela cultura dos cientistas que a fazem. Esse fato é diariamente usado pelos publicitários que, ao desejar vender um produto, utilizam o estereótipo do cientista com seu jaleco branco falando a frase que elimina qualquer dúvida: “Está cientificamente provado que este produto lava mais branco que os produtos da concorrência”; esta é a pá de cal na concorrência. O homem comum, para proteger-se dessa gente com tanto conhecimento e poder – os cientistas -, desenvolveu suas defesas. O senso comum faz a ligação entre o cientista e o louco, pois sempre se pode colocar um louco entre grades, graças à ação da polícia e do sistema judiciário que para isso foram criados. Os cientistas, pelo menos os melhores, sabem que a ciência não é imune à cultura de seus criadores, como também desconfiam que nem todo conhecimento importante é o conhecimento científico. Ideologia, religião, geografia do país de nascimento, clima, linguagem, enfim, a cultura de cada um não pode ser evitada no momento de elaborar as teorias científicas. Portanto, a neutralidade da ciência é um mito e os cientistas são, de certa forma, os sucessores modernos dos sacerdotes medievais.
- Existe uma teoria ecológica em uso que fala que a competição entre espécies é um processo em grande parte responsável pela estrutura dos ecossistemas. É oportuno recordar que a competição é também considerada uma espécie de motor propulsor da ação da seleção natural, assim como um processo que determina a exclusão ou aniquilamento das espécies menos aptas. O conceito de competição é a base do importante conceito de nicho ecológico, que por sua vez é um conceito de grande valor heurístico no raciocínio ecológico. Quem criou essa teoria? Uma resposta poderia ser: “os cientistas do País das Maravilhas”, mas como isso poderia ser mal-interpretado, prefiro dizer “por numerosos cientistas nascidos e educados na Europa e por alguns nascidos nos Estados Unidos da América do Norte e da Rússia, que são também países localizados na zona temperada”. Dificilmente Macunaíma, ao contemplar uma floresta tropical, com mais de 300 espécies de árvores por hectare em algumas localidades e milhares de espécies de animais, poderia chegar à conclusão de que esse ecossistema está num processo de sucessão ecológica, e que a competição é o fator determinante de sua estrutura. É verdade que existem mudanças nos ecossistemas tropicais; porém, como se trata de ecossistemas em um estado sucessional avançado (maduro), as mudanças são tão lentas que não são facilmente percebidas. O conceito de sucessão ecológica dificilmente poderia ser elaborado pela contemplação de uma floresta tropical. Numa floresta desse tipo funciona o “Princípio Rexona”: sempre cabe mais um ou sempre cabe mais uma espécie, sem que haja necessidade de eliminar uma espécie preexistente. Em um ecossistema desse tipo, em que a diversidade tende sempre a aumentar, a competição não parece ser um grande protagonista, não parece ser o ator principal no teatro ecológico da vida, papel que lhe é atribuído pela teoria ecológica moderna (MacArthur, 1972; Cody & Diamond, 1975; Hutchinson, 1978; May, 1981). Resumindo, sem meias palavras: o conceito de competição interespecífica, tão caro a muitos importantes ecólogos modernos, pode estar supervalorizado na sua importância, seja como processo estruturador das comunidades naturais, seja como fator determinante na formação de novas espécies. Essa supervalorização da competição obedece muito mais a razões culturais do que científicas. Como, de fato, não existem bons dados empíricos que comprovem ser a competição um dos atores principais no teatro ecológico, apesar de esse conceito estar em vigência desde que foi promulgado por Charles Darwin em 1859 no seu famoso livro A origem das espécies, me parece razoável começar a procurar alternativas – teóricas, naturalmente.
- Existem bons cientistas que se autodenominam ecólogos evolutivos, como se fosse possível existir um ecólogo não evolutivo. Tais cientistas mostram grande indignação diante das críticas feitas ao conceito de competição. É lógico que assim seja, pois durante quase duas décadas (1970/1990) trabalharam arduamente para explicar o funcionamento da natureza através da competição. Para se ter uma ideia da importância desse conceito dentro da teoria biológica em uso, basta dizer que, na década de 1970, cerca de 10% dos trabalhos científicos de Ecologia se referiam ao tema da competição e que ainda hoje cerca de 12% das folhas dos livros-texto de Ecologia se referem ao mesmo tema. Depois de tão monumental e dispendioso esforço, que me recuso a transformar em alguma cifra monetária, a que conclusão chegamos? A verdade é que, na prática, estamos quase no mesmo lugar em que estávamos em 1859. Contudo, esse enorme esforço não foi em vão: hoje já são muitos os cientistas que consideram o funcionamento da natureza através de um conjunto de conceitos bem mais amplo, como predação, parasitismo e até mutualismo. Aparentemente existe uma boa razão para um comportamento, digamos, conservador por parte de muitos cientistas. Se, pensam eles, permitimos que se debilite o conceito de competição, estaremos simultaneamente debilitando nossa teoria evolutiva ou teoria sintética da evolução. Ora, dizem eles, todos sabem que sem essa teoria teríamos que jogar no lixo a grande maioria dos livros de Biologia que foram escritos até hoje. Pior do que isso, continuam eles, estaremos levando água ao moinho dos criacionistas. Está bem claro que esses cientistas consideram a ideia de competição um conceito fundamental dentro ou na base da teoria evolutiva.
Recentemente têm aparecido muitas críticas aos cientistas, em função de sua aparente incapacidade para solucionar os problemas ambientais. A sociedade busca soluções para os problemas ambientais provocados pelo desenvolvimento industrial e tecnológico, no escopo de um modelo econômico capitalista e uma tendência à globalização. Nossa sociedade já começa a se perguntar: afinal, para que se pagam tantos cientistas?
No momento atual existe uma crise econômica da qual não escapa nenhum país. Nos Estados Unidos da América do Norte, um país que concentra grande contingente de cientistas, a sociedade já começa a questionar a necessidade da existência de tantos cientistas, cujo produto mais evidente é a produção de mais cientistas. Isso é muito pouco para uma sociedade mergulhada numa crise econômica. Nesse contexto, talvez pintado com tintas um pouco fortes, resta aos cientistas apenas a alternativa de apressar-se na busca de soluções novas, e o primeiro passo nessa direção é entender que meia verdade, repetidas milhões de vezes por muitas pessoas, não a transforma em uma verdade.
A evolução lenta e gradual, a todo-poderosa seleção natural, a sobrevivência do mais apto (uma tautologia óbvia), a competição e a luta pela existência são alguns dos conceitos colocados há quase 150 anos nos nichos mais altos do altar da teoria biológica. Esses conceitos heurísticos, alguns dos quais também tautológicos, foram muito importantes na construção da teoria ecológica; contudo, empregando a linguagem usada pelo filósofo da ciência Irwin Lakatos (apud Chalmers), podemos dizer que no momento presente já é evidente que o cinturão de hipóteses ad hoc que protege os paradigmas centrais (hardcore) da teoria evolutiva mostra alguns sinais de fadiga.
É o momento de pensar em uma mudança de paradigmas. Impõe-se uma revolução no sentido dado por Thomas Kuhn (1962) a essa palavra. Não sou muito otimista em relação à possibilidade de uma revolução no curto prazo, pois, como diz Kuhn, os paradigmas sancionados por uma geração de cientistas não serão substituídos por apresentarem fraquezas ou inconsistências; é necessário também que seus criadores se aposentem.
A história da ciência diz que, nas situações de crise, os cientistas devem manter conversações metafísicas e filosóficas. Portanto, mãos à obra, olhando o que a nossa natureza nos diz – e não o que outros dizem da nossa natureza; mas tudo isso sem muito esforço!
Barcelona 1992
Posfácio
Realmente ver esse texto publicado em uma revista científica em 1992 foi uma avaliação equivocada; contudo, algumas das ideias, olhadas anos depois, são bastante pertinentes. O mundo de hoje se caracteriza pela rapidez, a ponto de você se sentir obrigado a trocar o seu computador por outro que seja cinco segundos mais rápido. Esses míseros cinco segundos de lentidão são suficientes para causar grande impaciência, muito desconforto e, finalmente, profunda irritação nos usuários.
O mundo econômico é globalizado, e a competitividade é a palavra da moda. Contudo, pretendo, sem maiores pretensões, defender a ideia de que os ecossistemas naturais funcionam o mais devagar que podem. Os ecossistemas naturais possuem mecanismos que evitam o funcionamento acelerado. Só os ecossistemas doentes funcionam rapidamente – em resumo, a natureza é macunaímica -, e as interações positivas dentro dos ecossistemas – como a simbiose, a cooperação e o mutualismo – não podem ser ignoradas pela teoria da Ecologia.
Bibliografia
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HEISENBER, W., BOHR N., EINSTEIN, A. Y OTROS. (In)Cuestiones Cuánticas: escritos místicos de los físicos más famosos del mundo. Barcelona: Kairós, 1991.
KITTY, F. Stephen Hawking, su vida y su obra. Barcelona: Drakontos, 1992.
KUHN, T. S. La revolución Copernicana. Barcelona: Ariel, 1978.
MARGALEF i LOPEZ, R. Teoria de los sistemas ecológicos. Barcelona: Publ. Univ., 1991.
ORTEGA Y GASSET, J. Meditaciones del Quijote. Madrid: Revista de Occidente, 1927.
VAN VALEN, L. A new evolutionary law. Evol. Theor, 1:1-30, 1973.
Ricardo Iglesias Rios é Doutor em Ecologia pela Universidad de Barcelona, professor adjunto da UFRJ, conteudista do Consórcio Cederj
Artigo socializado pelo site Educação Pública / Fundação Cecierj e publicado pelo EcoDebate, 29/12/2011
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