Belo Monte em 2011: a instalação do caos, artigo de Rodolfo Salm
[Correio da Cidadania] A propaganda enganosa a favor de Belo Monte foi abundante em 2011. Tanto na forma de artigos em jornais supostamente sérios como a Folha de São Paulo (ver Impactos indiretos de Belo Monte serão muito maiores que os diretos) quanto de sites governamentais com aplicativos como o do Robô Ed, que nos tratam como bobos, com uma série de mentiras e distorções relativas a esta obra desastrosa (Belo Monte: Entrevista com o Robô Ed). Entretanto, neste fim de ano, pudemos comemorar que, finalmente, o debate sobre os problemas da construção da hidrelétrica de Belo Monte ganhou a visibilidade que merece, principalmente graças ao vídeo “É a Gota D’Agua + 10”, com a participação de vários atores e atrizes da Rede Globo (Belo Monte: a batalha dos vídeos).
É curioso que a entrada dos artistas no debate sobre Belo Monte tenha despertado reações tão iradas: “O Correio me surpreende com a publicação desse artigo em defesa dos atores da Globo. Trata-se de uma oposição politicamente ingênua e perigosa, e a direita tem tudo a ganhar com isso. Apenas indivíduos politicamente cegos e aqueles bem pagos pela oposição estrangeira e nacional não enxergam isso. Cuidado com posições pseudo-esquerdistas como a do autor deste artigo”. Escreveu um leitor do Correio, na sessão de comentários de “A batalha dos vídeos”, que ainda classificou minha posição como “eco-fascista”.
No começo deste ano, Arnold Schwarzenegger e James Cameron estiveram em Altamira, sobrevoaram o Rio Xingu e conversaram com índios preocupados com a construção de Belo Monte (Artistas contra Belo Monte). Então, a reação foi xenofóbica, na linha do “eles deveriam cuidar dos problemas do seu próprio país”. Pois agora que os artistas nacionais ganham destaque no debate, são desqualificados como “eco-chatos” ou manipulados. Cientistas já se posicionaram e posicionam-se contrários à obra e, para estes, a tática é simplesmente ignorá-los. Opositores em geral são taxados de contrários ao desenvolvimento do país.
De toda forma, esta visibilidade conseguida com o trabalho dos artistas já é algo a se comemorar, pois não foi fácil conquistá-la. Há exatamente um ano, na edição retrospectiva do Correio da Cidadania de 2010 (Belo Monte e as eleições presidenciais), eu lamentava que a discussão sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte não tivesse se desenvolvido como eu esperava ao longo daquele ano, a ponto de afetar as eleições presidenciais. A então candidata Dilma escondeu o seu grande e polêmico projeto, o candidato José Serra não fez questão de atacá-lo de frente, as discussões programáticas dos dois candidatos se perderam em uma série de pequenos debates, que hoje, em retrospectiva, eram evidentemente menores que a grande questão do futuro da Amazônia. Com a vitória do PT, financiado pelas empreiteiras interessadas na construção da barragem, a única previsão certa para o Xingu em 2011 era que este seria um ano difícil por aqui, “um dos mais duros dos últimos tempos”. Ah, sim, aquele mesmo leitor do Correio, citado mais acima também escreveu: “Àqueles que se opõem à construção da Usina de Belo Monte, sugiro que se mudem pra lá e vivam a tal existência sustentável que defendem para os outros enquanto usufruem de todos os confortos da vida moderna nas cidades eletrificadas”. Pois é, eu moro em Altamira.
Infelizmente, a previsão de um ano difícil para os moradores dessa região não poderia ter sido mais acertada. Com a concessão da licença de instalação da barragem, no primeiro semestre deste ano, e o início da construção do canteiro de obras, o caos instalou-se em Altamira. Caos na saúde, onde os serviços já eram precários e agora estão inviáveis, pois ainda não foi construído um único novo leito hospitalar sequer, e as ocorrências médicas estão se multiplicando com o repentino aumento da população. As filas dos bancos se tornaram quilométricas, pois, apesar de todo o movimento, ainda temos apenas uma agência do Banco do Brasil, uma agência dos Correios etc. Os preços dos aluguéis dispararam (300% de aumento). O preço do tomate na feira disparou. A inflação acumulada do ano na cidade certamente foi muito além daquela de 5% do país. Ninguém se deu ao trabalho de calcular quanto foi, mas certamente foi típica de um país em crise hiper-inflacionária. O número de pedintes na rua aumentou, por causa das pessoas que vieram para a cidade atrás de um emprego na construção da barragem e não conseguiram nada.
Caos no trânsito, outrora tranqüilo, e agora engarrafado por centenas de ônibus e caminhões da obra. No começo do ano mal se viam ônibus na cidade. Agora se formam filas intermináveis de ônibus e vans nas ruas, como só se vê em grandes centros como o Rio de Janeiro. Mas nos letreiros dos ônibus, ao invés dos bairros de destino (Botafogo, Copacabana, Leblon), aqui se lê “Sítio Belo Monte”, “Sítio Pimental”, “Canais” – as diferentes frentes de trabalho, ou, devo dizer, de ataque ao rio, das obras de Belo Monte. E, ironicamente, continuamos sem ônibus para circular pela cidade. Em todas as ruas de Altamira, de madrugada, antes que os transeuntes regulares saiam de casa, vê-se um imenso exército de pessoas com um uniforme robótico luminescente e o símbolo do CCBM (Consórcio Construtor Belo Monte). Esses mesmos que foram recentemente surpreendidos com a notícia de que não poderiam passar as festas em casa, pois não haverá recesso de Natal e Ano Novo. E que, quando fazem greve, são demitidos e escoltados pela polícia até a rodoviária, de onde são despachados para seus respectivos estados.
Foram muitos os desmatamentos em 2011. O Governo Federal comemora que tenha “estabilizado” os desmatamentos na Amazônia em níveis semelhantes àqueles observados na década de 1980. Porém, esquece-se que aqueles já eram níveis astronômicos, pois na época estavam sendo abertas imensas áreas de fazendas no norte do Mato Grosso, Sul do Pará, em Rondônia. Enfim, estava se formando o chamado “arco-do-desmatamento” da Amazônia. Hoje, estes desmatamentos migraram em grande medida para áreas centrais e remotas da floresta, atacando-a em seu coração, através de obras como esta da hidrelétrica de Belo Monte. Em Altamira, os desmatamentos são visíveis em toda parte, em todas as escalas, dos remanescentes florestais ainda preservados na beira do rio (As primeiras vítimas de Belo Monte), às ruas da cidade, pois os jardins das casas são os primeiros devastados nas reformas feitas para receber os engenheiros da barragem.
Uma das coisas que mais me preocuparam em Altamira este ano foi a severidade e a extensão de sua estação seca, que começou em junho e se estende praticamente sem chuvas até agora nas proximidades do Natal (quando o Brasil quase todo já sente os efeitos das tempestades). Aqui foram sete meses de seca este ano. O que, ecologicamente, é uma novidade nessa região, pois temos uma floresta perenifólia, em que a grande maioria das árvores não perde as folhas durante a estação seca. Estas florestas são típicas de áreas com no máximo três a quatro meses de estiagem, exatamente como acontecia por aqui na década de 1970 quando da abertura da Transamazônica. Um colono antigo, assustado com a seca atual, me contou que, há cerca de 30 anos, quem não tivesse queimado a sua roça até novembro, não queimava mais porque as chuvas não permitiam. Agora, já no finzinho do ano, ainda está tudo seco, estalando, pronto para queimar. É bom para os fazendeiros que querem fazer avançar os desmatamentos, e para os barrageiros que também podem avançar com suas máquinas além do cronograma previsto neste projeto de morte. Mas como reagirá o que sobrar da floresta, mesmo nas áreas mais protegidas, a esta nova situação climática? É possível que tudo se degrade rapidamente virando sertão, pasto degradado e deserto. Com a construção da barragem e a proliferação dos desmatamentos na região, as mudanças climáticas locais tendem a crescer.
Apesar da visibilidade recente que conquistamos, segundo um artigo na Folha de São Paulo, assinado pelo jornalista (e “barrageiro”) Agnaldo Brito, “a discussão sobre o empreendimento neste momento pode influenciar pouco o arranjo do projeto negociado com o Ibama e o governo”. Pois “a usina, leiloada em abril de 2010, terá de começar a gerar energia em fevereiro de 2015”. Bobagem. Desde sempre, mesmo no período das audiências públicas forjadas, aquele jornal tratou a obra como inevitável. Assim como sempre fizeram todos os barrageiros, disfarçados ou assumidos. Esta usina não estará pronta em 2015, esse cronograma é um blefe, e sempre poderemos lutar pela paralisação das obras ou mesmo a destruição da barragem, se um dia ela ficar pronta. Várias barragens norte-americanas estão sendo desmontadas, como a represa Milltown. Ícone do progresso industrial americano que se tornou símbolo da destruição no Rio Clark Fork, o maior em volume de água do estado de Montana, que drena boa parte das montanhas Rochosas. Com a remoção da barragem, esperam-se a descontaminação do ambiente, a recuperação dos peixes e ganhos com o turismo.
Se há um ano eu lamentava que a discussão sobre a hidrelétrica de Belo Monte não tinha o destaque que merecia, hoje faço o mesmo com relação aos escândalos de corrupção da obra. O ano de 2011 foi marcado politicamente pela queda de vários ministros envolvidos em “malfeitos”. Mas quase não se falou da corrupção associada ao setor elétrico, onde se armam os maiores golpes da atualidade (Belo Monte e as cobras). Para 2012, espero que eles apareçam cada vez mais, e que a oposição perceba o potencial de se atacar esse governo através dos escândalos de Belo Monte, que não são poucos. Até agora foi feita apenas a instalação do canteiro de obras, e consequentemente do caos em Altamira. O ataque ao rio propriamente dito mal começou. Ainda é possível parar esta obra.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) em Altamira, e faz parte do Painel de Especialistas para a Avaliação Independente dos Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.
Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
EcoDebate, 28/12/2011
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O artigo do Dr. Rodolfo Salm sobre a construção da Usina Belo Monte me lembra quando, na aula de História do Brasil, se tratou da vinda da família real portuguesa para o Brasil. Foram muitos os impactos sociais, pois o Rio de Janeiro, até então uma cidade pacata, de repente se viu a sede do reino, com todos os percalços que isso lhe trouxe. A estrutura mobiliária da cidade não tinha condições de receber o grande afluxo populacional e muitos cariocas foram desalojados de suas residências para cedê-las aos portugueses que chegavam. Entretanto, os historiadores são unânimes em dizer que a vinda da família real portuguesa foi a causa principal da independência do Brasil e do início da transformação do Rio de Janeiro na metrópole que hoje conhecemos.
Em Altamira, não se tomou casas dos habitantes para cedê-las aos empregados da construção da usina. O Dr. Rodolfo se refere, apenas, ao aumento dos aluguéis, totalmente previsível, de acordo com a lei da oferta e da demanda, assim como é previsível, também, o desenvolvimento da construção civil na cidade em virtude do grande aumento da procura por novos imóveis em virtude da construção da usina. A própria inflação, a que o Dr. Rodolfo se refere, é uma indicação de novas oportunidades, pois a demanda por bens e serviços não está sendo suprida.
Quanto à associação da seca com a construção da usina Belo Monte, o Dr. Rodolfo vai-me permitir uma observação. Como a construção do reservatório sequer foi iniciada, não há nenhuma razão para que o início das obras possa ter provocado qualquer alteração no clima local. Depois de pronto o reservatório, com o aumento da evaporação devido ao espelho d’água, teremos alterações no clima, mas não no sentido de redução e, sim, de aumento das precipitações.
Por outro lado, a transformação de Altamira em uma grande metrópole, a par do que ocorreu com o Rio de Janeiro no século XIX, vai levar uma maior fiscalização do IBAMA e fatos citados pelo Dr. Rodolfo, como a queimada de roças, amplamente ocorridas quando da instalação da Transamazônica, certamente serão coibidas.
Apesar de ser egresso do setor elétrico, também tenho críticas à usina de Belo Monte, mas não as debochadas, desinformadas, desconectadas e, por conseqüência, irresponsáveis feitas pelos atores de novelas da Globo. Em primeiro lugar, que credibilidade tem esses personagens, para, usando do seu apelo popular, discorrer sobre um assunto tão complexo? Por acaso a empresa que os empregam é um primor de defesa do meio-ambiente? Por acaso esses mesmos bem pagos artistas não desfilam com caros automóveis que encerram e consomem muita energia? Por acaso a Globo está envolvida em alguma campanha que incentive a diminuição do consumo perdulário? Por acaso a Globo aumenta sua renda caso o consumo de produtos intensivos em energia diminua?
Criticar a construção de uma usina sem tocar na questão do destino de sua energia é, no mínimo, ignorância! O Brasil está crescentemente primarizando sua economia, produzindo cada vez mais insumos básicos, de baixo valor agregado e de grande impacto ambiental. Se é para ignorar essa questão, então agüentem Belo Monte, Madeira, Teles Pires, Nucleares, Térmicas, Eólicas, etc. Imaginar que essa economia extratora de recursos minerais e vegetais só precise de uma brisa e um mormaço é como os maniqueístas roteiros das novelas, que tanto mal fazem à sociedade brasileira, um sonho de uma noite de verão.
Criticar o fator de capacidade dessa usina por ser baixo é desconhecer por completo com funciona uma hidroelétrica e exemplos no mundo!
O grande erro das hidroelétricas brasileiras está na concepção do projeto, voltado apenas para a produção de kWh. Com a mercantilização, que veio junto com a privatização, esse viés só se aprofundou! Alguma palavra dos artistas sobre isso? Por acaso a Globo é contra a privatização e mercantilização da energia no Brasil?
Há muito venho defendendo que um potencial hidráulico é apenas uma excelente oportunidade para discutir um plano regional. Em torno do projeto deveriam estar muitos ministérios. Agricultura, Reforma Agrária, Transportes, Turismo, Cidades e muitos outros. A produção de energia é apenas um dos aspectos. Tratar os impactos como compensação não funciona!
O Canadá está construindo uma hidroelétrica no Norte, onde há comunidade indígena. Antes de qualquer traçado do projeto, as comunidades foram contatadas e participam da discussão sobre a obra e da renda da futura usina. Só que lá, a empresa é a HydroQuebec, estatal conectada aos interesses do país e não um consórcio privado que muda a cada semana.
Sou leitor dos artigos do Eco Debate, mas sinto que essa discussão está pela metade, e, ao se aliar ao Gota D´Água, pode se perder.