Vivendo à beira do abismo, artigo de André Francisco Pilon
A próxima Conferência das Nações Unidas sobre ambiente, a Rio+20, em junho de 2012 (que, aliás, concorre com a Copa 2014 e as Olimpíadas 2016), pretende renovar o compromisso dos líderes mundiais com o chamado “desenvolvimento sustentável”, com uma possível “economia verde”, o que exigiria uma mudança nas áreas políticas e econômicas que controlam o mundo.
Questões interdependentes operam em conjunto; os atuais estilos de “desenvolvimento” são acompanhados por novas formas de desigualdade e exclusão; a criminalidade apontada nas favelas reflete os mesmos critérios de autorrealização da sociedade em geral (sair-se “bem”, não importa como), o que é bastante sintomático.
Hoje em dia, a definição dos problemas está reduzida a “bolhas na superfície de um caldeirão efervescente”, a realidade é distorcida por políticas públicas fragmentadas, formatos acadêmicos tradicionais, manchetes espetaculares dos mass media, interesses de mercado e preconceitos do senso comum.
As estratégias de desenvolvimento baseadas em megaprojetos distanciam-se das necessidades humanas fundamentais e do princípio do “relacionamento correto”, que respeita a integridade, a resiliência e a beleza dos ambientes naturais e construídos, e deveria constituir o cerne de uma nova ordem econômica.
Mudanças sistêmicas englobam indústria, agricultura, serviços, transporte, habitação, alimentação, água, energia etc., usualmente objetos de poderosos interesses e investimentos milionários, favorecidos pelo poder público e legislação complacente, que, em seu conjunto, opõem forte resistência a mudanças.
Em sociedades “assimétricas”, o quadro jurídico e as decisões políticas estão comprometidos pelas diferenças de poder entre pessoas físicas e jurídicas, pela intervenção de lobbies poderosos sobre os assuntos de Estado, enquanto as corporações de negócios diluem suas responsabilidades, protegendo seus acionistas nos mercados financeiros.
Tal assimetria se reflete na falta de justiça social e econômica, na expansão desordenada das grandes cidades, nos interesses imobiliários, na aquisição ou grilagem de terras, no desmatamento, no uso intensivo de pesticidas, na poluição dos rios por mercúrio, no consumismo, violência, corrupção e criminalidade.
O trabalho de advogados e tribunais fica condicionado ao próprio sistema em que estão inseridos, estratégias “legais” e “não legais” confundem-se no jogo de interesses políticos e econômicos; poderosos grupos, junto à administração pública, promovem megaprojetos, sob o pretexto do “desenvolvimento” e da criação ilusória de mais empregos.
Procedimentos legais não têm evitado a obsolescência planejada de produtos, nem a obsolescência percebida pelo consumismo induzido. Estudos de impacto ambiental, considerados por alguns como mera formalidade, implicam o equilíbrio entre os ambientes naturais e construídos, o bem-estar físico, mental e social, a equidade e a justiça.
O foco não deve ser o comportamento do consumidor, mas a sua interdependência com os quadros econômicos, políticos e ambientais vigentes, com o tipo de mensagem dos mass media, marketing e publicidade na formação da opinião pública sobre produtos, serviços e estilos de vida a eles associados.
O desenvolvimento e avaliação de políticas públicas, programas de ensino e projetos de pesquisa deveriam contribuir para a transição de um modelo não-ecossistêmico para um modelo ecossistêmico de cultura, tendo em vista novos paradigmas de crescimento, poder, riqueza, trabalho e liberdade.
O debate público de valores, princípios e objetivos deve visar ao diálogo democrático, à elaboração de significados, à construção social de uma rede de esperança, dignidade e autoconfiança; a justiça ambiental deve ir além das fronteiras tradicionais, além dos consórcios maliciosos e dos estados corruptos ou lenientes.
É preciso levar em conta o impacto social, cultural e ambiental dos “projetos de desenvolvimento” que não questionam os sistemas tradicionais de produção, transporte e consumo, que aumentam a poluição, o desperdício e o uso abusivo de recursos, que reforçam estilos de vida predatórios e nos deixam à beira de um abismo.
Devido à sua complexidade, os problemas exigem uma ação unificada e concertada, envolvendo pessoas físicas e jurídicas em pé de igualdade, instituições científicas, organizações sociais e comunitárias. Em vez de projetar as tendências atuais no futuro, deve-se definir as metas desejáveis e explorar novos caminhos para alcançá-las.
Os fundamentos teóricos do ensino e da pesquisa devem enfocar as relações entre as pessoas e o mundo que as circunda, especialmente o mundo da vida, e examinar os paradigmas que informam as maneiras em que se dão essas relações, no âmbito da ciência, da cultura, da sociedade, da política e da economia.
Muitas das políticas que orientam a tomada de decisões sobre problemas considerados de difícil solução, e que usualmente atribuímos a causas externas, são, elas mesmas, a própria causa desses problemas, contribuindo para seu agravamento. É o que ocorre em diferentes áreas, como energia, transporte, produção e consumo.
Exemplos? A opção por rodovias, em prejuízo das ferrovias; a opção pelo transporte individual, em prejuízo do transporte coletivo; a opção pelo petróleo como fonte principal de energia; a opção pelos bens materiais como fonte de qualidade de vida, com exclusão de outras dimensões da existência humana (íntima, interativa, social e biofísica).
A chamada “sustentabilidade”, no fundo, deixa as coisas como estão, não chega à raiz dos problemas. Como fazer face aos interesses corporativos e privilégios nas esferas pública e privada, quando, na prática, “enxugamentos” e terceirizações têm levado ao descontrole financeiro, administrativo e técnico de serviços e obras?
André Francisco Pilon (gaiarine@usp.br) é professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP
Artigo socializado pelo Jornal da USP e publicado pelo EcoDebate, 05/12/2011
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