Decrescimento e a busca de uma sociedade convivial. Entrevista com José Eustáquio Diniz Alves
Discutir o decrescimento é “essencial para desmistificar o ‘fetiche do crescimento ilimitado da população e do consumo’” e o “fetiche da exploração ilimitada dos recursos naturais”, diz José Eustáquio Diniz Alves à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail.
A teoria do decrescimento, explica, “visa garantir a qualidade de vida das pessoas e a preservação ambiental sem reproduzir a lógica do crescimento infinito do consumo”.
Recordando Karl Marx, Alves diz que a sociedade capitalista “funciona na base do ‘fetichismo da mercadoria’ e da ‘coisificação das pessoas’”. Nesse sentido, assinala, na sociedade do crescimento econômico “a convivência humana é intermediada pela posse de bens de consumo e pelo domínio das outras espécies vivas da Terra. (…) Na sociedade antropocêntrica não existe convivência harmônica entre o homo sapiens e as demais espécies, mas sim relações de dominação e exploração. Uma sociedade convivial tem que romper com essa lógica e estabelecer os princípios da solidariedade ecocêntrica”.
José Eustáquio Diniz Alves é doutor em Demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – Ence/IBGE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Considerando a presença de Serge Latouche no Brasil, qual a importância de debater a teoria do decrescimento em nossos dias?
José Eustáquio Diniz Alves – O debate sobre a teoria do decrescimento é não apenas oportuna, mas também essencial para desmistificar o “fetiche do crescimento ilimitado da população e do consumo” e o “fetiche da exploração ilimitada dos recursos naturais”. O nível e o padrão de produção de bens e serviços da economia mundial já ultrapassaram em 50% a capacidade de regeneração do Planeta. A perda de biodiversidade é espantosa. A humanidade está caminhando para o precipício e o suicídio, provocando também o biocídio. Como disse recentemente o prestigiado demógrafo George Martine: “A solução passa pela revisão radical do nosso modelo de desenvolvimento e da sereia que o estimula – o consumismo”.
IHU On-Line – Qual a diferença entre decrescimento e desaceleração do crescimento?
José Eustáquio Diniz Alves – Desaceleração do crescimento é o que está acontencendo nos Estados Unidos, onde o endividamento crescente das famílias, das empresas e do setor público colocou um limite prático à continuidade do modelo de desenvolvimento com base na expansão do crédito e da emissão de moeda e títulos fictícios. Decrescimento do PIB é o que está acontecendo na Grécia, que tem sofrido o terceiro ano seguido de recessão. Em ambos os países quem “paga o pato” da recessão são os trabalhadores que perdem o emprego, os cidadãos e cidadãs que perdem direitos e o sistema de proteção social e ambiental que perde os investimentos necessários para a sua consolidação. A teoria do decrescimento visa garantir a qualidade de vida das pessoas e a preservação ambiental sem reproduzir a lógica do crescimento infinito do consumo. A sociedade do decrescimento é aquela que não se preocupa com a expansão do consumo, mas com a liberação da criatividade humana, eliminando os grilhões do totalitarismo econômico.
IHU On-Line – Como o descrescimento pode ser associado à questão da mudança da matriz energética mundial?
José Eustáquio Diniz Alves – Um dos principais componentes do crescimento da Pegada Ecológica é o aumento dos gases de efeito estufa e, especialmente, do CO2 liberado na queima de combustíveis fósseis (lenha, carvão mineral, gás e petróleo). Foram os combustíveis fósseis que viabilizaram o grande crescimento populacional e econômico do século XX, quando a população cresceu cerca de quatro vezes e a economia cresceu aproximadamente 18 vezes. Mas os combustíveis fósseis são finitos e já chegaram ao seu pico de produção. No século XXI, o consumo desse tipo de energia tem crescido acima da produção, daí o aumento dos preços. Combustíveis mais caros significam alimentos mais caros, como mostra o índice de preços da Food and Agriculture Organization – FAO. Dessa forma, a população mundial vai enfrentar um grande desafio nas próximas décadas, que é o elevado preço da energia e dos alimentos.
O mundo vai enfrentar também o enorme desafio das consequências do aquecimento global e dos eventos climáticos extremos. Os cenários para as próximas décadas não são nada animadores, mas podem ser mitigados se houver uma rápida e ampla mudança na matriz energética mundial. A comunidade internacional precisa superar a Era do Petróleo e avançar na Era do Sol/Vento. Juntamente com a redução do consumo conspícuo, somente as energias limpas e renováveis podem ajudar a evitar que o desastre do aquecimento global, com o consequente aumento do nível dos oceanos e a acidificação das águas, atinja proporções apocalípticas.
IHU On-Line – O decrescimento deve ser aplicado a toda a população mundial?
José Eustáquio Diniz Alves – Embora tenhamos atingido sete bilhões de habitantes no mundo, já existem países nos quais a população está decrescendo, o que é o case de Cuba, Rússia, Japão, Ucrânia, entre outros. Existem outros que vão ter suas populações caindo num futuro próximo, pois já possuem taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição, tais como: Brasil, Chile, China, Coreia do Sul, Irã e Vietnã. Também há um grande grupo de países que estão em processo de transição de altas para baixas taxas de fecundidade e devem atingir o nível de reposição em um espaço curto de tempo. Na verdade, o problema de alto crescimento demográfico é um fato localizado em cerca de 30 países e que pode ser solucionado com vontade política e uma fração dos recursos mundiais gastos com despesas militares.
As populações pobres, de modo geral, e os pobres dos países pobres, em particular, têm muitos filhos por falta de acesso aos métodos de regulação da fecundidade, falta de acesso aos direitos sexuais e reprodutivos e falta de acesso à educação, saúde e trabalho. Existem cerca de 215 milhões de mulheres no mundo sem acesso aos métodos contraceptivos. Portanto, com inclusão social as famílias tendem a limitar seu tamanho pelos seus próprios meios. A cidadania é o melhor contraceptivo.
IHU On-Line – Como vê a postura “pró-crescimento” e das “grandes obras” por parte dos governantes de vários países hoje, inclusive o Brasil?
José Eustáquio Diniz Alves – Infelizmente a maior obra que o Brasil está realizando não é promoção da cidadania e da solidariedade universal, mas sim o tão alardeado projeto de exploração do “petróleo do pré-sal”. A Petrobrás, o BNDES e o povo brasileiro (que paga impostos) estão jogando todas as fichas na exploração das jazidas de petróleo localizadas a centenas de quilômetros da costa brasileira e a milhares de metros no fundo do mar. É um investimento monstruoso, de centenas de bilhões de dólares, em uma fonte energética poluidora e que está com os dias (ou anos) contados. A Era do Petróleo representa o passado. Com uma fração de tais recursos o Brasil poderia impulsionar uma grande mudança na matriz energética brasileira, avançando na produção de energia solar e eólica e criando empregos e tecnologias verdes. Mas o governo central, os deputados, governadores, prefeitos e vereadores só pensam nos royalties do pré-sal para continuar investindo no modelo de crescimento do consumo ilimitado que provoca a degradação ambiental e a perda de biodiversidade.
IHU On-Line – Em que medida o decrescimento pode ser apontado como condição para uma sociedade convivial?
José Eustáquio Diniz Alves – A sociedade capitalista, como disse Karl Marx, funciona na base do “fetichismo da mercadoria” e da “coisificação das pessoas”. O processo de alienação faz com que os indivíduos não se relacionem como seres humanos, mas sim como proprietários de bens de consumo, que são os marcadores de status social mais valorizados. Seguindo as regras da contabilidade, o sucesso dos indivíduos, das empresas e do governo é medido pela quantidade de bens acumulados e pelos direitos a receber. A solidariedade é ofuscada pelo “efeito demonstração”. O aumento do patrimônio e da riqueza é a referência máxima de aceitação e reconhecimento social.
Portanto, na sociedade do crescimento econômico a qualquer custo, a convivência humana é intermediada pela posse de bens de consumo e pelo domínio das outras espécies vivas da Terra. Os animais e plantas são considerados apenas como insumos para melhorar o padrão econômico da humanidade, especialmente das camadas mais privilegiadas. Na sociedade antropocêntrica não existe convivência harmônica entre o homo sapiens e as demais espécies, mas sim relações de dominação e exploração. Uma sociedade convivial tem que romper com essa lógica e estabelecer os princípios da solidariedade ecocêntrica.
(Ecodebate, 18/11/2011) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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